domingo, agosto 12, 2007

É MUITA FALTA DE ABSURDO

Fiquei sabendo – e foi pessoa séria quem falou – que São Luís do Maranhão não faz parte da lista das “50 Melhores Cidades para Trabalhar”, divulgada pela revista “Você S/A”, da editora Abril. Se vacilar, esta capital pode não ser nem uma das 150. Mas nem tudo está perdido. Nossa Ilha querida ainda pode ser a terra das oportunidades... e para os oportunistas.
Quem trabalha no ramo de “acompanhantes”, então, está feito. Das universitárias completinhas à massagem com direito a bumbum, os anúncios multiplicam-se com im-pressionante facilidade. Estão mais fáceis que pão e pitomba na feira. Nada como ver pessoas honestas vencendo na vida com o suor do seu trabalho.
Jogadores de futebol de terceira categoria também podem se dar de bem, por aqui. Boleiros de terceira, que não vislumbram alternativa melhor do que atuar no fute-bol de quinta daqui do estado. Portanto, o sujeito tem que ser esperto e seguir a receita secreta que todo mundo conhece. Em primeiro lugar, seguir a moda contemporânea e gravar os gols em DVD. E os gols devem ser bonitos, para impressionar a patuléia que, de futebol, mal sabe o que é a bola. Depois de contratado, pedir logo adiantados dois meses de salário. Durante os jogos, fazer de conta que está no gramado de corpo presen-te. O passo seguinte é simular contusão. E quando a diretoria ameaçar demitir, avisar que entrará na Justiça se não forem pagos os outros meses previstos no contrato.
Professores, não venham para cá. Ou deixem para vir depois que alguém defe-nestrar essa raça que “comanda” este estado. Mas sempre há aqueles com tendências porno-erótico-sadomasoquistas. Gente que encontra o máximo de prazer até no mínimo de sofrimento. Imaginem esse tipo de pirado tendo verdadeiros orgasmos trepidantes ao abrir o “contrachoque”.
No caso dos jornalistas, imagino que o principal problema seja responder à mais capciosa das perguntas: “Será que eu trabalho no jornal que fica antes ou no que fica depois da ponte?” Ou então pode se aventurar pelo colunismo social. Mas aí tem que saber onde começa o elogio sincero e onde termina a bajulação vergonhosa. Ah, tem que ter um blog. Hoje em dia, qualquer hebreu não-praticante tem um. Eu já fiz o meu. Não tenho pretensão alguma de vê-lo sendo lido por paulistas, cariocas, cearenses, mar-cianos e incas venusianos. Para mim, já é grande honra e privilégio que Bruna Castelo Branco o visite, de quando em quando. Mas o de um candidato a candidato a jornalista deve receber pelo menos uma meia dúzia de três ou quatro comentários. Porque um blog que ninguém comenta é muita falta de absurdo.
Ah, já ouço a voz rouca da platéia (a meia dúzia de três ou quatro que achou estas linhas interessantes, coitados), a fim de saber: “Você recomenda o trabalho de revisão para quem estiver a fim de vir para cá?” Mas é claro que recomendo. Há filis-teus que escrevem muito mal. E o pior de tudo é que se acham, os miseráveis. Um revi-sor é necessário, sim. Ou vários revisores. Essas criaturas abnegadas, que, às vezes, ou-vem a música agourenta, que surge dos subterrâneos das redações para assombrá-los: “Lerê, lerê, lerê, lerê, lerê...”.
Para finalizar com uma conclusão definitiva, São Luís pode ser que um dia seja a terra das oportunidades. Pode ser que a capital maranhense possa um dia ser considera-da um Eldorado – um lugar em que todos são capazes de prosperar, e de maneira lícita. Nada parecido com senadores gananciosos e cheios de artimanhas. Nada parecido com espertalhões que usam “laranjas” para desviar recursos do Governo Federal. Nada pare-cido com abutres da aviação civil que estão muito mais interessados em lotar aviões sucateados do que assegurar o bem-estar dos passageiros. Um dia, haverá uma São Luís que todos vão considerar a “jóia da coroa”. Vai ser muita falta de absurdo se isso não acontecer.

sexta-feira, agosto 10, 2007

Fanatismo

Florbela Espanca

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver !
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida !

Não vejo nada assim enlouquecida ...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida !

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa ..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim !

