quarta-feira, novembro 07, 2007

JUAN LÓPEZ Y JOHN WARD

DE JORGE LUIS BORGES

Les tocó en suerte una época extraña.

El planeta había sido parcelado en distintos países, cada uno provisto de lealtades, de queridas memorias, de un pasado sin duda heroico, de derechos, de agravios, de una mitología peculiar, de próceres de bronce, de aniversarios, de demagogos y de símbolos. Esa división, cara a los catógrafos, auspiciaba las guerras.

López había nacido en la ciudad junto al río inmóvil; Ward, en las afueras de la ciudad por la que caminó Father Brown. Había estudiado castellano para leer el Quijote.

El otro profesaba el amor de Conrad, que le había sido revelado en una aula de la calle Viamonte.

Hubieran sido amigos, pero se vieron una sola vez cara a cara, en unas islas demasiado famosas, y cada uno de los dos fue Caín, y cada uno, Abel.

Los enterraron juntos. La nieve y la corrupción los conocen.

El hecho que refiero pasó en un tiempo que no podemos entender.


Jorge Luis Borges, 1985

terça-feira, novembro 06, 2007

A vida em mundos virtuais

La Vanguardia

Daniel Huebner, especialista em mundos virtuais, afirma confiar nos mundos tridimensionais, alegando que "no mundo virtual todas as pessoas têm a possibilidade de desenvolver seu pleno potencial". Ele foi encarregado, durante quatro anos, em fazer com que o Second Life funcionasse como uma comunidade homogênea, e esteve recentemente em Barcelona para participar do congresso Art Futura 2007, que debateu a forma que a Internet terá no futuro.

Para Huebner, no futuro a rede inevitavelmente terá recursos comuns aos mundos virtuais tridimensionais. O Second Life tem 10 milhões de usuários registrados, e uma economia ativa que, segundo as estimativas, chega a movimentar US$ 1 milhão em dinheiro real ao dia, ocasionalmente. O mundo virtual e tridimensional abriga curiosos, políticos, empresas, universidades, organizações sem fins lucrativos, artistas e comerciantes; os terrenos e outros artigos são comprados e vendidos por meio de uma moeda virtual conversível em dólares reais, e os usuários criam personagens fictícios (avatares) que interagem com outros visitantes digitais ao serviço.

"O Second Life representa um avanço fascinante na maneira pela qual as pessoas interagem em rede, mas estamos vendo apenas a ponta do iceberg, quanto ao que esses mundos virtuais um dia virão a ser. Muitas das atividades da Internet serão conduzidas neles, já que compras, encontros românticos, encontros com amigos, shows, debates e muitas outras coisas parecem muito mais atraentes no mundo tridimensional, do qual participamos diretamente com nossos avatares, do que no universo bidimensional da Internet corrente", afirma Huebner.

