"É CLARO QUE, COMO TODO ESCRITOR, TENHO A TENTAÇÃO DE USAR TERMOS SUCULENTOS: CONHEÇO ADJETIVOS ESPLENDOROSOS, CARNUDOS SUBSTANTIVOS E VERBOS TÃO ESGUIOS QUE ATRAVESSAM AGUDOS O AR EM VIAS DE AÇÃO, JÁ QUE A PALAVRA É AÇÃO, CONCORDAIS?" CLARICE LISPECTOR - "A HORA DA ESTRELA"
terça-feira, novembro 10, 2009
Sarney procura cineasta para projeto de filme sobre sua trajetória
Colaboração para a Livraria da Folha
O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), quer ver sua história nos cinemas, a exemplo do que vai ocorrer no começo de 2010 com a cinebiografia do presidente Lula.
A Livraria da Folha apurou que Sarney convidou o cineasta carioca Silvio Tendler para o projeto. O documentarista já fez produções sobre os ex-presidentes da República João Goulart (1918-1976) e Juscelino Kubitscheck (1956-1961). Atualmente, Tendler filma a história de Tancredo Neves (1910-1985). Foi nas filmagens para esse trabalho sobre Tancredo que surgiu o contato entre o senador e o cineasta.
Já existe um documentário sobre o presidente do Senado, feito por Fernando Barbosa Lima (que morreu no ano passado), mas o resultado desagradou Sarney, segundo a Livraria da Folha apurou.
A ideia é que o filme sobre Sarney seja lançado em 2010, aproveitando que, no próximo dia 24 de abril, o senador completa 80 anos. Ele nasceu em Pinheiro (MA) e foi presidente do Brasil entre 1985 a 1990.
A exemplo de Lula, Sarney quer ter interferência na obra audiovisual. Atualmente, a trajetória do presidente do Senado é alvo de interesse no mercado editorial, onde "Honoráveis Bandidos - Um retrato do Brasil na era Sarney" figura entre os livros mais vendidos no país. Está em quarto lugar na lista divulgada no último sábado pela Folha. Nesta semana, a expectativa é que suba posições, como se observou em levantamentos divulgados nesta terça por outras livrarias.
Na semana passada, o livro foi lançado em São Luís (MA), na sede do Sindicato dos Bancários, com direito a tumulto e pancadaria. O autor Palmério Dória teve de andar acompanhado de uma equipe de seguranças. Sarney já disse que não viu, não leu e não se interessa pela obra, que fala até das intimidades sexuais da família Sarney. Com certeza, "Honoráveis Bandidos - Um retrato do Brasil na era Sarney" não vai inspirar um filme aprovado pelo senador.
segunda-feira, novembro 09, 2009
Autor diminui papel de Reagan e dos Eua na queda do Muro de Berlim
Michael Meyer
Pergunte a um norte-americano médio como terminou a Guerra Fria e é muito provável que ele ou ela terá uma resposta pronta. "Sr. Gorbachev, derrube este muro", disse Ronald Reagan. E então, como se as palavras fossem ações, assim foi.
Todos se lembram dessa frase imortal. Uma geração de escritores de discursos gostaria de tê-la elaborado. Uma geração de estadistas gostaria de tê-la proferido. E para uma geração de norte-americanos, particularmente na direita política, ela se tornou um símbolo de toda uma visão geopolítica do mundo.
Como [o famoso jogador de futebol norte-americano] Gipper, precisamos apenas nos colocar firmemente diante dos tiranos. Ocos em seu íntimo, eles cairão. Seus povos oprimidos se levantarão, triunfantes, como as multidões cativas de europeus do leste de outrora. A democracia florescerá.
Neste 9 de novembro de 1989, faz 20 anos que o muro de Berlim caiu. Não importa que Reagan tenha feito seu discurso épico dois anos antes disso. Durante os próximos dias e semanas, ele será transmitido e retransmitido nas telas de TV norte-americanas, reforçando o mito tão adorado por todos os norte-americanos sobre a Guerra Fria. Nós vencemos!
Vencemos? Bem, sim e não. Certamente, não o fizemos sozinhos. Se você estivesse "in loco" durante o tumultuado ano de 1989, como eu estava quando era correspondente da Newsweek, veria um quadro mais complexo.
A principal força que desencadeou as grandes mudanças veio do Leste, não do Oeste: Mikhail Gorbachev. Repentinamente livres para experimentar, países intermediários encontraram caminhos para um novo futuro. A Polônia realizou eleições - que os comunistas do país perderam, decisivamente. A Hungria rompeu sua Cortina de Ferro, desencadeando um êxodo vindo de toda parte do bloco do Leste. Na antiga República Democrática Alemã, os alemães orientais se encheram de coragem e, às centenas de milhares, tomaram as ruas.
À medida que nos voltamos para esses eventos que abalaram o mundo, deveríamos lembrar que a sorte, a mera coincidência, desempenhou um papel gigantesco. Chame isso de lógica da bagunça humana, cuja Prova A é certamente a "queda" do muro propriamente dita. Ela começou com os alemães orientais impacientes, pedindo liberdade não de uma forma abstrata, mas uma liberdade específica: o direito de viajar. Em face aos protestos em massa, o líder da Alemanha Oriental Egon Krenz decidiu imprudentemente conceder aquilo que ele não tinha mais medo de proibir - e prometeu abrir os portões para o Ocidente.
