quarta-feira, junho 30, 2010

Vaticano tem sistema de poder misto que une o laico e o religioso

EL PAÍS

Miguel Mora
Roma (Itália)

Os Gentis-homens de Sua Santidade fazem parte da família pontifícia como o comandante da Guarda Suíça ou os clérigos que trabalham com o papa. Antes se chamavam Camareiros de Capa e Espada, e havia os secretos e os de honra. Em março de 1968, dois meses antes que em Paris fosse proibido proibir, em Roma Paulo 6º aboliu a Corte vaticana e criou os gentis-homens. Montini escreveu com um toque de pena: "Tanto na Igreja inteira, especialmente depois do concílio ecumênico Vaticano 2º, como na opinião pública mundial, abriu caminho uma mais atenta, digamos mais zelosa, sensibilidade sobre a preeminência dos valores puramente espirituais, uma exigência de verdade, ordem e realismo em relação ao eficaz, funcional e lógico, contra o que é só simbólico, decorativo e exterior".

Morto o patriciado, parecia que a modernidade finalmente havia chegado ao Vaticano. E o papa tentava explicá-lo "motu proprio": "Nossa antiga e benemérita Corte - que agora será designada unicamente com seu original e nobre apelativo de Casa Pontifícia - continuará resplandecendo em seu prestígio autêntico, compreendendo eclesiásticos e laicos que, além de sua particular competência e autoridade, se distingam por seus destacados serviços no campo do apostolado, da cultura, da ciência, das diversas profissões, pelo bem das almas e a glória do nome do Senhor".

Saiba-se que os gentis-homens de Sua Santidade não recebem do Vaticano, mas às vezes trabalham dando pompa aos ritos. Vestem-se de preto rigoroso e levam o peitoril do fraque forrado de medalhas. Altivos, fugidios e misteriosos, fazem parte do clube mais exclusivo do mundo e têm a categoria mais alta a que um laico pode aspirar no Vaticano.

Hoje, o trabalho secreto dessa nova nobreza negra é muito estimado em São Pedro. Sua "competência e autoridade" e seus "destacados serviços" representam ações beneméritas para a Santa Sé. Em alguns casos, dir-se-ia que o requisito básico para entrar no clube é ajudar a engordar as arcas do Estado pontifício, o paraíso fiscal mais rico, melhor decorado e mais visitado do mundo.

Alguns gentis-homens são verdadeiros prodígios das finanças. Tomemos por exemplo Herbert Batliner. Nascido em 1928 em Liechtenstein, é considerado pela polícia alemã um dos maiores peritos em criar sociedades fiscalmente obscuras, um grande especialista em lavar dinheiro sujo. Batliner é um dos banqueiros que se movem na sombra das finanças vaticanas. O presidente da Fundação Peter Kaiser trabalha há décadas em silêncio pelo bem da Europa cristã. Pelo menos desde 1970. Foi nomeado gentil-homem por João Paulo 2º em 1998, e continua sendo.

No ano de 2000, segundo revelou uma recente reportagem de "La Repubblica", um empregado do escritório de Batliner entregou à promotoria de Bochum, Alemanha, um CD cheio de dados secretos. Nesse momento ele foi qualificado como o rei dos evasores fiscais em um relatório do serviço secreto alemão, que definiu o "sistema Batliner" como um mecanismo que durante anos havia subtraído ao fisco pelo menos 250 milhões de euros.

Polícia
Apesar do anterior, em 9 de setembro de 2006, Batliner se encontrou com o papa Joseph Ratzinger em Ratisbona. Batliner foi até lá para doar pessoalmente à Igreja local um órgão avaliado em 730 mil euros. Sobre ele pesava uma ordem de busca e captura da polícia alemã. Mas conseguiu entrar no país graças aos bons ofícios da diplomacia vaticana. E não foi detido. Apenas um ano depois, no verão de 2007, Batliner admitiu suas culpas e fez um pacto com o Estado alemão, aceitando pagar uma multa de 2 milhões de euros. Cinco anos antes, a Suprema Corte de Liechtenstein confirmou em uma sentença que Batliner já era em 1990 o fiduciário do equatoriano Hugo Reyes Torres, indicado como chefe mafioso da droga, que nesse ínterim foi condenado.

Enquanto Ratzinger emprega em suas homilias e encíclicas a ética da economia e clama contra os especuladores e "os sacerdotes que tentam fazer carreira para enriquecer", alguns membros desse clube de cavalheiros parecem entender o contrário.

Nem todos, é claro. No clube laico papal figuram 147 notáveis. Embora o título seja vitalício, o papa pode revogá-lo quando considerar oportuno. Batliner ainda não foi expulso. Mas Angelo Balducci, sim.

Balducci é um engenheiro que durante 25 anos se encarregou de executar as obras públicas na região do Lácio, onde se encontram Roma e o Vaticano. Dali passou ao governo central como responsável pelo Conselho Superior de Obras Públicas. Depois de uma vida dedicada a melhorar as infraestruturas italianas e vaticanas, Balducci, de 62 anos, vive hoje na prisão romana de Regina Coeli.

Desde fevereiro Balducci é o principal acusado no escândalo de corrupção da todo-poderosa Proteção Civil italiana, que por enquanto tem mais de 50 pessoas acusadas ou sob investigação. Desde 2001 até agora, o superministério que depende da Presidência do Governo (primeiro-ministro) gastou fundos públicos no valor de 13 bilhões de euros, segundo o último relatório da Autoridade para Vigilância dos Contratos Públicos.

O dinheiro era administrado pelo chefe da Proteção Civil, o secretário de Estado Guido Bertolaso, também acusado de corrupção, e pelo executor das obras, Balducci, graças a uma argúcia autorizada pelo primeiro-ministro Silvio Berlusconi, para superar a maldita burocracia e enfrentar as emergências com mais rapidez: a licitação de contratos públicos sem concurso, a dedo, abolindo-se os procedimentos comuns.

Esse tratamento especial criou um monstro de mil cabeças. A Proteção Civil de Berlusconi não se encarrega só de calamidades. Também organiza provas esportivas como o Mundial de Natação, cúpulas internacionais como a do G-8, restaurações de museus e teatros e todo tipo de atividades religiosas.