segunda-feira, novembro 05, 2007

Os últimos degraus

Os últimos degraus ainda estão longe de ser alcançados. Mas também é verdade que nós, seres humanos, fazemos o possível para chegar ao fundo do poço.
Vocês, por acaso, sabiam que estamos no ano 47 D.D.? É isso mesmo. Eu também não fazia idéia, até esta noite de outubro, quando acessei a internet à caça de assunto para postar no meu blog. Foi então que fiquei sabendo que dois casais mexicanos se casaram numa tal de “Igreja Maradoniana”, em um clube noturno de Buenos Aires. Informa o sítio que a “religião” foi criada em 1998 por admiradores do ex-craque em hiperatividade Diego Armando Aspirêitor Tabajara Maradona. É muita falta de esculhambação, como diria o caboclo.
Ainda consoante (termo que está tão morto para o jornalismo quanto o futebol maranhense para este vosso escriba) a página da Grande Irmã internet, a criação da Igreja Maradoniana foi ins-pirada pela explicação que Dieguito, o Aspirador, arranjou para aquele escandoloso erro cometido pelo árbitro e o assistente da partida da Argentina contra a Inglaterra, nas oitavas-de-final da Copa de 1986 - o ano em que Deus teve a boa idéia de colocar neste mundo Rafaelle e Ingrid.
Só o juiz e o bandeira não viram Maradona dar uma raquetada na bola com a mão esquerda, na saída do goleiro Shilton. Depois da partida, Diego saiu-se com aquela viagem da “mão de Deus”. Esta foi, por assim dizer, a desculpa divina necessária para que uma meia dúzia de três ou quatro abilolados decidissem fundar a tal igreja. Esses doidisvanas são liderados por dois jornalistas - que deveriam ser pessoas esclarecidas, sensatas, centradas e ponderadas e não fanáticas, no que de pior essa palavra pode ter. Pois os senhores Alejandro Verón e Hernán Amez decidiram, na noite de 30 de outubro de 2002, aniversário de Maradona, consagrar em uma igreja o nada santo nome daquele que, em algum lugar do passado, foi considerado o maior jogador de futebol da Argentina. Um ídolo que, infelizmente, pode ser encontrado apenas em vídeos e fotos da época em que, de fato, era magistral e soberbo. Esse “deus” tão venerado pelos hermanos um dia desceu do seu pedestal, calçou as pesadas botas de chumbo do vício e decaiu tanto que, muito provavelmente, a luz no fim do túnel para ele era tão possível quanto a existência de vida inteligente no pequeno Jornal Pequeno.
A Igreja Maradoniana tem muito da Católica. Tem lá seus mandamentos - um dos quais exige que os filhos daqueles casais mexicanos, por exemplo, batizem seus filhos com o nome de Diego. As meninas, sem dúvida alguma, atenderão por Maradona. O Natal e o Ano Novo deles se baseiam no aniversário do ex-craque. Os anos se dividem em A.D. e D.D. (Antes e Depois de Diego). Alguém aí na platéia pode seguir meu exemplo e considerar essa igreja o que ela não deixa de ser: uma completa falta de absurdo. Todavia, é preciso admitir que todo e qualquer assunto, por mais ignóbil, deve ser encarado dentro de uma perspectiva mais ampla. Acredito que a filosofia tenha começado assim, quando os primeiros pensadores começaram a questionar a composição da realidade que os cercava.
Nesse caso, podemos levar a sério a Igreja Maradoniana caso esteja relacionada ao que se diz e se entende sobre religião: um conjunto de crenças que a humanidade considera como sobrenatural, divino, sagrado e transcendental, bem como o conjunto de rituais e códigos morais que derivam dessas crenças. Trocando em miúdos, não é errado que um grupo de pessoas se reúna para formar uma igreja. Errado será os que dela fizerem parte deturparem seus ensinamentos. Não é o caso das “testemunhas de Diego”, imagino. E é bem melhor para todos e para a felicidade geral da nação (o mundo inteiro, não só a Argentina) que assim continuem. Não precisamos mesmo de “neo-jihadistas”. E, se todas as principais religiões começam com grandes narrativas, depois da vitoriosa odisséia contra a Inglaterra, o principal feito de Maradona terá sido dar um tempo nos tóxicos. O que não deixa de ser um acontecimento bem relevante. Paz do senhor!