Poucos se lembram, hoje, que esse direito era estritamente controlado, sujeito a todos os tipos de regras e regulações comunistas - tampouco se lembram que a decisão deveria entrar em vigor em 10 de novembro. Mas o novo porta-voz do Partido Comunista também não se lembrou disso na época. Ao ser questionado, em uma coletiva de imprensa, sobre quando a nova política seria implementada, ele fez uma pausa, mexeu em seus papéis, ajeitou os óculos, depois respondeu com um dar de ombros: "... ab sofort" - imediatamente.
Para Krenz, "imediatamente" significava no dia seguinte. Para o povo da Alemanha Oriental, as palavras queriam dizer "naquele exato momento".
Eu estava do lado oriental do posto de checagem Charlie naquela noite, observando enquanto milhares de pessoas se reuniam; uma multidão involuntária encarava uma fileira de poucos guardas da Volkspolitzei, apontando os dedos para suas armas. "Abram! Abram!", gritavam as pessoas.
Atrás da polícia e de seus cães de guarda, atrás da torre de observação e do arame farpado da infame linha da morte, do outro lado do cinzento Muro de Berlim, vinha uma resposta de uma multidão igualmente ruidosa: "Venham!"
Dentro de seu posto de comando blindado, o capitão da guarda de fronteira da Alemanha Oriental, um homem musculoso, de queixo quadrado e com o ar irritável de um doberman, discou repetidas vezes o telefone. Ligações semelhantes vieram de vários postos de checagem por toda a extensão do Muro. O que está acontecendo? O que devemos fazer?
Mas nenhuma instrução foi dada pelo Ministério de Interior. Por uma última vez, ele colocou seu telefone no gancho. Por um momento, ficou imóvel como uma pedra. Talvez ele tivesse acabado de ser informado de que o cruzamento de Bornholmer Strasse, ao norte, havia aberto suas barreiras momentos antes, tomado por cerca de 20 mil pessoas. Talvez ele tenha chegado à sua própria decisão. Qualquer que seja o caso, às 23h17, precisamente, ele ergueu os ombros, como se dissesse: "Por que não?"
"Alles auf", ordenou. "Abram tudo", e os portões se abriram amplamente. Uma torrente de pessoas passou por eles, como se houvessem destampado o ralo da banheira. Em uma batida de coração o Muro caiu, e com ele o mundo comunista. A história mudou por causa do uso equivocado de uma única palavra, puro acidente humano.
Se há uma lição a ser tirada disso, ela tem a ver com os perigos de construir mitos, em uma tentativa de "gerenciar a história", como afirma Reinhold Neibuhr. Sim, os Estados Unidos ganharam a Guerra Fria com seu Plano Marshall, a doutrina da contenção, a chantagem da destruição nuclear mutuamente garantida.
Mas os norte-americanos não se preocuparam em entender como, exatamente, ela terminou. Em vez de apreciar sua complexidade, para não mencionar o elemento da sorte, nós creditamos a nós mesmos uma vitória inequívoca. Sem estender mais o assunto, pode-se argumentar que nada mudou desde essa história mitologizada até a desventura dos Estados Unidos no Iraque.
Michael Meyer, diretor de comunicações para o secretário geral da Organização das Nações Unidas, é autor de "O Ano que Mudou o Mundo".)
Tradução: Eloise De Vylder
Após "repetição de erros", Simon não apita mais no Campeonato Brasileiro
Em São Paulo
A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) anunciou na tarde desta segunda-feira que o árbitro Carlos Eugênio Simon está afastado do Campeonato Brasileiro. A suspensão do gaúcho presente no quadro da Fifa vem um dia depois da atuação polêmica na vitória por 1 a 0 do Fluminense sobre o Palmeiras neste domingo, mas acontece em "decorrência" da sucessão de equívocos ao longo do torneio.
Em nota oficial publicada em seu site oficial, a CBF informou que "em virtude da repetição de erros cometidos durante a competição, o árbitro Carlos Eugênio Simon (RS), que apitou o jogo Fluminense x Palmeiras, domingo, no Maracanã, está afastado até o final do Campeonato Brasileiro 2009."
Na partida em questão, Simon invalidou um gol marcado pelo atacante Obina no primeiro tempo, quando a partida estava empatada por 0 a 0. O árbitro gaúcho alegou que o palmeirense cometeu falta no adversário Maicon ao subir para cabecear, mas as imagens televisivas mostraram que o camisa 28 do time alviverde, na verdade, foi puxado pelo jogador do Flu.
Árbitro brasileiro nas Copas do Mundo de 2002 e 2006, Simon também não viu uma cabeçada que o atacante Alan deu no lateral-esquerdo Pablo Armero, que inclusive deixou o campo sangrando com um corte no supercílio, na segunda etapa de jogo. Ademais, o zagueiro alviverde Danilo teria sofrido pênalti após ser derrubado por Gum.