E, olhos postos em ti, digo de rastros :
"Ah ! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus : Princípio e Fim ! ..."

quinta-feira, agosto 09, 2007

Um braço de mulher

Rubem Braga


Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava coisas da terra, minhas pobres, pequenas coisas. Uma aborrecida sonolência foi me dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que "nós não podemos descer!". O avião já havia chegado a São Paulo, mas estava fazendo sua ronda dentro de um nevoeiro fechado, à espera de ordem para pousar. Procurei acalmar a senhora.

Ela estava tão aflita que embora fizesse frio se abanava com uma revista. Tentei convencê-la de que não devia se abanar, mas acabei achando que era melhor que o fizesse. Ela precisava fazer alguma coisa, e a única providência que aparentemente podia tomar naquele momento de medo era se abanar. Ofereci-lhe meu jornal dobrado, no lugar da revista, e ficou muito grata, como se acreditasse que, produzindo mais vento, adquirisse maior eficiência na sua luta contra a morte.

Gastei cerca de meia hora com a aflição daquela senhora. Notando que uma sua amiga estava em outra poltrona, ofereci-me para trocar de lugar, e ela aceitou. Mas esperei inutilmente que recolhesse as pernas para que eu pudesse sair de meu lugar junto à janela; acabou confessando que assim mesmo estava bem, e preferia ter um homem — "o senhor" — ao lado. Isto lisonjeou meu orgulho de cavalheiro: senti-me útil e responsável. Era por estar ali eu, um homem, que aquele avião não ousava cair. Havia certamente piloto e co-piloto e vários homens no avião. Mas eu era o homem ao lado, o homem visível, próximo, que ela podia tocar. E era nisso que ela confiava: nesse ser de casimira grossa, de gravata, de bigode, a cujo braço acabou se agarrando. Não era o meu braço que apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos atributos de força e proteção.

Chamei a aeromoça, que tentou acalmar a senhora com biscoitos, chicles, cafezinho, palavras de conforto, mão no ombro, algodão nos ouvidos, e uma voz suave e firme que às vezes continha uma leve repreensão e às vezes se entremeava de um sorriso que sem dúvida faz parte do regulamento da aeronáutica civil, o chamado sorriso para ocasiões de teto baixo.

Mas de que vale uma aeromoça? Ela não é muito convincente; é uma funcionária. A senhora evidentemente a considerava uma espécie de cúmplice do avião e da empresa e no fundo (pelo ressentimento com que reagia às suas palavras) responsável por aquele nevoeiro perigoso. A moça em uniforme estava sem dúvida lhe escondendo a verdade e dizendo palavras hipócritas para que ela se deixasse matar sem reagir.

A única pessoa de confiança era evidentemente eu: e aquela senhora, que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas malcriações para a aeromoça e se agarrou definitivamente a mim. Animei-me então a pôr a minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Esse gesto de carinho protetor teve um efeito completo: ela deu um profundo suspiro de alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu lado e ficou imóvel, quieta. Era claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra todos, estava como adormecida.

O avião continuava a rodar monotonamente dentro de uma nuvem escura; quando ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma garantia suplementar apertando ligeiramente a minha mão sobre a sua: isto sem dúvida lhe fazia bem.

Voltei a olhar tristemente pela vidraça; via a asa direita, um pouco levantada, no meio do nevoeiro. Como a senhora não me desse mais trabalho, e o tempo fosse passando, recomecei a pensar em mim mesmo, triste e fraco assunto.

E de repente me veio a idéia de que na verdade não podíamos ficar eternamente com aquele motor roncando no meio do nevoeiro - e de que eu podia morrer.

Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo; de qualquer modo a grande cidade, invisível e tão próxima, vivia sua vida indiferente àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um avião, ali no alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá, sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha. Nem aquele velho viaduto existe mais, e o aventuroso rapaz de vinte anos, calado e lírico, é um triste senhor que olha o nevoeiro e pensa na morte.

Outras lembranças me vieram, e me ocorreu que na hora da morte, segundo dizem, a gente se lembra de uma porção de coisas antigas, doces ou tristes. Mas a visão monótona daquela asa no meio da nuvem me dava um torpor, e não pensei mais nada. Era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não existisse mais, e por isto pouco me importava morrer. Talvez fosse até bom sentir um choque brutal e tudo se acabar. A morte devia ser aquilo mesmo, um nevoeiro imenso, sem cor, sem forma, para sempre.