A investigação dos fiscais de Perugia vinculou desde o início a Igreja Católica com a trama corrupta. Descobriu, por exemplo, que o padre Evaldo Biasini, de 83 anos, gerente da Congregação dos Missionários do Preciosíssimo Sangue de Jesus, guardava grandes quantias de dinheiro para o construtor Diego Anemone, a quem os promotores acusam de ter recebido numerosos contratos da Proteção Civil em troca de comissões, presentes e favores de toda sorte, desde massagens em seu clube esportivo até reformas de apartamentos. Desde aquele dia, o ancião dom Evaldo passou a ser conhecido como "Dom Bancomat" (dom caixa automático).

Eventos
O "sistema gelatinoso", como o definiram os promotores em seu texto de acusação, "inclui nomes de grande espessura institucional" e se expande por diferentes vias religiosas. A lista de eventos católicos organizados pela Proteção Civil e pagos nestes anos pelo contribuinte italiano é longa, desde o Giro pela Itália do papa no Ano Paulino até as exéquias de João Paulo 2º ou as canonizações do Padre Pio e de São Josemaría Escrivá.

Balducci foi nomeado gentil-homem pelo papa Wojtyla em 1995. Quinze anos depois caiu em desgraça e o Vaticano foi obrigado a cancelar seu nome do anuário pontifício. Mas seu pecado, ironicamente, não foi roubar. Balducci só foi riscado da lista quando se tornou público que recorria com frequência a um tenor africano do coral suplente de São Pedro para que organizasse encontros com jovens seminaristas e sem-papéis. As escutas telefônicas interceptadas do corista e do gentil-homem eram deste estilo: "Tenho um bailarino da RAI", "Tenho um negro...".

Como Balducci, os cavaleiros papais se destacam por seus contatos, seu poder e seu patrimônio. No índice são abundantes os banqueiros, empresários, príncipes, políticos e diplomatas. A Itália encabeça de longe a lista, com 114 "gentiluomini". São seguidos por EUA, com sete, e Áustria e Espanha com cinco cada.

Poucos meses depois de chegar ao trono, em 2005, Bento 16 nomeou seus primeiros sete gentis-homens. Embora a doutrina e a teologia sejam os assuntos favoritos do papa alemão, também lhe preocupa a eficácia organizacional. Nessa primeira lista apareceu o personagem central das perigosas amizades Igreja-Estado. Trata-se do jornalista e político Gianni Letta, 75, secretário de Estado da Presidência do Governo e número 2 de fato do Executivo de Berlusconi em 1994, 2001 e 2008, mentor e protetor de Guido Bertolaso, herdeiro do estilo e da arte para a tubulação política de Giulio Andreotti.

Curiosamente, o poderoso Letta se transformou em gentil-homem muitos anos depois que o anônimo técnico Balducci. Ex-forense, ex-diretor de "Il Tempo" e ex-jornalista da Mediaset, vice-presidente da Fininvest Comunicações, supervisor dos serviços secretos e conselheiro externo do Goldman Sachs para investimentos na Itália, Letta talvez seja o único berlusconiano que adora negociar. Dá-se bem com todos, e comenta-se que é o único político italiano capaz de contentar a maçonaria e a Opus Dei. É o grande mediador, o homem que atende ao telefone quando há problemas.

Abuso de poder
E sua referência na cúria é Ratzinger. "Sob sua aparência de homem religioso, a fatura que Letta passa ao Vaticano é a mais discreta, mas também a mais cara", afirma o sacerdote e vaticanista Filippo di Giacomo. "O doutor Letta tem tanto poder que se permite nomear bispos a sua conveniência, como fez há alguns meses em L'Aquila ao promover seu amigo Giovanni d'Ercole.

"No plano familiar, Letta não está só. Seu sobrinho Enrico é um alto dirigente católico do Partido Democrata. Sua filha Marina é casada com o restaurador Ottaviani: é dele o monopólio do "catering" da Proteção Civil. Até agora o nome de Letta só apareceu de forma colateral nas 410 mil ligações telefônicas que os promotores têm depositadas em Perugia. Embora em novembro de 2008 tenha sido imputado por abuso de poder e estelionato em um assunto que parece diferente, mas não é tanto: supostamente, mediou a favor de uma cooperativa do movimento Comunhão e Libertação para a contratação de um centro de assistência para imigrantes.

Quando se revelou o caso da Proteção Civil, o papa dedicou a Letta um "pensamento especial" durante um discurso público. Coisa rara, que significa: é um amigo. Como se explica essa condescendência em um papa tão estrito? Segundo o filósofo Paolo Flores d'Arcais, o problema de Ratzinger é que está preso em um dilema existencial e histórico. "Estou convencido de que sua vontade de limpar a Igreja dos dois pecados capitais, sexo e dinheiro, é séria", diz o diretor da revista "Micromega". "Sua linha é a do Concílio de Trento: dogmatismo radical e ataque aos comportamentos imorais. Quer acabar com os padres pederastas e os prelados corruptos. Mas fazer isso supõe o impossível: sentar Wojtyla no banco dos réus. E isso não é tão fácil quanto pedir perdão pela condenação de Galileu. Representaria reconhecer que seu antecessor encobriu Marcinkus (presidente do banco vaticano IOR entre 1971 e 1989) e Marcial Maciel (dirigente dos Legionários de Cristo). Limpar de verdade o obrigaria a revelar porcaria a granel e a demitir meia cúria. Mas se não o fizer a Igreja continuará perdendo credibilidade. É esse seu dilema.

"Letta é o eixo da aliança de Berlusconi com o cardeal Camillo Ruini, ex-chefe da Conferência Episcopal italiana e criador do projeto cultural que ajudou a arrebatar da esquerda a hegemonia intelectual e informativa na Itália. Quando a Democracia Cristã desapareceu em 1993 sob o terremoto de Tangentópolis (o escândalo das comissões dos partidos), seus componentes se distribuíram entre Força Itália e a católica Margarita da centro-esquerda. Depois o católico Romano Prodi nomeou Guido Bertolaso chefe da Proteção Civil em 1996. E o católico Francesco Rutelli, ex-prefeito de Roma, pôs para trabalhar juntos Balducci e Bertolaso no Ano Santo do Jubileu.