O desempenho de Simon na partida causou ira na diretoria palmeirense. Ainda nos vestiários do Maracanã, o gerente de futebol Toninho Cecílio avaliou a atuação do árbitro como "covarde" e intimou o juiz a prestar esclarecimento pela invalidação do gol de Obina.
Já o presidente Luiz Gonzaga Belluzzo vociferou em carta publicada na manhã desta segunda-feira, dizendo ao Blog do Juca que o gaúcho era um "operador oficial de interesses escusos" e, ao jornal Lance!, que o apitador "é vigarista, safado e crápula".
Outra atuação polêmica de Simon neste Brasileirão se deu no clássico paulista entre São Paulo e Santos, em 25 de outubro, pela 31ª rodada. O mediador do jogo expulsou o goleiro Rogério Ceni por um choque com o atacante santista Jean e foi acusado pelo camisa 1 tricolor de "persegui-lo". Os santistas também se queixaram do pouco tempo de acréscimo dado pelo juiz no segundo tempo.
Apesar da suspensão de âmbito nacional recebida nesta segunda-feira, Carlos Eugênio Simon está escalado para apitar o confronto entre River Plate, do Uruguai, e LDU, do Equador, na quinta-feira, pela ida das semifinais da Copa Sul-Americana.
Também nesta segunda, a CBF informou que o árbitro Nielson Dias, responsável pela partida entre Vasco e Juventude no sábado, está fora do próximo sorteio. O apitador deixou de marcar um toque de mão de Elton no lance do primeiro gol do clube carioca, que retornou à primeira divisão com uma vitória sobre os gaúchos por 2 a 1.
sábado, novembro 07, 2009
"Em 1989, a história desembestou", diz Mikhail Gorbachev
Entrevista concedida a Daniel Vernet
Aos 78 anos, Mikhail Gorbachev continua a percorrer o mundo por causa de sua fundação, que tem sede em Moscou, na Rússia. Ele também é presidente da World Political Forum, uma organização com base em Turim e mantida por coletividades locais italianas. No ex-presidente soviético há uma mistura de orgulho por ter sido responsável pelas reformas que abalaram a Europa, e de lamentação pelo fim da URSS, que ele teve de ratificar em 25 de dezembro de 1991.
Ele continua certo de que dois objetivos contraditórios - o restabelecimento da soberania dos povos e a preservação da URSS - eram compatíveis. Entretanto ele pensa que, nos tumultos que marcaram o fim da guerra fria, o positivo prevaleceu sobre o negativo.
Le Monde - Quando o senhor pensa no ano de 1989, quais são as imagens, as lembranças, que lhe vêm espontaneamente à cabeça?
Mikhail Gorbachev - Para mim foi o início da realização de meu projeto mais importante, a reforma política. O Congresso de Deputados havia sido eleito no mês de maio sobre novas bases. Era a primeira vez que havia eleições livres na Rússia. Somente esse fato marcava o início da primavera política. Em seguida, tivemos de constituir o Parlamento e o novo governo. Era um verdadeiro teatro político, aberto diante do povo, e ninguém mais podia voltar atrás. Para mim era o resultado da parte triunfal da Perestroika. Depois, em 1990, começou a parte mais dramática.
Le Monde - Falemos sobre a situação internacional, na Europa em particular, e a queda do muro de Berlim...
Gorbachev - Evidentemente, vivíamos transformações formidáveis. Em junho de 1989, eu estava em visita oficial na Alemanha Ocidental. Fui recebido de maneira muito calorosa, entusiasmada. Então, começaram a me fazer a pergunta abertamente: para quando é a reunificação da Alemanha? O chanceler Helmut Kohl e eu estávamos preparados para dizer que era evidente que esse problema deveria ser resolvido um dia, mas que não era da atualidade. Era mais um problema para o século 21. Nesse ponto, Helmut e eu estávamos de acordo.
Le Monde - Nesse ponto, o senhor também estava de acordo com François Mitterrand?
Gorbachev - Sim. E devo lhe dizer que todos meus amigos políticos, todos meus parceiros, eram partidários de um processo mais longo. François Mitterrand era favorável a uma espécie de confederação que poderia se fundar sobre dois pilares, a Comunidade Europeia no Oeste, e a Europa Oriental, reformada pela perestroika. Ele estava de acordo comigo para dizer que a Europa devia respirar com seus dois pulmões. Então cada um de nós fazia, à sua maneira, tentativas de prever a História. E todos nós nos enganamos.
Le Monde - A História saiu dos trilhos?
Gorbachev - Totalmente. A História desembestou. Em 9 de novembro, foi o Muro que se abriu, e depois, foi um turbilhão incontrolável. A História transbordou. Tínhamos consciência de que nossa política, a política em geral, era incapaz de acompanhar o processo histórico. Ao mesmo tempo, o outono de 1989 viu acontecerem as "revoluções de veludo" na Europa Oriental. Um processo ao mesmo tempo muito promissor e que continha perigos inéditos. De qualquer forma, era a natureza da História. Porque as mudanças na Europa Oriental e a redescoberta da soberania total por esses países levaram a mudanças importantes para o conjunto da Europa. Para mim, era o momento em que era preciso recomeçar a refletir sobre a construção da casa comum europeia.