Senti prazer em pensar que agora não haveria mais nada, que não seria mais preciso sentir, nem reagir, nem providenciar, nem me torturar; que todas as coisas e criaturas que tinham poder sobre mim e mandavam na minha alegria ou na minha aflição haviam-se apagado e dissolvido naquele mundo de nevoeiro.

A senhora sobressaltou-se de repente e muito aflita começou a me fazer perguntas. O avião estava descendo mais e mais e entretanto não se conseguia enxergar coisa alguma. O motor parecia estar com um som diferente: podia ser aquele o último e desesperado tredo ronco do minuto antes de morrer arrebentado e retorcido. A senhora estendeu o braço direito, segurando 0 encosto da poltrona da frente, e então me dei conta de que aquela mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado.

Fiquei a olhá-lo devagar, desde o ombro forte e suave até as mãos de dedos longos. E me veio uma saudade extraordinária da terra, da beleza humana, da empolgante e longa tonteira do amor. Eu não queria mais morrer, e a idéia da morte me pareceu tão errada, tão feia, tão absurda, que me sobressaltei. A morte era uma coisa cinzenta, escura, sem a graça, sem a delicadeza e o calor, a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave irradiação da pele de um corpo de mulher moça.

Mãos, cabelos, corpo, músculos, seios, extraordinário milagre de coisas suaves e sensíveis, tépidas, feitas para serem infinitamente amadas. Toda a fascinação da vida me golpeou, uma tão profunda delícia e gosto de viver uma tão ardente e comovida saudade, que retesei os músculos do corpo, estiquei as pernas, senti um leve ardor nos olhos. Não devia morrer! Aquele meu torpor de segundos atrás pareceu-me de súbito uma coisa doentia, viciosa, e ergui a cabeça, olhei em volta, para os outros passageiros, como se me dispusesse afinal a tomar alguma providência.

Meu gesto pareceu inquietar a senhora. Mas olhando novamente para a vidraça adivinhei casas, um quadrado verde, um pedaço de terra avermelhada, através de um véu de neblina mais rala. Foi uma visão rápida, logo perdida no nevoeiro denso, mas me deu uma certeza profunda de que estávamos salvos porque a terra existia, não era um sonho distante, o mundo não era apenas nevoeiro e havia realmente tudo o que há, casas, árvores, pessoas, chão, o bom chão sólido, imóvel, onde se pode deitar, onde se pode dormir seguro e em todo o sossego, onde um homem pode premer o corpo de uma mulher para amá-la com força, com toda sua fúria de prazer e todos os seus sentidos, com apoio no mundo.

No aeroporto, quando esperava a bagagem, vi de perto a minha vizinha de poltrona. Estava com um senhor de óculos, que, com um talão de despacho na mão, pedia que lhe entregassem a maleta. Ela disse alguma coisa a esse homem, e ele se aproximou de mim com um olhar inquiridor que tentava ser cordial. Estivera muito tempo esperando; a princípio disseram que o avião ia descer logo, era questão de ficar livre a pista; depois alguém anunciara que todos os aviões tinham recebido ordem de pousar em Campinas ou em outro campo; e imaginava quanto incômodo me dera sua senhora, sempre muito nervosa. "Ora, não senhor." Ele se despediu sem me estender a mão, como se, com aqueles agradecimentos, que fora constrangido pelas circunstâncias a fazer, acabasse de cumprir uma formalidade desagradável com relação a um estranho - que devia permanecer um estranho.

Um estranho — e de certo ponto de vista um intruso, foi assim que me senti perante aquele homem de cara desagradável. Tive a impressão de que de certo modo o traíra, e de que ele o sentia.

Quando se retiravam, a senhora me deu um pequeno sorriso. Tenho uma tendência romântica a imaginar coisas, e imaginei que ela teve o cuidado de me sorrir quando o homem não podia notá-lo, um sorriso sem o visto marital, vagamente cúmplice. Certamente nunca mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi um instante para mim a própria imagem da vida, e não o esquecerei depressa.