Corrupção
Ali nasceu o sistema gelatinoso. O cardeal Crescenzio Sepe, que acaba de ser denunciado por corrupção, era o secretário-geral do comitê organizador do jubileu. O Ano Santo foi uma maionese de negócios, obras, subvenções, presentes, silêncios e favores que ligou altos funcionários públicos com a cúria da Opus Dei e os Legionários de Cristo.

Protegido de Wojtyla, Sepe, agora arcebispo de Nápoles, foi entre 2001 e 2006 o responsável pela Propaganda Fide, hoje chamada Congregação para a Evangelização dos Povos. É o ministério vaticano que se encarrega de financiar as missões e de administrar o patrimônio imobiliário do Vaticano. E seu principal assessor era Angelo Balducci.

A acusação afirma que o cardeal Sepe concedeu de graça um dos 2 mil apartamentos que a Propaganda Fide possui em Roma ao chefe da Proteção Civil, Guido Bertolaso. E que além disso vendeu em 2004 um luxuoso palacete romano a preço de banana (entre 3 e 4 milhões de euros, quando valia 9 ou 10 milhões) ao então ministro de Infraestruturas, Pietro Lunardi, também acusado formalmente por essa operação. A hipótese dos promotores é que em troca Lunardi financiou com dinheiro estatal da sociedade Arcus obras milionárias da Propaganda Fide que nunca foram realizadas.

O cardeal se defendeu acusando seus superiores: "A administração vaticana aprovou todas as operações", disse. E insiste em se considerar um mártir: "Trabalhei sempre com transparência e pelo bem da Igreja, uma Igreja sempre perseguida". Segundo Sepe, foi Francesco Silvano, outro de seus assessores na Propaganda Fide, membro da Comunhão e Libertação e atual economista do arcebispado de Nápoles, quem lhe recomendou emprestar e vender as propriedades.

A investigação revelou que os apartamentos são o principal objeto de intercâmbio de favores entre a Itália e o Vaticano. Chefes dos serviços secretos, da polícia fiscal, dos Carabineiros, magistrados, políticos, empresários e o próprio Bruno Vespa, o jornalista preferido de Berlusconi e de Wojtyla, vivem ou viveram em apartamentos da Propaganda Fide.

O cardeal Sepe foi afastado da Propaganda Fide por Bento 16, no que hoje parece uma tentativa de afastar a cúria italiana e a Comunhão e Libertação da gestão imobiliária. Depois de cinco anos de papado, é um segredo em voz alta que Ratzinger não confia em sua cúria, com exceção de um pequeno punhado de fiéis. Embora tenha substituído o núcleo duro de Wojtyla, o governo vaticano continua nas mãos de grupos como a Opus Dei - seus porta-vozes se empenham em negá-lo -, a citada Comunhão e Libertação e os Legionários de Cristo, embora hoje esteja prestes a desaparecer como movimento carismático para pagar pelos crimes de seu fundador.

Presença dos laicos
Os movimentos eclesiásticos ganharam peso no Vaticano desde o último concílio. Aparentemente solidários, lutam pelo controle dos melhores cargos e negócios, e na refrega esquecem o que for preciso do Evangelho e se dedicam a um ajuste de contas permanente, enquanto os fiéis atônitos assistem ao espetáculo.E os laicos eclesiásticos controlam amplos setores da política, da informação, da empresa, da caridade, da educação, da saúde e da magistratura. Em Roma exercem uma influência cada vez maior, em estreita e democrática conivência com a centro-direita ateia-devota, mas também com a lânguida oposição do Partido Democrático e a cúria dos bons e felizes tempos do papa viajante.

A fragilidade das ordens religiosas, castigadas pela escassez de vocações, favoreceu a sufocante presença dos laicos. "Em 1998, Ratzinger aumentou a integração laica durante um congresso organizado por Wojtyla", lembra Paolo Ciani, membro da Comunidade de São Egídio, um movimento eclesiástico que conta com 50 mil voluntários distribuídos pelo mundo e só 25 empregados. "Ratzinger releu a experiência das ordens religiosas e monásticas junto com a dos movimentos eclesiais e reconheceu a estes, com seu dinamismo e competência, um papel na Igreja. A mensagem foi que para sobreviver era preciso confiar no rebanho fiel.

"Hoje a Cúria Romana é uma máquina ingovernável e reumática que custa anualmente ao Vaticano 102,5 milhões de euros. A estrutura depende da Secretaria de Estado, uma espécie de conselho administrativo com um presidente (o secretário de Estado) e um diretor-geral (o substituto), as duas únicas pessoas que têm acesso direto ao gabinete do papa. No Vaticano trabalham 2.748 pessoas. Delas, 778 são eclesiásticos, contra 333 religiosos e 1.637 laicos (destes, 425 são mulheres).

Os laicos tomaram o poder cooptando bispos e cardeais menos cristãos do que se supõe. "A nulidade da cúria se deve a sua falta de informação e a seu excesso de italianidade", explica o sacerdote e canonista Filippo di Giacomo. "Das dioceses chega o pessoal com conta-gotas porque os bispos demoram para enviar seus melhores homens. As ordens, antes canteiro privilegiado de inteligência e talento, têm cada vez menos matéria cinzenta a que recorrer. Os bons chegam a bispos, e à cúria só chega o pior de cada família."

Assim nasceu um sistema de poder misto que confunde o laico e o religioso, a Igreja e o Estado, a Itália e o Vaticano, a cúria com a elite civil. O sistema se baseia em um enorme poder econômico, sensação de impunidade, gosto pela "omertà" e o encobrimento e a capacidade de infiltração.

A ambição desse sistema é conseguir a fusão fria entre Itália e Vaticano. Em seus esquemas mentais, essa nova cúria negociante e carnal não visualiza dois Estados, mas um único país que poderia se chamar, abreviando, Vaticália. "Impossível confiar em canalhas que usam Deus para satisfazer sua atrofiada vaidade!", diz o padre genovês Paolo Farinella.