Isso não funcionou porque, acredito, a Europa Ocidental e os americanos consideraram que era preciso interpretar todos esses acontecimentos como a falência do comunismo e a derrota da Rússia na Guerra Fria. Que era o triunfo dos valores do mundo ocidental. Para mim, é isso que explica o comportamento de meus amigos ocidentais, que eu classificaria como imprudente. Isso provocou a derrapagem de todo o processo, e foram necessários tempo e esforços para sair desse caos. Esse foi o ano de 1989. Esse ano definiu as bases do que veio a seguir.
Le Monde - A respeito da reunificação alemã: em que momento o senhor teve certeza de que a reunificação era inevitável?
Gorbachev - Já em outubro de 1989, no momento do 40º aniversário da RDA [República Democrática da Alemanha]. Uma grande manifestação havia sido organizada para esse aniversário. Em Berlim Oriental houve um desfile impressionante no qual estavam representadas todas as regiões da RDA. E eu via que os participantes procuravam se dirigir diretamente a mim: "Ajude-nos, ajude-nos!".
Le Monde - Um historiador americano escreveu que o senhor foi o primeiro e único dirigente soviético a ser popular tanto em Bonn quanto em Berlim Oriental, e também em Pequim, durante as manifestações estudantis da primavera de 1989...
Gorbachev- Sim, é verdade.
Le Monde - Mais popular, de qualquer forma, do que o governo da Alemanha Oriental...
Gorbachev - Para o 40º aniversário da RDA, Mieczyslaw Rakovski, o premiê polonês, estava na tribuna com o general Jaruzelski, bem atrás de mim. Ele falou em meu ouvido: "Mikhail Serguêievitch, você entende alemão? - O suficiente para entender o que os manifestantes proferem", eu disse. Rakovski: "Você entende que é o fim?" Pronto, foi assim. Em compensação, Erich Honecker (chefe do partido alemão-oriental) se comportava como se não entendesse mais nada. Ele cantava, estava disposto a dividir conosco esse entusiasmo artificial. Eu até tinha boas relações com ele. Mas toda vez ele me explicava que, talvez para a União Soviética a perestroika fosse algo de necessário, ao passo que na RDA as reformas já haviam sido feitas. Não eram necessárias mais mudanças. Quando encontrei toda a direção alemã-oriental, eu disse: aquele que chega tarde demais é punido pela vida. É verdade que para confirmá-lo eu me servia de meus próprios exemplos, do exemplo da URSS. Em seguida, evidentemente, entendi que a frase havia sido retirada de seu contexto, e que eu anunciava o fim da RDA.
No que diz respeito à reunificação, considerávamos fórmulas diferentes, por exemplo, a união monetária, uma confederação, etc. Em meados de dezembro de 1989, o novo chefe do governo da Alemanha Oriental, Hans Modrow, me ligou para dizer: não há mais outras variantes, só nos resta a unificação.
Eu tinha contatos regulares com os alemães ocidentais, com Hans Dietrich Genscher, o ministro das Relações Exteriores. Esses contatos eram essenciais. Uma vez passadas as festas de fim de ano, viam-se por toda a Alemanha manifestações em massa. Para mim, era o sinal de que era imprescindível mudar de política. Em 26 de janeiro de 1990, organizei uma espécie de seminário da direção da URSS para examinar as informações e os relatórios sobre todos os aspectos da questão alemã e da situação na RDA. Chegamos à conclusão de que era o momento de mudar de política e de levar em consideração as aspirações alemãs para a reunificação.
Le Monde - O senhor pode contar como se desenrolou o encontro de Kiev com François Mitterrand, em dezembro de 1989?
Gorbachev - Os acontecimentos na Alemanha preocupavam bastante François Mitterrand. Ele queria me sondar a respeito de minha avaliação da situação. Ele estava incerto quanto à sequência dos acontecimentos, mas pensava que não estavam indo bem. A atitude de François Mitterrand podia ser resumida com a famosa frase (atribuída ao escritor François Mauriac): "gostamos tanto da Alemanha que preferimos ter duas dela". Era ainda mais evidente para (a primeira-ministra britânica) Margaret Thatcher: na época, ela era agressivamente hostil à unificação da Alemanha. Mas, apesar de tudo, François Mitterrand e Margaret Thatcher deviam levar em conta as realidades e o fato de que o processo de reunificação estava em andamento. Eu sabia que Helmut Kohl estava em contato permanente com George Bush.
Finalmente, a solução encontrada para acompanhar esse processo era a fórmula "2+4": os dois Estados alemães e as quatro potências vitoriosas do Reich em 1945. Apresentamos claramente nossa posição: os alemães são livres para escolher eles mesmos as modalidades de seus acordos entre si. Mas no que diz respeito aos aspectos exteriores da reunificação, estes devem ser integrados em um acordo internacional. As questões territoriais, as fronteiras, tudo isso devia ser resolvido antes que a Alemanha se tornasse totalmente soberana.
Le Monde - O senhor fez alusão aos contatos estreitos entre o chanceler alemão e o presidente americano. O senhor tem a impressão de ter sido enganado por Helmut Kohl?