O texto acima foi publicado no livro “Os melhores contos – Rubem Braga”, seleção de Davi Arrigucci Jr., Global Editora – São Paulo, e selecionado por Ítalo Moriconi para compor o livro “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, pág. 169.

terça-feira, agosto 07, 2007

GONÇALVES DIAS E O PV

Informa a Internet que o Partido Verde foi fundado em 17 de janeiro de 1986. Esta é uma das milhares de peças de ficção das quais está cheia a Grande Rede. Afinal de contas, a criação do PV ocorreu em meados do século XIX, com o advento do Ro-mantismo e graças ao empenho literário de Gonçalves Dias – não apenas o verdadeiro criador de uma literatura genuinamente brasileira, como também um dos primeiros poe-tas a se preocupar com temas que abordassem a preocupação com a ecologia.
O caxiense Antônio Gonçalves Dias nasceu a 10 de agosto de 1823. Portanto, todos nós que apreciamos a poesia devemos render ao autor de “I-Juca-Pirama”, nesta sexta-feira, as devidas homenagens. Há exatos 184 anos, um dos grandes mestres da literatura universal foi apresentado ao Brasil e ao Maranhão.
Essa qualquer estudante de Literatura Brasileira sabe, se não dormiu nas primei-ras aulas: durante muito tempo não tivemos uma literatura nacional. Depois que foram encontradas por navegantes portugueses comandados pelo ilustre Cabral, na hora zero entre os séculos XV e XVI, estas paisagens brasileiras, as letras (ou mesmo a possibili-dade de uma produção cultural relevante) foram relegadas a terceiro plano, ante a im-portância, em primeiro lugar, da exploração econômica da colônia recém-conquistada e, posteriormente, da catequese dos índios. Nesse momento, há uma literatura informativa (uma literatura no Brasil e não do Brasil), cujo expoente máximo é a carta de Pero Vaz. Quanto ao trabalho dos jesuítas na conversão dos gentios, aprendemos que os trabalhos de Manuel da Nóbrega e de Anchieta são os que apresentam qualidade inquestionável.
Sem encontrar explicações racionais para o mundo, e com o fortalecimento da Igreja Católica, o Barroco é a estética literária que traduz o pensamento da humanidade no século XVII: ela retoma a religiosidade do período medieval e o antropocentrismo do século XVI. Agora, o pensamento humano oscila entre pólos opostos: Deus x homem; céu x terra; espírito x matéria. Já o Arcadismo posiciona-se contra os dilemas barrocos e propõe uma literatura mais equilibrada e espontânea, buscando harmonia na pureza e na simplicidade das formas greco-latinas. Os poetas árcades propõem a volta à simplicida-de da vida no campo e o aproveitamento da vida presente. Esta proposta e a teoria do “bom selvagem”, de Rousseau, serão retomadas pela estética seguinte: o Romantismo.
E não dá para falar em Romantismo sem mencionar o indianismo. Quem (aque-les que realmente o leram no colégio, que é onde o livro é mais disseminado) não se lembra dos verdes mares bravios da terra natal de José de Alencar? Quem não se recor-da da virgem Iracema dos lábios de mel? Pois é: a Natureza – compromissada com o elemento nacional – comporta apenas um indivíduo que esteja, de fato e de direito, nela entrosado, e esse indivíduo é o silvícola. “No meio das tabas, de amenos verdores, al-teiam-se os tetos da altiva nação” indígena, à qual os poetas e prosadores do século XIX mais se apegaram, a fim de se orgulharem de um país que estava ainda em seus primei-ros passos tanto quanto à formação política e administrativa, quanto na questão literária.
A partir do talento de Gonçalves Dias, o elemento principal que norteia a força, por vezes desmedida, do indígena, é a Natureza. Prova disso é a intensidade com que se faz presente no Canto segundo d’Os Timbiras: “Desdobra-se da noite o manto escuro:/ Leve brisa sutil pela floresta/ Enreda-se e murmura, - amplo silêncio/ Reina por fim”. Como se percebe, há todo um trabalho de artes plásticas e música, com emprego de ri-mas e repetição de versos em momentos importantes da narrativa (no caso dos poemas épicos, como o I-Juca-Pirama). Esse mesmo processo criativo vejo na obra de José Chagas, apenas para citar um dos nossos poetas maiores contemporâneos. Mas falta os mestre d’Os canhões do silêncio o privilégio de ter fundado um partido político voltado justamente para as questões ecológicas, que colocasse a Natureza no topo da lista de prioridades pelo menos um século antes de todo mundo começar a pensar em “preservar o verde”. Gonçalves Dias criou o Partido Verde! Era o fraco!