A grande caixa-forte laica do momento se chama Comunhão e Libertação (CL). Nascida em 1954 e assim denominada desde 1969, está presente em 70 países; na Itália controla empresas, meios de informação, dioceses, colégios, universidades, hospitais privados e públicos e inclusive uma holding de cooperativas sociais, a Auxilium, que administra vários centros de identificação e expulsão de imigrantes para o Ministério do Interior."Há 20 anos a Auxilium é o braço clerical da ultra-direita milanesa", explica Di Giacomo. "Sua estratégia é cultural e política. Seus padres povoam os seminários lombardos; seus prelados se mobilizam onde for preciso." Afirma também que seus chefes ideológicos ditam a lei em diferentes jornais e que sua presença é constante em televisões e rádios: "Mandam a torto e a direito".

Roberto Formigoni é há 15 anos presidente da Lombardia, a região italiana com renda mais alta da Europa, junto com a de Paris-Ile de France. Pertence de pleno direito, e não o oculta, à Comunhão e Libertação. Isso poderia lhe permitir inclusive aspirar a suceder Berlusconi. Nos últimos meses, o governador distribuiu entre os homens da CL, os postos fundamentais da organização da Expo Milão 2015. Um paraíso de contratos públicos, privados e mistos no qual a magistratura já detectou a penetração das máfias.

Quase diariamente vêm à luz novas amizades perigosas. Há poucas semanas os juízes enviaram uma comissão rogatória ao Vaticano porque suspeitam que o tesouro oculto do bando gelatinoso pode estar depositado no IOR - Instituto para Obras Religiosas. E esta semana reclamaram por via oficial os documentos da Propaganda Fide, a imobiliária da Santa Sé.

Embora o trabalho dos promotores seja exaustivo, em Vaticália se sabe que não será fácil para eles apurarem a verdade. O Vaticano continua sendo um paraíso fiscal, o "concordato" lhe concede amplas cotas de imunidade e as contas secretas que prosperam à sombra do IOR, da APSA - a Administração do Patrimônio da Sé Apostólica, a antiga Propaganda Fide e um longo número de empresas participantes são o segredo mais bem guardado.

Apesar dos apelos à limpeza de Ratzinger, as coisas não parecem ter mudado muito. Aqui os mistérios se resolvem com tempo. Com muito tempo. Balducci é por enquanto o grande bode-expiatório. Durante 15 anos ninguém viu nada nem suspeitou de nada: era um gentil-homem e os sinos tocavam a "omertà". Hoje se fala dele, mas logo tudo voltará a seu ser e a gelatina continuará se ampliando. Hoje, em junho de 2010, os italianos ainda não têm uma lei de casais de fato; os imigrantes sem papéis são considerados criminosos e não se respeita o direito de asilo; os homossexuais são agredidos diariamente nas ruas e as mulheres que querem se submeter a inseminação artificial devem emigrar.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

DC muda o uniforme da Mulher Maravilha

Jim Lee é quem traz a novidade
Por Edu Almeida - 30/06/2010 02:08

Na segunda-feira publicamos uma nota sobre a edição 600 da revista da Mulher Maravilha nos EUA. Pois bem, ali a gente contou que a DC iria revelar algumas novidades e a bomba já surgiu. A moça tem um novíssimo uniforme e a surpresa estreia nesta edição comemorativa.
O novo visual foi desenvolvido por Jim Lee, um dos maiores desenhistas da atualidade e também um dos chefões da DC. Ele mexeu no modelito que está aí nos quadrinhos há 69 anos. É a primeira vez que a roupa da heroína sofre uma mudança tão drástica. Mas algumas coisas se mantiveram, como as cores tradicionais – vermelho, azul e amarelo. De resto, a coisa toda está bem diferente. Sobre os ombros antes nus, agora entra uma jaquetinha azul. Os braceletes também mudaram o formato e agora têm uma espécie de luva por baixo que deixa aparecer os dedos. A heroína também passa a usar uma calça colante azul. A tiara e o laço continuam lá e também há uma gargantinha nova.
A gente sabe que a Mulher Maravilha é uma personagem problemática e que não está na lista das prediletas dos novos leitores. A mudança sinaliza a tentativa da DC em dar mais força para a heroína, um dos grandes ícones da editora. Além disso, esse visual é bem mais verossímil para ser usado num possível filme. Afinal, é meio complicado mesmo usar aquela roupinha minúscula, né? Embora a ala masculina do CAPACITOR prefira o "roupitcha" antiga, claro.
Para a Mulher Maravilha esta é uma mudança e tanto e acontece por conta de seu novo roteirista, o bom J. M. Straczynski – que acaba de assumir o título – e a roupa nova vem justamente para se ajustar a essa nova fase que é mais urbana e menos ligada às divindades. Segundo o que o roteirista explicou ao site Newsarama, “os deuses, por razões próprias mudaram a linha do tempo. Nesta nova linha, os deuses, vários anos atrás, removeram a proteção da Ilha Paraíso (lar das amazonas) e a deixaram vulnerável a ataques. E ela foi mesmo atacada. Surge um exército liderado por uma figura sombria que destrói tudo e faz com que Hipólita (mãe de Mulher Maravilha) tenha de entregar sua filha de três anos de idade para uma guardiã”. Quase todas as amazonas são mortas. Assim, a jovem Diana (nome da heroína) é levada embora e cresce na cidade, se transformando numa mulher urbana, mas com ligações com seu passado. A história se passa vinte anos após o ataque à ilha.
Com tudo isso, Straczynski dá uma nova origem para a heroína e fará com que ela fique mais rápida, elegante, esperta. É a Mulher Maravilha do século 21.
A edição 600 de Wonder Woman sai nesta quarta, dia 30, nos EUA.

Adam Dean - Vale de Arghandab

A paisagem do Vale de Arghandab, no Afeganistão, acompanha o rio com o mesmo nome que leva à cidade de Kandahar. Atualmente, a região é disputada entre o exército americano e os talibãs, sendo patrulhada pelos soldados sempre a pé para evitar as inúmeras minas terrestres que já mataram centenas de militares. A nova tática, porém, aproximou os soldados da população, que recebe a presença militar com curiosidade. Foto de Adam Dean.

terça-feira, junho 29, 2010

A hora e a vez do ensino médio

Há problemas de cobertura, modalidade de currículo
e forma de atendimento, com graves reflexos
no fluxo e no desempenho dos alunos


A sociedade brasileira parece ainda não ter-se dado conta da verdadeira crise de audiência que vem afetando nosso ensino médio, com previsíveis consequências para o desenvolvimento sustentável do país. Trata-se de uma verdadeira bomba-relógio.