Gorbachev - Eu diria que ele tinha uma atitude ambígua. Tinha a impressão de que estávamos de acordo em cada etapa, de que havíamos nos entendido para não impedir os alemães de entrarem em acordo entre si, ao passo que o conjunto dos aspectos exteriores devia ser tratado nos consultando.
Mas nem tudo se passou assim. Não se pode esquecer que deveriam acontecer eleições na Alemanha Oriental. Helmut Kohl, depois de ver as grandes manifestações em Berlim Oriental e nas outras cidades alemães orientais, se esqueceu um pouco de seus comprometimentos. Ele soltou seu plano de dez pontos, sem nem consultar seu ministro de Relações Exteriores. Kohl agia em função dos interesses de seu próprio partido para garantir sucesso político para si. Mas, como um todo, os alemães se comportaram de maneira correta. Sobretudo no que diz respeito ao exército soviético, que permanecia na RDA. Eles cumpriram todas suas promessas, inclusive o abandono das armas de destruição em massa por parte da Alemanha. Todas as promessas, com exceção de uma: quando começou o processo de desintegração do pacto de Varsóvia, os ocidentais se puseram a estender a Otan para o Leste. Sob Clinton e Ieltsin.
Le Monde - No que diz respeito à entrada da Alemanha reunificada na Otan, o senhor havia entrado em acordo com Helmut Kohl, durante sua visita ao Cáucaso, em julho de 1990.
Gorbachev - Eu já havia dito a Bush que a Alemanha reunificada tinha o direito de escolher suas alianças. "Por que você tem tanto medo da Alemanha?", me perguntou o presidente americano. Eu lhe respondi que era ele que tinha medo, e que era por isso que eles preferiam tê-lo dentro da Otan. Segundo a famosa frase sobre o papel da Aliança Atlântica: "To keep the Russians out, the Americans in and the Germans down" ("Manter os russos fora, os americanos dentro, e os alemães por baixo").
Le Monde - O senhor acreditava que era melhor ter a Alemanha em uma aliança, mesmo a Aliança Atlântica, do que vê-la oscilando para o centro da Europa?
Gorbachev - Não, minha posição não era essa. Havíamos dado nosso consentimento para que a Alemanha reunificada decidisse por si mesma, uma vez recuperada sua soberania. Mas eu diria que, no final, havia uma espécie de cumplicidade entre Kohl e Bush.
Le Monde - No conjunto, que balanço o senhor faria desse ano de 1989? A Europa se libertou, muros caíram...
Gorbachev - Eu não falaria em acontecimentos positivos, mas sim de grandes acontecimentos. Eu colocaria em primeiro lugar as primeiras eleições livres na União Soviética. Depois, as "revoluções de veludo" nos Estados da Europa Oriental. Elas têm uma importância capital. Foi isso que encorajou os alemães para o caminho da unificação e que, portanto, levou à queda do Muro e à reunificação alemã. O próximo passo mais lógico é que durante nosso encontro em Malta (em dezembro de 1989) dissemos para Bush: não somos mais inimigos, a guerra fria terminou.
Le Monde - Uma declaração um pouco prematura?
Gorbachev - Evidentemente. Talvez devêssemos ter evitado começar a Guerra Fria, ou tê-la terminado mais cedo. Mas imagine o que teria acontecido se tivéssemos mantido sem mudança nossa política em relação à Alemanha, se tivéssemos continuado a manter uma certa desconfiança em relação à nação alemã? Em uma Europa liberta, não tínhamos nenhuma razão para continuar uma política de discriminação em relação à Alemanha. Eu diria que o fio condutor de todos esses acontecimentos foi o restabelecimento da soberania dos povos.
Le Monde - E o aspecto negativo?
Gorbachev - O negativo não está associado ao ano de 1989, mas sim ao que veio na sequência. É verdade que houve acontecimentos que poderíamos considerar negativos, mas eles eram secundários. Mesmo quando uma cozinheira prepara o bortsch, o prato nacional russo, ela pode se enganar na dose do tempero.
Tradução: Lana Lim
quarta-feira, novembro 04, 2009
Como era a vida no lado de lá nos tempos do Muro de Berlim
Paulo Nogueira
CERTAS COISAS, numa viagem, você faz num último e inexplicável impulso, em geral já correndo contra o relógio, e muitas vezes é ali que você vai encontrar o melhor momento dos dias que passou num determinado local. Aconteceu comigo em Berlim, para onde fui no final de outubro para escrever uma reportagem sobre os 20 anos da queda do Muro de Berlim, publicada na edição da Época que está nas bancas.
Minha mala já estava pronta na manhã da segunda-feira no bom hotel em que fiquei, o California, muito bem localizado na Kurfürstendamm, uma avenida no centro da cidade. Minha bagagem de mão, sempre pesada pelos livros que levo, uma orgia de letras exagerada mas da qual não consigo me livrar, também já estava preparada, uma mochila azul do Evening Standard cujo zíper eu até já fechara. Eram umas 10 horas e o avião para Londres sairia pouco depois das 15 de Schoenefeld, o aeroporto de Berlim utilizado pela Ryanair, a companhia européia barateira que disputa o mercado de quem não pode gastar muito com a EasyJet.