sexta-feira, agosto 03, 2007

SENTIMENTO DE BRUNA

Todo santo dia, bem cedo pela manhã, Bruna Castelo Branco senta-se diante de seu computador e aceita o desafio de remover a neve da folha de papel. Ainda que, nesse caso, a “folha” tenha sido arquitetada pelo gênio humano.
Hoje, porém, algo inédito aconteceu. Com toda a página em branco à sua disposição, ela não conseguia dar à luz sua crônica. Ela concordava com Jô Soares: escrever é parir sem ser mãe. No que dizia respeito a Bruna, havia uma complicação muito séria em seu parto literário.
Entre aqueles que diariamente praticam a feitiçaria da escrita, muitos há que, durante algum tempo - se muito ou pouco, aí só os búzios podem responder -, perdem o contato com a estranha potência das palavras. Vejam vocês o meu exemplo: depois que a minha mãe faleceu, eu me vi incapaz de começar um romance cujo protagonista deveria ser o mar.
Um mar sem princípio nem fim. Um mar semelhante ao amor em que, para todo o sempre, está ancorado o coração de Bruna. Mas hoje o mar desse amor encontrava-se revolto. Por isso ela não conseguia escrever. O sentimento não estava no lugar certo. Encontrava-se na terra em que a humanidade se deixa atormentar pela solidão. Um lugar úmido, assustador e triste, no qual a esperança é uma casa de areia.
Desligou o computador. O gosto salgado de suas lágrimas pegou-a de surpresa. Então, enfim a vida lhe mostrou como era agridoce o sabor da saudade. E que as lágrimas também podem ser ingredientes da ausência.
No dia anterior, ela e o namorado discutiram feio. Bruna, ao recordar a briga, lamentou muito que tenha se originado a partir de uma prosaica discussão sobre quem torcia para o melhor time. Bruna desafiou o namorado a provar que o Comerciário era o melhor time do país. Ele perguntou a ela por que achava que o Santa Quitéria era um time “fabuloso”. Nada mais infantil e, por isso mesmo, nada mais absurdo.
Nenhum dos dois saberia explicar, se questionados, como ou por que o assunto mudou do vinho para o vinagre. Do futebol, passaram a apontar os pecados que cada um cometeu ao longo do relacionamento. Até que ofensas e acusações injustas, capazes de magoar e partir até o coração mais calejado, declararam o fim do combate. Antes de ir embora, ela disse que, “desse jeito, não dá”.
- “Desse jeito, não dá” - ela repetiu a si mesma. Suspirou. Sentia-se tola. Estúpida. Em seu quarto, a solidão regia sua melodia feita de sons pesados e negros.
Olhou para o relógio na parede. Estava na hora de tomar banho. Seu trabalho no jornal não se importava nem um pouco com seu bloqueio ou com seu coração, que perdera as asas e, talvez, nunca mais se libertasse do desencanto.
- “Desse jeito, não dá”. Não parava de repetir a tolice, enquanto a água fria espantava os últimos vestígios do sono. Pensou em telefonar para ele antes de sair de casa. Sim, daria o braço a torcer e pediria desculpas. Ele também errou, mas se dissesse isso, voltariam a trocar acusações, agressões e grosserias. A situação não sairia da estaca zero, e provavelmente Bruna chegaria na redação do jornal com os olhos vermelhos.
Voltou para o quarto. Era a imagem do desânimo. Abriu o guarda-roupa. Nesse momento, ouviu a campainha. Pensou que fosse o motorista do jornal. O chefe de reportagem lhe disse que deveria sair de casa direto para a primeira pauta do dia. Mais uma matéria sobre a dengue hemorrágica. Seu namorado trabalha à tarde e à noite. E não tem o costume de acordar cedo. A campainha de novo. Sem pressa, ela vestiu-se. Em seguida, reuniu o material de que precisava e caminhou até a porta. Abriu-a... e não conseguia acreditar.
Era ele. Ajustara o despertador para as primeiras horas da manhã. Há sempre uma primeira vez para tudo. Queria ver a luz do amor brilhar nos olhos da mulher que ama e pela qual é amado. Queria também pedir desculpas. Mas isso ficou para depois de um exemplo típico desses beijos nada técnicos de novela da Globo. Porque todo mundo merece um final feliz.