Para entendermos a gravidade da situação, o primeiro fato a encarar é o de que vivemos em uma sociedade do conhecimento, que exige, como passaporte mínimo para que os jovens sejam inseridos no mercado de trabalho, o diploma do ensino médio.

Também para os países, a vantagem competitiva passa a ser esse nível de escolaridade de sua população. Entretanto, a média brasileira de anos de estudo ainda é de sete anos e apenas 16% da população economicamente ativa concluiu o ensino médio.

Sem dúvida, isso é fruto de um processo histórico, mas, se os dados atuais fossem animadores, poderíamos prever boas perspectivas para o futuro. Infelizmente, é justamente aí que se processa a montagem da bomba-relógio.

O ensino médio no Brasil sofre de males seríssimos. Há problemas de cobertura, modalidade de currículo e forma de atendimento, com graves reflexos no fluxo e no desempenho dos alunos. Em termos de cobertura, menos da metade daqueles que deveriam estar nesse nível pode ser aí encontrada.

Parte ainda está no fundamental e quase 20% estão fora da escola. O mais grave é que, na faixa de 18 a 24 anos, 68% estão nessa situação.

Quanto ao currículo, observa-se que menos de 10% dos alunos cursam o ensino profissionalizante. Ou seja, mais de 90% dos jovens estão sendo "preparados" para uma universidade na qual a maioria não pisará.

O dado mais incompreensível é o turno em que o ensino médio regular é ofertado. Mais de 40% dos alunos estudam à noite, inclusive nos Estados mais ricos, quando apenas 17% conjugam escola com trabalho. A soma desses fatores está por trás de uma verdadeira sangria, responsável pela perda de metade de nossos alunos (entram 3,6 milhões e concluem 1,8 milhão).

Estamos perdendo esses jovens para o desemprego, para a reprodução da pobreza (22% dos mais pobres já têm filhos) e para a violência. Dos que concluem, apenas 9% (em matemática) e 24% (em português) apresentam um desempenho considerado adequado.
Em face dessa situação, cabe a pergunta: quem é o responsável pela oferta do ensino médio? De fato, 86% das matrículas estão nos sistemas estaduais, cujos governantes serão eleitos neste ano.

O voto de cada um de nós deveria estar condicionado a propostas dos candidatos sobre como pretendem enfrentar tais problemas.

Seria necessário um compromisso com metas claramente definidas, tais como universalizar o acesso e a permanência dos jovens entre 15 e 17 anos, melhorar o desempenho e diminuir o abandono, aumentar a autonomia das escolas, promover maior estabilidade das equipes de direção e flexibilizar os currículos, mas definindo mínimos para cada série.

Outras metas possíveis são aumentar o ensino profissionalizante, criar formas de articulação entre educação e trabalho, concentrar o ensino médio regular nos turnos diurno e vespertino, reservando o noturno apenas para a EJA (Educação de Jovens e Adultos, a partir de 18 anos), e criar sistemas de incentivos baseados em resultados.
Além disso, os candidatos poderiam definir as metas de usar os resultados de avaliações como instrumento pedagógico e de contribuir para mudanças na formação de professores.

Os candidatos poderiam assumir essas ou outras propostas, mas deveriam explicitar seu forte compromisso com a melhoria do ensino médio, sem o que não mereceriam nosso voto.

--------------------------------------------------------------------------------
WANDA ENGEL ADUAN, 65, doutora em educação pela PUC-RJ, é superintendente-executiva do Instituto Unibanco

segunda-feira, junho 28, 2010

A América Latina de Oliver Stone

THE NEW YORK TIMES

Larry Rohter

Nos filmes sobre John F. Kennedy, Richard M. Nixon e George W. Bush, Oliver Stone deu asas à sua imaginação e foi frequentemente criticado por fazer isso. Agora, em “South of the Border”, que estreou na sexta-feira, ele se voltou para Hugo Chávez, o controverso presidente populista da Venezuela, e seus aliados reformistas da América do Sul.

“Pessoa que são com frequência demonizadas, como Nixon, Bush, Chávez e Castro, me fascinam”, disse Stone numa entrevista esta semana durante uma turnê para promover o filme, que retrata Chávez como um líder benevolente, generoso e corajoso que foi injustamente difamado. “É uma coisa recorrente”, ele acrescentou, que pode sugerir “um apego psicológico aos perdedores” de sua parte.

Diferentemente de seus filmes sobre presidentes norte-americanos, “South of the Border” de 78 minutos tem a intenção de ser um documentário e portanto tem um outro padrão. Mas está contaminado pelos mesmos problemas de acuidade que os críticos levantaram sobre seus filmes, desde “JFK”. Considerados em conjunto, os erros, declarações equivocadas e detalhes omissos podem minar o retrato de Chávez feito por Stone.

Os problemas de Stone com o filme começaram cedo, com seu relato sobre a ascensão de Chávez. Segundo “South of the Border”, o principal oponente de Chávez em sua campanha inicial à presidência em 1998 era “uma ex-miss Universo loira de 1,84 metro chamada Irene Saez, e portanto “a disputa ficou conhecida como a eleição entre a Bela e a Fera”.

Mas o principal oponente de Chávez não era Saez, que ficou em terceiro lugar com menos de 3% dos votos. Era Henrique Salas Romer, um inexpressivo ex-governador estadual que ficou com 40% dos votos.

Quando esta e várias outras discrepâncias foram apontadas para Stone na entrevista, suas atitudes variaram. “Sinto muito por isso, e peço desculpas”, disse ele sobre a eleição de 1998. mas ele também reclamou que estavam “pegando no pé” e “procurando cabelo em ovo” e disse que não era sua intenção fazer um programa para C-Span nem empreender o que ele chamou de interrogatório “cruel e brutal” sobre Chavez ao estilo de Mike Wallace sobre Chávez que a BBC transmite este mês.

“Estamos lidando com o quadro mais amplo, e não paramos para entrar numa série de críticas e detalhes de cada país”, diz ele. “É uma introdução a uma situação na América do Sul que a maioria dos norte-americanos e europeus não conhece”, acrescentou, por causa de “anos e anos de jornalismo negligente.”