Fiz uma conta mental mas meticulosa e decidi ir para o outro lado da cidade, no que foi Berlim Oriental entre 1945 e 1989, rumo ao Museu da Stasi, a polícia secreta do governo comunista. Uns 40 minutos para ir, outros 40 para voltar, mais uma hora de visita. Ficaria apertado, mas daria. Pedi ao motorista de táxi que me esperasse, para ganhar um tempo que era escasso. O museu fica no que foi a sede da Stasi, que se declarava “o escudo e a espada” do partido no poder. É um prédio sombrio, soturno, triste, inteiramente preservado para que as pessoas possam ver sossegadamente, pagando três euros, o local em que os habitantes do pedaço oriental da cidade foram obsessivamente vigiados e, em muitos casos, submetidos a torturas pretensamente científicas. A Stasi é retratada muito bem em A Vida dos Outros, um filme que revi em Londres depois de ir ao museu. Não gosto de final melodramático, em que a mulher mesmo atropelada tem lucidez para dizer com clareza as últimas palavras, mas é um filme que mostra o que “o escudo e a espada” do partido fizeram contra o povo emparedado pelo muro.
Num documentário, vi a ânsia com que a multidão, tão logo liquidado o muro na noite de 9 de novembro de 89, se precipitou para a sede da Stasi, prudentemente esvaziada naquele momento. Quem pudera tudo já não podia nada senão escapar. Os alemães são ordeiros. Primeiro bateram na porta de vidro e, como ninguém estava lá para abrir, forçaram. Estava trancada, e então alguém quebrou o vidro, e a primeira visitação pública foi feita em circunstâncias inesperadas. Alguns meses depois, reunificada a Alemanha, a Stasi foi oficialmente extinta, mas “o escudo e a espada” àquela altura já estavam pendurados para a eternidade. Atarracado, sem pescoço como o primeiro general da ditadura militar brasileira, Castelo Branco, Erich Mielke, o temido e abominado chefe da Stasi desde 1957, ficou preso por algum tempo, foi libertado por razões de saúde e morreu em 2000 aos 92 anos. Seus restos estão enterrados numa cova anônima em Zentralfriedhof Friedrichsfelde, um conhecido cemitério de Berlim onde jazem muitos comunistas célebres alemães.
Ele era certamente o homem mais temido do país”, escreveu Anna Funder em seu premiado livro Stasiland - Stories From Behind The Berlin Wall (A Terra da Stasi — Histórias Por Trás do Muro de Berlim). “Temido pelos colegas, temido pelos membros do Partido, temido pelos trabalhadores e pela população em geral.” Funder conta que, numa reunião de trabalho em 1982, Mielke afirmou que nem a Stasi estava livre de traidores. “Se eu descobrisse um, no dia seguinte ele estaria morto. Porque sou um humanista é que penso assim.” Sobre as discussões em torno da pena de morte, ele disse: “Bobagem, camaradas. Executem. E, quando necessário, sem julgamento.” Na sala de Mielke, mantida tal como era, há uma máscara mortuária de Lênin, o chefe da Revolução Russa de 1917. Lênin e Stálin eram os heróis de Mielke. “Quem não está conosco está contra nós”, costumava dizer ele. “Quem está contra nós é nosso inimigo e nossos inimigos têm que ser eliminados.” Quando o poder de vida e morte enfim escapou de suas mãos, Mielke não foi eliminado por seus inimigos. Seus últimos anos foram passados num asilo para velhos.
A STASI MONTOU um aparato espantoso e caríssimo para patrulhar o povo, como se pode ver em A Vida dos Outros. Eram 85 000 funcionários e mais 170 000 informantes, o que dava uma proporção sem precedentes de espiões por pessoa num país de pouco mais de 17 milhões de habitantes. Num determinado momento, cada prédio público da Alemanha Oriental tinha pelo menos um informante. Nos escritórios de correio, havia sempre alguém para abrir e ler todas as cartas. Julia, uma alemã oriental que cedo foi punida e tratada como suspeita na terra em que vivia compulsoriamente, contou a Funder que uma vez, chamada para uma conversa por uma autoridade, foi colocada diante da revelação chocante de que todas as cartas que ela trocara com um namorado italiano tinham sido lidas. As palavras não entendidas pelos espiões, aquelas que fazem parte do código único de namorados, foram naquele dia submetidas a Julia. “O que é Cocoriza?”, perguntou o homem a Julia. É milho, em húngaro, e era como o namorado chamava Julia. O interrogador se achou no direito de dar conselhos amorosos a Julia. Anos antes, quase menina ainda, ela fora interrogada com o método mais empregado pela Stasi: a interrupção do sono por quanto tempo fosse preciso.