domingo, novembro 04, 2007

ADEUS, DE NOVO

A viagem foi um pesadelo de oito horas. Chovia muito e por duas vezes o ônibus saiu da estrada. Nas duas ocasiões, esteve a ponto de capotar, e foi um verdadeiro milagre ninguém ter sofrido lesões graves.
Outro aspecto terrível dessa dantesca odisséia foram os muitos carros e corpos destroçados que os passageiros viram ao longo da odisséia dantesca. Houve um caso, antes de chegarem a Arari, no qual cinco automóveis pegavam fogo ao mesmo tempo. Duas senhoras, de idade avançada, vomitaram quando viram oito cadáveres dilacerados pelas chamas.
Sentado próximo ao motorista do ônibus, Daniel Mendes não deixou de comentar que em momentos como esse fica muito difícil aceitar a existência de Deus. Uma das senhoras que colocara para fora sua última refeição indignou-se e, nem bem refeita da tragédia que testemunhara, indignou-se.
- Como o senhor pode dizer um absurdo desse? - vociferou. - Nós acabamos de escapar duas vezes da morte certa! Se Deus não nos ajudou, que explicação me dá para o que aconteceu com a gente?
O professor Daniel Mendes, 38 anos, tinha uma resposta na ponta da língua, mas preferiu guardá-la para si. A verdade era que, após a morte de Luciana, desfez de um golpe tudo o que relacionava o casal a Deus Nosso Senhor e aos santos dos quais eram devotos. Queimou livros de orações, as coleções de hinos religiosos, a Bíblia que deixavam aberta na mesa da sala no começo do Evangelho de São Mateus, as imagens de São Judas Tadeu, de São Jorge com o dragão, de Nossa Senhora do Carmo, de Nossa Senhora de Fátima e de Nossa Senhora das Dores. Por último, quebrou em pedaços bem miúdos uma impressionante imagem do Cristo Crucificado, em tamanho natural, para a qual construíram uma capela no quintal e diante da qual passavam pelo menos uma hora em orações contritas após o almoço e o jantar, todo santo dia.
Não deu nem tempo a si mesmo de digerir o abrupto rompimento com os desígnios divinos. Foi até o Terminal Rodoviário e comprou uma passagem para São Bento. Porque foi o primeiro município sobre o qual alguém falou, ao chegar à rodoviária. Não conhecia o lugar. Tampouco tinha parentes que lá residissem. Tudo o que queria era ir para bem longe, para alguma cidade que significasse para ele a terra do esquecimento, onda ñão teria mais que pastorear seus rancores, sua raiva, sua mágoa, sua tristeza e, mais importante, a saudade, que parecia não ter limites.
No dia seguinte, apareceu na rodoviária às seis da manhã - que era o horário de saída do ônibus, marcado no bilhete. Imaginou o que pensaria o diretor do colégio da rede particular quando soubesse que seu professor de língua portuguesa, literatura brasileira e redação não desse as caras às sete horas na escola, e na raiva que o homem teria de engolir quando soubesse que Daniel não trabalharia para ele nunca mais. Daniel deu de ombros. "Que vá para o inferno", murmurou. Em seguida, entrou no ônibus. Nesse momento, o céu tornou-se cor de carvão, o ribombar do trovão sacudiu a Ilha e os ventos gelados apavoraram os bentivis em seus beirais carcomidos pelo descuido crônico de uma Prefeitura de merda.
Não houve mais percalços pelo resto da viagem demente. Mas a chuva continuava quando ele colocou os pés na cidade que desconhecia por completo e na qual haveria de viver até o fim de sua residência na terra. Não se sentia cansado. Podia muito bem suportar o peso de suas duas grandes malas, sob o temporal, enquanto procurava uma pousada provisória, a partir da qual procuraria seu castelo definitivo.
Antes de começar sua caminhada, soltou um longo suspiro e disse para o céu enfarruscado:
- Mais uma vez adeus, minha querida Luciana. Você morreu, mas é a minha vida que deve continuar. Sinto muito mesmo.
Em seguida, movendo o pé direito, deu início à última aventura de sua vida.

