http://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2013/06/1297427-a-passeata.shtml
Tinha punk de moicano e playboy de mocassim. Patricinha de olho azul e
rasta de olho vermelho. Tinha uns barbudos do PCO exigindo que se
reestatize o que foi privatizado e engomados a la Tea Party sonhando com
a privatização de todo o resto. Tinha quem realmente se estrepa com
esses 20 centavos e neguinho que não rela a barriga numa catraca de
ônibus desde os tempos da CMTC. (Neguinho, no caso, era eu). Tinha a
esperança de que este seja um momento importante na história do país e a
suspeita de que talvez o gás da indignação, nas próximas semanas, vá
para o vinagre.
Sejamos francos, companheiros: ninguém tá entendendo nada. Nem a
imprensa nem os políticos nem os manifestantes, muito menos este que vos
escreve e vem, humilde ou pretensiosamente, expor sua perplexidade e
ignorância.
Anteontem, depois da passeata, assisti ao "Roda Viva" com Nina Capello e
Lucas Monteiro de Oliveira, integrantes do Movimento Passe Livre. Ficou
claro que, embora inteligentes e bem articulados, eles tampouco
compreendem onde é que foram amarrar seus burros. "Vocês começaram com
uma canoa e tão aí com uma arca de Noé", observou o coronel José
Vicente. Os dois insistiram que não, o que há é um canoão, e as mais de
200 mil pessoas que saíram às ruas no Brasil, segunda-feira, lutavam por
transporte público mais barato e eficiente. A posição dos ativistas de
não se colocarem como os catalisadores de todas as angústias nacionais e
seguirem batendo na tecla do transporte só os enobrece --mas estarão
certos na percepção?
Duzentas mil pessoas de esquerda, de direita, de Nike e de coturno por causa da tarifa?
"Por que você tá aqui no protesto?", perguntou a repórter do "TV Folha" a
uma garota na manifestação do dia 11: "Olha, eu não consigo imaginar
uma razão para não estar aqui, na verdade", foi sua resposta. Corrupção,
impunidade, a PEC 37, o aumento dos homicídios, os gastos com os
estádios para a Copa, nosso IDH, a qualidade das escolas e hospitais
públicos são todos excelentes motivos para que se saia às ruas e se
tente melhorar o país --mas já o eram duas semanas atrás: por que não
havia passeatas? Será porque a chegada do PT ao poder anestesiou os
movimentos sociais, dificultando a percepção de que o Brasil vem
melhorando, melhorando, melhorando e... continua péssimo? Ou será porque
agora o Facebook e o Twitter facilitam a comunicação?
Se as dúvidas sobre as motivações --que brotam do solo minimamente
sondável do presente-- já são grandes, o que dizer sobre o futuro do
movimento? Marchará ou murchará? Caso cresça: conseguirá abaixar a
tarifa? E, no longo prazo, terá alguma relevância? Mais ainda: adianta
ir às ruas, fazer barulho? Ou a própria passeata extingue o impulso de
revolta que a criou e voltamos todos para o mundinho idêntico de todos
os dias, com a sensação apaziguadora de que "fiz a minha parte"?
Não tenho a menor ideia, estou mais confuso que o Datena diante da enquete,
mas num país injusto como o nosso, em que a única certeza parecia ser a
de que, aconteça o que acontecer, o Sarney estará sempre no poder, as
dúvidas dos últimos dias são muitíssimo bem-vindas.
Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e
crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34).
Escreve às quartas na versão impressa de "Cotidiano".
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