Visto em retrospectiva, chama a atenção o fracasso da lavagem cerebral tentada pelos dirigentes comunistas. Crianças, desde o jardim de infância, recebiam lições em que o comunismo era apresentado como o paraíso na terra e o capitalismo, demonizado. Entrevistada num documentário feito nos anos 50, uma moradora de Berlim Oriental que conseguiu escapar para o outro lado com seu filho e seu marido disse que a razão principal era a doutrinação da criança. Tanta doutrinação pôde pouco contra a realidade agastante dos fatos. Quando o muro foi erguido, mais de 2 milhões de alemães orientais já tinham ido para o outro lado, quase sempre deixando para trás casa e emprego. Num vídeo de menos de quatro minutos, em que não há palavras e sim uma música que comove e perturba ao mesmo tempo, você tem uma idéia clara de por que ninguém queria ficar ali, onde o pesadelo futurista do Grande Irmão do romance 1984 de George Orwell — que descreveu em 1949 uma terra em que o Estado tudo sabia e podia sobre os indivíduos — chegou mais próximo a realidade do que em qualquer outro lugar.
Era uma época realmente confusa. Havia, nos meses anteriores ao muro, um medo globalizado de que União Soviética e Estados Unidos passassem da Guerra Fria, em que um rosnava para o outro e exibia músculos, para um confronto nuclear capaz de aniquilar a humanidade. Um programa da BBC feito no auge da Guerra Fria mostrou Berlim tensa e depois levou o caso para um grupo de populares que fora juntado para debatê-lo. Vi este documentário outro dia, no ótimo Arquivo da BBC. Uma mulher, alarmada, disse mais ou menos o seguinte. “Na Segunda Guerra, pessoas foram sacrificadas em nome da civilização. Será que não deveríamos também fazer o mesmo agora?” Bem, ela se referia aos mais de 2 milhões de alemães orientais que tinham buscado refúgio no ocidente - um vazamento humano que estava por trás das hostilidades entre as duas superpotências nucleares e que foi o motivo da construção abrupta do muro. A mulher que sugeriu o sacrifício milionário foi, merecidamente, vaiada.
Não existe almoço grátis, disse o economista Milton Friedman num frase célebre. Toda a engrenagem montada e mantida para dar sustentação ao regime comunista tinha um custo que mais tarde seria cobrado. Quem viu A Vida dos Outros lembra que um teatrólogo sem nenhum perigo era vigiado 24 horas num esquema de revezamento incessante. Alguém tinha que pagar os salários, e mais as despesas decorrentes dos aparelhos usados etc. A pobreza do povo, em comparação ao dinamismo do outro lado, se originava, em parte, do custo da opressão. Você tem uma idéia clara do contraste em outro museu, o da História de Berlim, em que uma sala típica de classe média da Alemanha Oriental é reconstruída ao lado de outra sala típica de classe média da Alemanha Ocidental. Na primeira, limpa e organizada com é típico dos alemães, não há telefone, e a televisão é em branco e preto. Na segunda, as imagens são coloridas, e o telefone está presente, o clássico modelo negro.
Foi exatamente por questões de custo que o muro caiu. Em 1989, o primeiro-ministro da Hungria, Miklos Nemeth, foi examinar o orçamento em busca de cortes. Ele encontrou uma despesa considerável e foi investigar o que era. Era o dinheiro para manter o arame farpado na fronteira que a Hungria, então sob domínio soviético, fazia com a Áustria. Estimulado pela pregação renovadora de Mikhail Gorbachev, o novo líder soviético, Nemeth mandou cortar essa despesa. Pela Hungria, os alemães orientais podiam escapar da gaiola em que foram metidos. O itinerário era Hungria-Áustria-Alemanha Ocidental. Numa reportagem recente, a BBC chamou Nemeth de “herói não cantado” da liberdade.
Você desfruta o melhor de Berlim na parte ocidental: museus, restaurantes, zoológico, aquário, casas noturnas, lojas caras cujas vitrinas estão nas calçadas. Mas sem ir ao Museu da Stasi na sofrida área oriental, um prédio bege em que a atmosfera opressora é dada pelos retratos e bustos carrancudos de personalidades como Lênin, Stálin e Marx, sua viagem será menos rica.
Paulo Nogueira é jornalista e está vivendo em Londres. Foi editor assistente da Veja, editor da Veja São Paulo, diretor de redação da Exame, diretor superintendente de uma unidade de negócios da Editora Abril e diretor editorial da Editora Globo.
terça-feira, novembro 03, 2009
Morre Claude Lévi-Strauss
Entre 1935 e 1939, lecionou sociologia na USP.
Do G1, com agências
Foi anunciada nesta terça-feira (3) a morte do antropólogo Claude Lévi-Strauss. A informação é da editora do intelectual, pela qual o falecimento teria ocorrido entre sábado e domingo. Criado em Paris, ele nasceu em Bruxelas em 28 de novembro de 1908. Fundador da Antropologia Estruturalista, é considerado um dos intelectuais mais relevantes do século 20.
Membro de uma família judia francesa intelectual, Lévi-Strauss estudou Direito e Filosofia na Sorbonne, em Paris. Lecionou sociologia na recém-fundada Universidade de São Paulo (USP), de 1935 a 1939, e fez várias expedições ao Brasil central.
Ali passou breves períodos entre os índios bororós, nambikwaras e tupis-kawahib, experiências que o orientaram definitivamente como profissional de antropologia.
Em 1955, publicou "Tristes Trópicos" - um registro dessas expedições. No livro, ele conta como a vocação de antropólogo nasceu durante as viagens ao interior do Brasil.