sábado, novembro 03, 2007

GLÓRIA

Dia de Finados. Para mim, é tempo de reflexão. De pensar no quanto o exemplo dos que já foram dessa para bem melhor pode nos ajudar a compreender melhor o conceito de qualidade de vida.
Para uns e outros, não passa de um dia consagrado ao dolce far niente. Mas nada fazer em relação a trabalho, porque feriado devem ser comemorados com muito álcool e muito forró-sacode. Ou reggae. Ou brega. Sei lá.
Fui ao Cemitério do Turu. Minha mãe e minha tia estão lá. Ou melhor, o que restou de seus corpos físicos. Acredito que estejam - assim como minha avó, mãe de meu pai - sentadas à direita do Trono de Deus. À espera do momento da reencarnação. É, eu levo a sério os princípios do espiritismo.
Antes de entrar no campo-santo, vi alguns buquês que dariam belíssimos enfeites para a sepultura de azulejos brancos. Mas a minha pobreza não me permitia comprá-los. Acabei levando uma pequena e singela flor, acompanhada por um humilde vaso cheio de terra preta. Minha intenção era plantá-lá rente à sepultura - uma celebração à vida e também uma lembrança de que a morte é o portal para a eternidade.
Uma vez diante da sepultura, acendi as oito velas que estavam dentro de uma pequena sacola de plástico, com a qual saíra de casa, e fiz as orações básicas, o Pai-Nosso, a Ave-Maria e a Salve-Rainha. Ao mesmo tempo, as lembranças do bem que minha mãe inspirara, enquanto esteve entre nós, repetiam-se e libertavam o meu coração do pântano da tristeza.
Quando terminei um diálogo silencioso que travara com minha mãe após as orações, ouvi uma trêmula voz feminina começar um Pai-Nosso. Pedi a mamãe que esperasse um pouco e virei-me na direção original da voz. E vi uma senhora idosa - que devia de ter mais de setenta anos -, magra, baixa, o corpo curvado e o rosto esculpido pelo tempo. Seu cabelo tinha um tom de cinza que lembrou-me o de minha finada avó. As mãos dela, com os dedos entrelaçados, eram trêmulas. Vestia camisa e calça jeans - o que me levou a pensar que hoje em dia realmente nada mais é sagrado.
Ela sentiu-se observada. Em seguida, com um movimento ágil que eu não esperava de um corpo tão frágil, virou-se na minha direção, olhou bem nos meus olhos e sorriu, educada. Sorri também para ela. Não tinha como não simpatizar com a boa velhinha. Em seguida, ela retomou a seriedade e continuou sua oração. Eu teria também retornado ao diálogo com minha mãe se um vento maluco - desses que só ocorrem mesmo em novembro - não girasse por sobre o cemitério feito uma rápida tempestade tropical. Apagou todas as velas colocadas em todas as sepulturas e jogou meia tonelada de poeira e folhas secas sobre os túmulos sem parentes.
A lufada quase jogou no chão a pobre velha. A coitada precisou de vários minutos para se recompor. Eu precisei desse tempo para limpar a sepultura das irmãs queridas. Quando terminei, ouvi um lamento pontuado por suspiros de pura resignação: "Meus fósforos acabaram...". Era a velha. Acabara de reorganizar suas onze velas, mas não tinha com que acendê-las. Depois de acender as minhas, caminhei até a pobre desamparada, a fim de ajudá-la.
No Dia de Finados, reza a tradição que a luz de velas acesas indicam aos que se foram e porventura se encontrem na escuridão, o caminho que os levará à presença de Deus. Enquanto acendia as onze velas, soube da senhora que visitava a campa do marido, cujo casamento durou exatos cinqüenta e um anos, nove meses e quatro dias. Um longo romance, que teve fim quando ele escorregou no banheiro e bateu a cabeça na pia. Isso aconteceu há uns dois anos. Minha mãe faleceu há nove. Não tenho recordação alguma de ter visto antes a velhinha. Mas a vida é assim mesmo. Só damos conta do que e de quem nos interessa. O que ocorre à margem da existência não é importante.
No começo da vida sem ele, a senhora dissera, ela visitava o cemitério todo santo dia após o enterro. E em todas as visitas escandalizava os próprios vizinhos do marido ostentando, a poderosos decibéis, seu pranto de viúva recente. Até que um de seus doze irmãos lhe fez ver que a regra de ouro que ajudava a cicatrizar a ferida da perda era dar chance ao morto de se acostumar à sua condição de espírito. Porque o finado muito chorado não tem condições de evoluir. Crendice popular? Talvez. Mas não deixa de ser uma verdadeira lição para os que são chegados a exagerar no pranto e no luto.
Após acender as benditas velas, vi que eram quase quatro horas da tarde. Precisava voltar para casa. Quando retornasse, tomaria um rápido banho e procuraria o rumo do jornal. Trabalharia até altas horas e certamente esqueceria dos eventos do Dia de Finados. Graças a Deus, não ocorreu essa tragédia. Vinte e quatro horas depois de ter conhecido a simpática velhinha que homenageava o marido que tanto amara em vida e continuava fazê-lo com ele morto, ainda sou capaz de detalhar todos os passos que me levaram até a presença daquela figura tão doce. Talvez, quem sabe, se por acaso chegar aos mesmos setenta e poucos dessa boa criatura, não vá ter a mesma capacidade de discernimento. Se isso acontecer, espero que pelo menos possa contar com a distração dos netos. Sei lá.
Tudo o que sei agora é que, antes de ir embora, perguntei à senhora qual era o seu nome. "Glória", ela respondeu. Tinha que ser. Fazia todo o sentido.
Glória. Neste mundo, há poucas pessoas capazes de fazer justiça ao próprio nome. E tenho dito.