“Acho que tem havido tanto desequilíbrio que somos definitivamente uma resposta a isso”, disse.

Tariq Ali, historiador e comentarista britânico-paquistanês que ajudou a escrever o roteiro, acrescentou: “Não é nenhum segredo que nós apoiamos o outro lado. É um documentário opinativo.”

As críticas iniciais de “South of the Border” foram mornas. Stephen Holde do The New York Times chamou-o de “uma exaltação provocativa, embora superficial, do socialismo na América Latina”, enquanto a Entertainment Weekly o descreveu como “propaganda política ingênua”.

Algumas informações equivocadas que Stone, que costuma pronunciar o nome de Chávez errado como Chavês, insere em “South of the Border” são relativamente benignas. Um voo de Caracas a La Paz, Bolívia, passa principalmente sobre a Amazônia, e não sobre os Andes, e os Estados Unidos não “importam mais petróleo da Venezuela do que de qualquer outra nação da OPEC”, uma posição que pertenceu à Arábia Saudita durante o período de 2004 a 2010.

Mas outras afirmações questionáveis se referem a temas fundamentais, incluindo o argumento de Stone de que os direitos humanos, que são uma preocupação na América Latina desde a era de Jimmy Carter, é “a expressão da moda”, usada principalmente para criticar Chávez. Stone argumenta no filme que a Colômbia, que “tem um problema de direitos humanos bem pior do que a Venezuela”, recebe “um passe livre na mídia que Chávez não tem” por causa de sua hostilidade em relação dos Estados Unidos.

Quando Stone começa a falar, aparece na tela o logotipo da Human Rights Watch, que monitora de perto a situação tanto na Colômbia quando na Venezuela e divulgou relatórios sobre os dois países. Isso aparentemente indicaria que a organização faz parte do “dupla medida” da qual Stone reclama.

“É verdade que muitas dos críticos mais duros contra Chávez em Washington fecharam os olhos para os terríveis problemas de direitos humanos na Colômbia”, disse Jose Miguel Vivanco, diretor da divisão do grupo para as Américas. “Mas não há motivo para ignorar os sérios prejuízos que Chávez acarretou aos direitos humanos e à democracia na Venezuela”, que incluem expulsar Vivanco e um associado sumariamente, violando a lei venezuelana, depois que a Human Rights Watch divulgou um relatório crítico em 2008.

Uma atitude similar e tendenciosa pode ser percebida no tratamento que Stone dá ao golpe de abril de 2002 que derrubou Chávez brevemente. Um dos eventos cruciais daquela crise, talvez o que a tenha instigado, foi o “Massacre da Ponte Llaguno”, no qual 19 pessoas foram mortas a tiros em circunstâncias que permanecem obscuras, com os partidários de Chávez culpando a oposição e vice-versa.

O filme de Stone inclui novas cenas do confronto na ponte, mas seu argumento básico adere ao que foi mostrado em “A Revolução Não Será Televisionada”, um filme que o campo de Chávez endossou. O documentário, entretanto, foi refutado por um outro, chamado “Raio-X de uma Mentira”, e pelo livro de Brian ª Nelson “O Silêncio e o Escorpião: O Golpe Contra Chávez e a Formação da Venezuela Moderna” (Nation Books), nenhum deles mencionado por Stone.

Em vez disso Stone se baseia muito no relato de Gregory Wilpert, que testemunhou parte das trocas de tiros e é descrito como um acadêmico norte-americano. Mas Wilpert também é marido da cônsul-geral de Chávez em Nova York, Carol Delgado, e há tempos editor e presidente do quadro do Venezuelanalysis.com, um site montado com doações do governo venezuelano, ligações que Stone não revela.

Como a visão de Stone sobre o assassinato de Kennedy, esta parte de “South of the Border” gira em torno da identidade de um atirador ou atiradores que podem ou não ter feito parte de uma conspiração maior. Como Stone coloca no filme: “os tiros foram disparados dos telhados dos prédios, e membros de ambos os lados foram baleados na cabeça.”

Numa entrevista por telefone esta semana, Wilpert reconheceu que os primeiros tiros foram disparados de um prédio conhecido como La Nacional, que abrigava os escritórios administrativos de Freddy Bernal, o prefeito do centro de Caracas, pró-Chávez. Numa investigação do Congresso depois do golpe, Berna, que liderava um esquadrão de elite da polícia antes de assumir o poder, foi questionado sobre o testemunho de um funcionário militar de que o Ministro da Defesa havia ordenado a Bernal que atirasse nos manifestantes da oposição. Bernal descreveu a acusação como “totalmente falsa”.

“Não sei nada sobre isso, eu nem sabia que era um prédio chavista”, disse Stone inicialmente, antes de recuar à sua posição original. “Mostre-me as cenas de Zapruder, e pode ser diferente”, diz ele.

A segunda metade de “South of the Border” é um “road movie” no qual Stone, às vezes acompanhado de Chávez, encontra-se com líderes da Bolívia, Argentina, Paraguai, Brasil, Equador e Cuba. Mas aqui também ele distorce os fatos e omite informações que podem minar sua tese de uma “revolução bolivariana” em todo o continente, encabeçada por Chávez.

Na visita à Argentina, por exemplo, ele descreve acuradamente o colapso econômico de 2001. Mas logo pula para a eleição de Nestor Kirchner à presidência em maio de 2003 e deixa Kirchner e sua sucessora – e mulher – Cristina Fernandez de Kirchner alegarem que “começamos uma política diferente da anterior”.

Na realidade, o presidente anterior a Kirchner, Eduardo Duhalde, e o ministro das finanças de Duhalde, Roberto Lavagna, foram os arquitetos dessa mudança de política e da recuperação econômica subsequente, que começou enquanto Kirchner ainda era um governador desconhecido de uma pequena província na Patagônia. Kirchner foi originalmente um protegido de Duhalde, mas os dois homens agora são inimigos políticos, o que explica o desejo dos Kirchners de apagá-lo de sua versão da história.

Tentando explicar a ascenção de Evo Morales, o presidente da Bolívia que é aliado de Chávez, Ali se refere à controversa e descuidada privatização da água na cidade de Cochabamba.