Após retornar à França, em 1942, mudou-se para os Estados Unidos como professor visitante na New School for Social Research, de Nova York, antes de uma breve passagem pela embaixada francesa em Washington como adido cultural.
"Meu único desejo é um pouco mais de respeito para o mundo, que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele"
Fez parte do círculo intelectual de Jean Paul Sartre (1905-1980), e assumiu, em 1959, o departamento de Antropologia Social no College de France, onde ficou até se aposentar, em 1982.
Lévi-Strauss passou mais da metade de sua vida estudando o comportamento dos índios americanos.
Jamais aceitou a visão histórica da civilização ocidental como única. Enfatizava que a mente selvagem é igual à civilizada.
As contribuições mais decisivas do trabalho de Lévi-Strauss podem ser resumidas em três grandes temas: a teoria das estruturas elementares do parentesco, os processos mentais do conhecimento humano e a estrutura dos mitos.
Aos 97 anos, em 2005, recebeu o 17º Prêmio Internacional Catalunha, na Espanha.
Declarou na ocasião: "Fico emocionado, porque estou na idade em que não se recebem nem se dão prêmios, pois sou muito velho para fazer parte de um corpo de jurados. Meu único desejo é um pouco mais de respeito para o mundo, que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele - isso é algo que sempre deveríamos ter presente".
Bibliografia publicada no Brasil
As Estruturas Elementares do Parentesco (Vozes, 2003)
Antropologia Estrutural (Vol. 1) (Cosac Naify, 2008)
Antropologia Estrutural (Vol. 2) (Tempo Brasileiro, 1993)
O Pensamento Selvagem (Papirus, 2005)
Sociologia e Antropologia, de Marcel Mauss (introdução de Claude Lévi-Strauss, Cosac Naify, 2003)
O Cru e o Cozido - Mitológicas (Cosac Naify, 2004)
Do Mel às Cinzas - Mitológicas (Cosac Naify, 2005)
A Origem dos Modos à Mesa - Mitológicas (Cosac Naify, 2006)
O Homem Nu - Mitológicas (Cosac Naify, 2009)
sábado, outubro 24, 2009
Lançamento analisa herança do educador Paulo Freire
MOACIR GADOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Muitos têm sido os autores que, sob diferentes ângulos, analisaram Paulo Freire. Fernando José de Almeida, professor da PUC-SP e vice-presidente da TV Cultura, faz isso com linguagem simples, entrelaçando os principais conceitos e temas de sua filosofia educacional, em "Folha Explica Paulo Freire".
O livro não se destina apenas a quem não conhece Freire, mas também aos que têm alguma intimidade com sua obra, pois traz novas abordagens, contextualizando-as. Com rigor e precisão, o autor desfila cada conceito "freiriano".
O pano de fundo é a atualidade de Freire. Como ler o mundo de hoje com Freire. Isso é ainda mais adequado numa época em que alguns gostariam de deixar Freire no passado, na história das ideias pedagógicas, seja por não concordarem com ele por suas opções políticas, seja por não quererem mexer na cultura opressiva de ontem e de hoje que ele denunciava.
Almeida afirma que Freire "é mais necessário do que nunca. Mas um Paulo Freire reinventado, como ele mesmo queria". É claro que cada leitor de Freire faz essa leitura dentro de sua ótica. O olhar de Almeida transparece nos temas e conceitos que mais destaca: religião, universidade, currículo, tecnologias da informação.
Pernambuco
Sem fazer uma exegese, o que seria chato e, certamente, desagradaria Freire, ele coloca na base do pensamento deste "a vivência da situação do país, mais especificamente de seu Estado, Pernambuco, e de sua cidade, Recife".
A leitura do mundo como método "freiriano" se explica nessa preocupação sempre presente em Freire de contextualizar e sistematizar a experiência. Em Freire, "a aprendizagem é sempre situada". Ele teria desenvolvido "um novo conceito de leitura -e com ele um novo conceito de escrita".
Fernando Almeida nos diz que "a maior contribuição teórica de Paulo Freire foi ter ligado suas propostas educativas ao pensamento dialético de Marx, às proposições cristãs de Emanuel Mounier".
Essa é também a opinião do filósofo alemão Wolfdietrich Schmied-Kowarzik, que afirma no livro "Pedagogia Dialética -De Aristóteles a Paulo Freire" (Brasiliense) que a originalidade de Freire foi ter "entrelaçado temas cristãos e marxistas".
No capítulo três, Fernando Almeida destaca a importância do diálogo, o caráter dialógico do seu pensamento e do seu método da leitura do mundo para se libertar, para se emancipar. Não basta incluir. É preciso emancipar. Lamenta que "todo o trabalho de Paulo Freire, todos os anos de exílio, todos os festejos na sua volta, não ajudaram o país a fazer a lição: dar direito à leitura e à escrita a seus cidadãos".
E conclui: "O pensamento de Paulo Freire nos abala e ao mesmo tempo nos sustenta. Abala porque incomoda nossas seguranças; e nos sustenta porque anuncia algo solidamente novo". Seu legado não pode ser considerado uma contribuição à educação do passado, mas à educação do futuro.
MOACIR GADOTTI
É professor titular da Faculdade de Educação da USP e diretor do Instituto Paulo Freire