sexta-feira, novembro 02, 2007

A TERRA DO ESQUECIMENTO

A valsa surge de alguma das casas vazias da rua deserta daquela cidade abandonada. E não era uma cidade pequena. Ainda que não fosse uma das principais. Para percorrê-la de um extremo a outro, perdia-se apenas trinta minutos de vida. Ainda que grande parte do tempo de nossa existência se perca ao sabor das efemérides e das trivialidades.
Eu olhava para a rua deserta e não via nada além de um pequeno redemoinho que arrastava folhas mortas, mas sem sair do lugar. O silêncio era absoluto. Não ouvia sequer o canto dos pássaros. O mundo estava tão quieto que podia ouvir, com total nitidez, as revoluções por minuto do meu coração em seu cárcere de pele e ossos.
A cidade era a última etapa do meu exílio. Um ano antes, fui banido da minha terra natal porque - assim disseram os tribunos - meu engenho extrapolava o que todos na época consideravam os limites do conhecimento humano. De fato, minha família e meus amigos, diante de alguns dos meus inventos e experiências, não sabiam se testemunhavam um milagre ou um crime cometido contra o "Criador de Todas as Coisas" - se bem que ambas as alternativas davam no mesmo, pois os milagres, afirmavam, eram unicamente da alçada dos anjos ou dos homens que consideravam pios. Qualquer feito pelo menos digno de nota, cometido por um "mortal comum", recebia, de imediato, o rótulo de "transgressão da ordem vigente".
Mas não foi apenas por esse motivo que os tribunos (alguns dos tais "homens pios") decidiram pela minha expulsão. Na manhã de quarta-feira, em outubro, para a qual estava marcada a audiência em que eu tentaria convencê-los de que meu engenho afinal de contas estava a serviço da moral e dos bons costumes (a meia-verdade que teria sido minha salvação), Manoela apareceu na Magistratura, acompanhada pelos pais indignados.
Não sou capaz agora e também não faço a menor questão de recordar o sobrenome daquele astuto espírito maligno. Caso não tenha morrido sufocada com o veneno de sua própria maldade, já deve ter feito seus dezesseis anos. Aos 15, há um ano, mostrou como uma criança também pode praticar maldades como se adulta fosse.
Pois entrou na Magistratura de cabeça erguida e muito determinada a obter punição para o meu atentado à sua castidade. Jamais tive qualquer contato com essa criatura. Não teria nem mesmo se fosse louco o bastante para desejar menores de idade. Em minha terra natal, atos como esse são castigados com a execução sumária. Manoela inventou uma história na qual eu bebera mais do que a conta em um ritual pagão. E depois corri até as ruas mais obscuras da Cidade Baixa - onde ela morava, assim fiquei sabendo - para "caçar almas inocentes". A expressão utilizada pelos três soou com um dramatismo tão fácil que fui obrigado a rir dos infelizes. Já os tribunos não viram a mesma graça naquela situação incômoda para todos.
A pressão popular (todos estavam contra mim) para que eu fosse expulso cresceu após o advento de Manoela e seus pais. Não fui executado porque os tribunos chegaram à conclusão de que, na verdade, minha inclinação era pela "prática exacerbada de conecimento científico". Por outro lado, eu tinha, de fato, o costume de ficar bêbado nos rituais. O que poderia ter ensejado um novo processo - aceitação do paganismo - se eu mesmo não tivesse ido à Magistratura, a fim de perguntar o que haviam decidido a respeito da segunda acusação. "Não sabemos se você a violentou ou não", disseram os tribunos. "Pelo sim, pelo não, o melhor será você partir logo para seu exílio".
E assim começou a viagem pelo quatro cantos do mundo, até alcançar a terra do esquecimento, na qual uma valsa misteriosa surgia de uma das casas vazias de uma rua deserta, e na qual o silêncio era tão esmagador, tão opressivo e insidioso que eu conseguia ouvir, com impressionante nitidez, as revoluções por minuto do meu coração, aprisionado em seu cárcere de pele e ossos.