“O governo decidiu vender o suprimento de água de Cochabamba para a Bechtel, uma corporção norte-americana”, diz ele, “e uma das coisas que essa corporação fez foi obrigar o governo aprovar uma lei dizendo que de agora em diante era ilegal que os pobres saíssem nos telhados para coletar água da chuva em recipientes.”

Na verdade, o governo não vendeu o suprimento de água: ele concedeu a um consórcio que incluia a Becthel o gerencialmente da concessão durante 40 anos em troca de injeções de capital para expandir e melhorar o abastecimento de água e a construção de uma represa para gerar eletricidade e irrigação. A questão da coleta de água pelos pobres tampouco é como Ali apresenta.

“A permissão sobre a água da chuva sempre vem à tona”, diz Jim Shultz, um crítico da privatização da água e coeditor de “Dignidade e Desafio: Histórias do Desafio da Bolívia para a Globalização” (University of California Press), disse numa mensagem de e-mail. “O que eu posso dizer é que a privatização do sistema público de água foi acompanhada por um plano do governo que exigia permissões para poder cavar poços e coisas do tipo, e que ele poderia ter fornecido as concessões à Bechtel ou outras empresas.”

Mas ele “nunca chegou a tanto”, acrescentou, e “ainda não está claro para mim até agora que tipo de sistemas de coleta de água seriam incluídos”. Ele concluiu: “Muitos acreditaram que ele incluiria alguns sistemas de coleta de água da chuva. Isso poderia facilmente causar polêmica.”

Questionado sobre a discrepância, Ali respondeu que “nós podemos falar sobre isso infinitamente”, mas, “o objetivo de nosso filme é muito claro e básico”. Em “South of the Border”, ele acrescentou: “Nós não estávamos escrevendo um livro ou fazendo um debate acadêmico. Era para ter uma visão simpática desses governantes.”

Tradução: Eloise De Vylder

domingo, junho 27, 2010

A harmonia (da Copa) do mundo

Espero que na Copa em 2050 o Brasil continue
sendo líder no futebol e seja o novo líder na ciência


Agora que o Brasil se classificou para a segunda rodada da Copa (como escrevo antes do jogo com Portugal, não sei se em primeiro ou em segundo grupo), está na hora de darmos uma relaxada e refletirmos um pouco sobre futebol e esportes em geral.
Os gregos foram os primeiros a sacar que esportes unificam populações. Se a poesia épica de Homero não funcionava por si só para unificar as cidades-estado num império homogêneo, use os esportes como complemento. Assim nasceram as Olimpíadas, em torno de 776 a.C.

Atletas das diversas cidades-estado e reinos espalhados pela costa do Mediterrâneo competiam entre si a cada quatro anos. Durante os jogos, guerras entre as cidades-estado eram suspensas. Já então, os esportes eram um excelente modo de sublimar o apetite pela guerra.

Esportes são guerras controladas. Um mundo sem esportes seria bem mais caótico. Adoro esportes em geral e futebol mais ainda. Nos meus tempos, fui um jogador bem razoável, se bem que de...vôlei. Cheguei até a ser campeão brasileiro, junto ao Bernardinho.

Mas, vendo os jogos, e, mais importante, a torcida, como não pensar em guerras tribais? Especialmente com as caras pintadas, os uniformes, as bandeiras, a testosterona elevada, as brigas entre torcedores e entre jogadores, as indignações que a pobre mãe do juiz sofre...

Interessante que o mesmo ocorre em jogos contra times locais. Não é só país contra país. É num Fla-Flu, Corínthians e São Paulo, Barcelona e Real Madri, Everton e Manchester United...as guerras são tão intensas quanto nos jogos internacionais. Esportes representam nossas várias alianças tribais: clube, Estado, país. Durante a Copa, torcedores de clubes diferentes se esquecem das disputas e vestem com orgulho a camisa do seu país.

Durante um mês o país é o foco principal, do mesmo modo que entre os gregos: as cidades-estado são os países e o império é o mundo.

O poder da Copa como unificador global é realmente impressionante. O mundo inteiro grudado nas TVs, nos rádios e, desta vez, graças à frota de satélites de telecomunicação, nos telefones celulares também. A tecnologia leva a Copa aos quatro cantos do planeta.

Nenhum outro evento mundial tem o poder de focar tanta gente de culturas, religiões e realidades sociais completamente diferentes.

Lembro a primeira Copa a que assisti, a de 1966, numa TV PB a válvulas, que demorava 30 segundos para "esquentar". O homem não havia ainda pousado na Lua, os Beatles ainda tinham cabelos curtos, o modelo do Big Bang acabava de ser confirmado, se bem que eu, com sete anos, não sabia de nada disso.

O mundo mudou muito. A população mundial mais do que dobrou. A Guerra Fria acabou. A economia global é uma coisa só, a falência de um país afeta o mundo inteiro.

Controlamos o buraco de ozônio, mas temos muito a fazer para controlar as emissões de CO2. Talvez estejamos vendo o início de uma mudança de atitude global, uma nova relação de sustentabilidade com o planeta.

Espero que na Copa de 2050, quando estaremos assistindo à final em hologramas tridimensionais em casa, o Brasil continue sendo o líder do futebol e seja o novo líder da ciência, e que tenhamos aprendido a viver em sintonia com a Terra.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"

Dilma e Serra são parceiros de um fracasso

Desde 1998, o governo não consegue receber
das operadoras privadas de saúde o ressarcimento do SUS


ELIO GASPARI

O CERIMONIAL DAS campanhas eleitorais determina que a oposição prometa rios de mel, os governistas digam que eles já existem e ambos joguem os problemas sobre as costas dos outros.

Dilma Rousseff e José Serra formam uma dupla rara. Compartilham em silêncio pelo menos um desastre e poderiam explicar à patuleia o que pretendem fazer para consertá-lo. Trata-se de discutir a ruína do ressarcimento ao SUS dos custos que caem sobre a rede pública de saúde pelo atendimento dos clientes dos planos privados.

Essa questão está aí desde 1995, no início da gestão tucana, e é lei desde 1998.
O fracasso prosseguiu durante os oito anos petistas. Segundo o Tribunal de Contas, entre 2003 e 2007 a Viúva deixou de coletar pelo menos R$ 2,6 bilhões das operadoras de planos de saúde cujos clientes são atendidos na rede pública. A conta pode ter chegado a R$ 5 bilhões.