TENDA DOS MILAGRES

Este mundo é uma grande tenda dos milagres. Os milagres são considerados expressões do sobrenatural. Pode-se dizer que são fenômenos contrários às leis naturais. Para os crentes, obedecem a uma força superior: a de Deus.
Acredito que só Deus mesmo poderá explicar, no Dia do Juízo, os quatro mila-gres dos quais tomei conhecimento hoje, nesta primeira quinta-feira de agosto. Na Ar-gentina, um bebê prematuro dado como morto foi salvo pelo pranto. Na Índia, outro, com apenas um ou dois dias de vida, conseguiu sobreviver a 26 facadas. Uma criança de dois anos sobreviveu a um massacre, em um restaurante chinês, na Alemanha. E, ainda neste país, um gato salvou um bebê de hipotermia.
O mundo também é um vale de lágrimas, ai de nós. Principalmente para quem é criança. Aqui no Brasil, temos o Estatuto da Criança e do Adolescente (que atende tam-bém pela esquisita sigla ECA), com 267 artigos. O documento contempla todos os re-quisitos que, em princípio, levaria a infância a um amparo total. Mas só em princípio. A violência contra a criança, neste país, avança como uma epidemia, oculta pela falta de estatísticas, omissão da polícia, e o silêncio da população. Estimativas encontradas na literatura médica apontam que cerca de 10% das crianças levadas a serviços de emer-gência por trauma são vítimas de maus-tratos.
Volta e meia, as páginas policiais desta nossa Ilha de São Luís apresentam notí-cias sobre recém-nascidos abandonados em calçadas, à mercê da sanha devoradora de formigas. Ou então de pais bêbados que violentam as próprias filhas menores. Ou então de mães insensatas, que atiram fetos em lixeiros ou privadas.
Costumamos pensar que, em países desenvolvidos economicamente, as mentali-dades também devem ser diferentes. Mas é uma reflexão equivocada. Os pecados são os mesmos. Até porque não há diferenças entre o ser humano de Itapipoca do Norte e o do Cudumundistão. São os mesmos... mas também podem ser até piores, como no caso da criança brutalmente esfaqueada. Foram 26 golpes brutais. Ela teve fratura no crânio e intestinos expostos por um ferimento feito nas costas. O que leva a pensar também que há condenados que se comportam como animais selvagens. O menino chegou ainda com vida ao hospital. Mas até quando? Peço a Deus que tenha piedade deste pobre ino-cente.
E que livre de cães ferozes o heróico felino que, na distante Colônia, na Alema-nha, sob um frio tão intenso quanto o da Editoração deste jornal, salvou um bebê da morte por hipotermia. O menino havia sido abandonado na porta de uma residência. O gato miou e miou, até acordar o dono da casa. Os gatos já nascem pobres, como nos informa a música. Porém, há os que estão nesta vida para fazer o bem.
Ainda na Alemanha, houve, como dissemos, um massacre em um restaurante chinês. Impressionante como temos incrível facilidade para eliminarmos nossos seme-lhantes. Sempre que assisto ao filme A Lista de Schindler, não tenho como ficar indife-rente às cenas do extermínio de judeus no gueto. Pessoas colocadas em fileiras de três ou quatro e executadas com um só tiro. Tragédias que se repetem no filme, com o obje-tivo de mostrar às futuras gerações que alguns erros não devem nunca mais ser cometi-dos. E essa nova geração pode ser representada pela criança que sobreviveu milagrosa-mente ao massacre. Escapou ao amplexo da morte. Por enquanto. Os movimentos da odisséia humana na terra são totalmente incertos.
Tão incertos quanto os médicos argentinos que não sabem dizer quando uma criança está viva ou quando está morta. Ah, criança de Buenos Aires: teu choro serviu mais que salvar tua própria vida. É um brado a favor do futuro. É o canto que fortalece-rá a esperança em todos os corações do mundo – esta tenda de milagres tão inexplicá-veis quanto maravilhosos.

quarta-feira, agosto 01, 2007

CANÇÃO DA RIBEIRINHA

DE PAIO SOARES DE TAVEIRÓS

No mundo nom me sei parelha,
mentre me for' como me vai,
ca ja moiro por vos - e ai
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mao dia que me levantei, que vos enton nom vi fea!

E, mia senhor, des aquel di' , ai!
me foi a mim muin mal,
e vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d'aver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d'alfaia
nunca de vós ouve nem ei
valia d'ua correa