quinta-feira, novembro 01, 2007

CORAÇÃO DE AREIA

O professor Daniel Mendes acreditava estar a dois passos de seu paraíso perdido.
Era quarta-feira, como não poderia deixar de ser. Uma quarta-feira sombria, nascida repleta de maus presságios às oito horas, quando o sol quase não superou uma grossa camada de nuvens negras. Mas foi uma vitória efêmera, porque logo os trovões iniciais apavoraram a cidade inteira, uma estranha ventania polar causou alvoroço na Rua Grande e logo em seguida desabou a Mãe de Todas as Tempestades - como mais tarde a imortalizariam os historiadores.
Era novembro, também, e por isso São Luís do Maranhão não estava pronta para o temporal. A época de mau tempo, em nossa cidade, vai de janeiro até o início de junho. No segundo semestre, o sol inclmente e o calor sem tréguas perturbam juízos, derrubam pareceres e condenam acordos. Por isso, quando viram a capital prematuramente devastada pelo aguaceiro, alguns incréus não resistiram a colocar "mais essa piada de mau gosto" no "vasto repertório das péssimas anedotas de Deus".
Nessa quarta-feira aziaga, o professor Daniel Mendes acordou com o calor indesejável de todos os dias, às seis em ponto, como era seu costume. Um solteirão convicto de quase trinta anos, morava na Cidade Operária, numa casa pequena em que não se precisava dar três passos para chegar ao quintal - dominado por uma solitária goiabeira, que ainda não estava florido.
Daniel Mendes era um sujeito alto e excessivamente magro, míope até não poder mais, e que não sabia coisa alguma a respeito de roupas. Por outro lado, lia de tudo. Até bula de remédio e tratados episcopais. E tinha bom gosto também, em suas leituras, pois não havia espaço em sua biblioteca para as "obra-primas" de Paulo Coelho.
Às sete em ponto, já estava confortavelmente instalado no banco de seu ônibus de todos os dias, a caminho da escola particular para cujos alunos transmitia boa parte do que aprendera na Faculdade de Letras. E, como em todos os dias, distraía-se da viagem de 40 minutos até o bairro Renascença com um dos livros de Gabriel García Márquez. Já havia percebido, antes de sair de casa, a luta do sol contra as nuvens tenebrosas, e percebera as primeiras lufadas do vento polar. A caminho do ponto de ônibus, viu os postes com suas luzes ainda acesas. Viu também alguns precavidos saindo de casa com guarda-chuvas. Mas não alterou seu cotidiano por isso. Quem mora aqui em São Luís sabe muito bem como o tempo daqui se modifica ao sabor de desígnios travessos de algum deus-moleque.
A situação não se alterou até quando o ônibus chegou à Cohab. E foi então que o professor Daniel Mendes, aos 29 anos, acreditou que chegara a uma espécie de encruzilhada particular. Porque cometeu o erro de erguer a cabeça - depois de ser atingido por um golpe do vento gelado - e perder o fio da meada da trama sobre a qual se concentrara. No que ergueu a cabeça, viu a mulher de cabelos vermelhos que um dia, numa época que para ele começava a pertencer a uma outra vida, estivera em seus braços - ambos deitados no que poderia ter sido o leito conjugal, o ponto de partida para um casamento que tinha tudo para ter sido perfeito.
Mas não foi. Porque a mulher de cabelos vermelhos mostrou que tinha areia no coração. Sem mais nem menos, num Carnaval que Daniel haveria de recordar mesmo em um milhão de encarnações, ela o abandonou em plena Madre Deus, no coração da fuzarca do Bicho Terra, depois de confessar sua paixão inesperada por outra pessoa.
A mulher de cabelos vermelhos e andar de dama em baile de fidalgos desapareceu por uma rua da Cohab. Nesse preciso instante, o ônibus parou - o último de uma extensa fileira de veículos, todos buzinando ao mesmo tempo. Acima de todo bem e de todo mal, o sol lentamente ia perdendo sua batalha e o vento polar intensificava-se. Fora do ônibus, pedestres começavam a caminhar mais rapidamente. Metade dos quisques da feira da Cohab não seriam abertos nessa quarta-feira miserável. A outra metade ficaria à mercê do temporal. Segundo os jornais dos dias seguinte, os donos dos estabelecimentos passariam semanas calculando os prejuízos.
E o professor Daniel Mendes - que não tivera a coragem de pelo menos tentar recuperar o tempo perdido - permaneceu sentado onde estava, com seu livro sobre os joelhos, sem atentar para a valsa dos ponteiros de seu relógio. Eram quase oito horas. Faltavam cinco minutos para o início da Mãe de Todas as Tempestades.