O governo entendeu que, se um cidadão paga um plano privado, a operadora ganha dinheiro bancando custos de sua saúde.

Caso um cliente do melhor plano do país sofra um grave traumatismo craniano num acidente de automóvel, deve ser levado para a emergência de um pronto-socorro público. (Se for para o melhor hospital privado da cidade, arrisca morrer antes da chegada da equipe de neurocirurgia, pois só há esse plantão em alguns pontos na rede do SUS.)

A vida desse paciente será decidida nas primeiras 24 horas, a um custo de pelo menos R$ 20 mil. Noutro exemplo, um cidadão precisa fazer hemodiálise, vai para a rede pública e, novamente, nada de reembolso.

As operadoras surram a Viúva há 12 anos. Marcando em cima no Congresso, na nobiliarquia médica e na Agência Nacional de Saúde Complementar, desossaram todas as iniciativas dos governos. Quatro mil cobranças estão travadas na Justiça.

Teatralmente, o ministro José Gomes Temporão enganou quem lhe dava crédito, inaugurando um novo sistema de cobrança que simplesmente não existia.

A ANSS tem agora cerca de 200 funcionários trabalhando na cobrança do ressarcimento. Estimando-se em R$ 4.000 o salário de cada um, custarão R$ 10 milhões anuais. Em 2008, no auge da ruína, a agência coletou R$ 2,6 milhões.

Dilma e Serra podem responder: noves fora platitudes, o que tenho a propor? Recomeçar do zero, mobilizando a opinião pública, como fez o companheiro Obama, pode ser uma boa ideia.

RECORDAR É VIVER

O poderoso banco de investimentos Goldman Sachs está lutando bravamente para entrar na engenharia financeira da capitalização da Petrobras. Dos grandes, é o único que está fora do negócio.

Deveria ser chamado a participar, desde que seu principal executivo, o doutor Lloyd Blankfein, peça desculpas públicas por uma molecagem e por um mau conselho que seu banco deu aos brasileiros.

A molecagem: No início da campanha presidencial de 2002, quando o dólar começou a subir, o Goldman Sachs criou o Lulômetro. Era uma elegante equação onde cada interessado podia prever o preço do dólar depois da eleição, mudando as variáveis de acordo com suas expectativas políticas. Num resultado otimista, a vitória de Lula levaria a moeda americana de R$ 2,70 para R$ 3,04. Caso José Serra fosse eleito, ela cairia para R$ 2,52. Terrorismo eleitoral, do bom.

O mau conselho: Em janeiro de 1999, quando o governo de Fernando Henrique Cardoso estava afogado numa crise cambial, o Goldman Sachs recomendou uma "medida de grande impacto", a privatização da Petrobras, da Caixa Econômica e do Banco do Brasil. Paulo Leme, diretor de mercados emergentes do banco, acreditava que o bota-fora aumentaria a credibilidade do país, e a Petrobras renderia até US$ 60 bilhões. O valor de mercado da empresa estava em US$ 15,4 bilhões. Hoje está em US$ 165 bilhões. Leme era um queridinho da ekipekonômica tucana, que desejava colocá-lo numa diretoria do Banco Central. Foi abatido em voo pelo então ministro José Serra.

CONVERSÃO DO CRENTE

O resultado da pesquisa CNI/ Ibope levanta a suspeita de que o tucanato esteja com a febre dos candidatos mordidos pelo mosquito que os leva a fazer campanhas com o objetivo de converter os convertidos. Essa prática ajudou a derrotar Lula em três eleições presidenciais.

Pregando para os convertidos, José Serra consegue que seus eleitores multipliquem a raiva que têm de Nosso Guia. O problema é que uma pessoa com cinco vezes mais raiva do PT continua valendo um só voto.

RETRANCA


O comissariado de Dilma Rousseff decidiu radicalizar a blindagem da candidata. E só deve se expor a diálogos, entrevistas ou sabatinas de risco zero. Se puder, ficará no "Bom dia, boa tarde".

OFF DEMAIS

A novela da indisciplina militar americana no Afeganistão está longe de terminar. O general Stanley McChrystal ficou no papel de paspalho por conta de seu exibicionismo pueril e cinematográfico, mas seu papel era secundário.

Desde que entrou na Casa Branca o companheiro Obama percebeu que os generais tentavam emparedá-lo, impondo-lhe a expansão da guerra. Nesse jogo, McChrystal sempre foi um peão de seu colega David Petraeus, muito mais esperto, ambicioso e hábil na manipulação de políticos e jornalistas. Petraeus foi para o lugar de McChrystal.

Quando se vê que McChrystal e seus Rambos foram apanhados dizendo bobagens para um jovem free-lancer que conheceram em Paris, percebe-se que os craques da grande imprensa que trabalham em Washington e Kabul estão ouvindo demais e publicando de menos.

O EMBAIXADOR INGLÊS CONTOU TUDO

Há um bom livro na praça. É "Diplomacia Suja", de Craig Murray, embaixador da Inglaterra no Uzbequistão de 2002 a 2004, quando foi posto para fora do serviço diplomático. Seu subtítulo diz tudo: "As conturbadas aventuras de um embaixador beberrão, mulherengo e caçador de ditadores, sem um pingo de arrependimento".
São três as qualidades do livro. Primeiro, dá uma ideia do que é a vida nas tiranias da Ásia Central pós-soviética. Islam Karimov, o cleptocrata uzbeque, ferve opositores.

Depois, Murray expõe a hipocrisia das chamadas "potências" ao lidar com essas ditaduras. Para os Estados Unidos, Karimov é um santo porque abriga uma base militar e torra as riquezas minerais do país.

Quando o ex-embaixador narra a maquinação que fraudou um relatório do FMI, entende-se o que foi a festa da globalização do século passado. Finalmente, o livro retrata o mundo mesquinho e covarde de uma burocracia diplomática. Nesse sentido, é uma leitura útil para quem vive ou pretende viver nesse meio. Para quem fantasia um serviço diplomático chique e inteligente, é um instrutivo choque de realidade.
Murray soa vulgar e machista, mas fica um registro: ele e Nadira, a stripper que conheceu em Tashkent, vivem juntos e felizes em Londres.