http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/10/1353698-biografo-de-clarice-pede-que-caetano-mude-posicao-sobre-biografias-leia-carta.shtml
Autor da biografia Clarice, escritor Benjamin Moser pede ao amigo que reconsidere sua iniciativa.
Caro Caetano,
Nos EUA, quando eu era menino, havia uma campanha para prevenir
acidentes na estrada. O slogan rezava: "Amigos não deixam amigos bêbados
dirigir". Lembrei disso ao ler suas declarações e as de Paula Lavigne
sobre biografias no Brasil. Fiquei tão chocado que me sinto obrigado a
lhe dizer: amigo, pelo amor de Deus, não dirija.
Nós nos conhecemos há muitos anos, desde que ajudei a editar seu
"Verdade Tropical" nos EUA. Depois, você foi maravilhoso quando lancei
no Brasil a minha biografia de Clarice Lispector, escrevendo artigos e
ajudando com o alcance que só você possui. Admiro você, de todo o meu
coração.
E é como amigo e também biógrafo que te escrevo hoje. Sei que você
sabe da importância de biografias para a divulgação de obras e a
preservação da memória; e sei que você sabe quão onerosos são os
obstáculos à difusão da cultura brasileira dentro do próprio Brasil, sem
falar do exterior.
Fico constrangido em dizer que achei as declarações suas e da Paula,
exigindo censura prévia de biografias, escandalosas, indignas de uma
pessoa que tanto tem dado para a cultura do Brasil. Para o bem dessa
mesma cultura, preciso dizer por quê.
Primeiro, achei esquisitíssimo músicos dizerem que biógrafos querem
ficar com "fortunas". Caetano, como dizem no Brasil: fala sério. Ofereço
o meu exemplo. A biografia de Clarice ficou nas listas de mais vendidos
em todo o Brasil.
Mas, para chegar lá, o que foi preciso? Andei por cinco anos pela
Ucrânia, pela Europa, pelos EUA, pesquisando nos arquivos e fazendo 257
entrevistas. Comprei centenas de livros. Visitei o Brasil 12 vezes.
Fiquei contente com as vendas, mas você acha que fiquei rico, depois
de cinco anos de tais despesas? Faça o cálculo. A única coisa que ganhei
foi a satisfação de ver o meu trabalho ajudar a pôr Clarice Lispector
no lugar que merece.
Tive várias vantagens desde o início. Tive o apoio da família da
Clarice. Publico em língua inglesa, em outro país.Tenho a sorte de ter
dinheiro próprio. Imagine quantos escritores no Brasil reúnem essas
condições: ninguém.
Mas a minha maior vantagem foi simplesmente ignorância.
Não fazia ideia das condições em que trabalham escritores e
jornalistas brasileiros. Não sabia quanto não se pode dizer, num clima
de medo que lembra a época de Machado de Assis, em que nada podia
ofender a "Corte".
Aprendi, por exemplo, que era considerado "corajoso" escrever uma
coisa que todo mundo no Brasil sabe há quase um século, que Mário de
Andrade era gay. Aprendi que era até inusitado chamar uma cadeira de
Sergio Bernardes de feia.
Aprendi o quanto ganham escritores, jornalistas e editores no Brasil,
e quanto os seus empregos são inseguros, e como são amedrontados por
ações jurídicas, como essas com que a Paula, tão bregamente, anda
ameaçando.
É um tipo de censura que você talvez não reconheça por não ser a de
sua época. Não obriga artistas a deixarem o país, não manda policiais
aos teatros para bater nos atores. Mas que é censura, é. E muito mais
eficaz do que a que existia na ditadura. Naquela época, as obras eram
censuradas, mas existiam. Hoje, nem chegam a existir.
Você já parou para pensar em quantas biografias o Brasil não tem?
Para só falarmos da área literária, as biografias de Mário de Andrade,
de João Guimarães Rosa, de Cecília Meirelles, cadê? Onde é que ficou
Manuel Bandeira, Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre? Você nunca se
perguntou por que nunca foram feitas?
Eu queria fazer. Mas não vou. Porque o clima no Brasil, financeiro e
jurídico, torna esses empreendimentos quase impossíveis. Quantos
escritores brasileiros estão impedidos de escrever sobre a história do
seu país, justamente por atitudes como as suas?
Por isso, também, essas declarações, de que o biógrafo faz isso só
por amor ao lucro, ficam tão pouco elegantes na boca de Paula Lavigne.
Toda a discussão fica em torno de nossas supostas "fortunas".
Você sabe que no Brasil existem leis contra a difamação; que um
biógrafo, quando cita uma obra ainda com "copyright", tem obrigação de
pagar para tal uso. Não é diferente de você cantar uma música de Roberto
Carlos. Essas proteções já existem, podem ser melhoradas, talvez. Mas
estamos falando de uma coisa bem diferente da coisa que você está
defendendo.
De qualquer forma, essas obsessões com "fortunas" alheias fazem parte
do Brasil do qual eu menos gosto. Une a tradicional inveja do vizinho
com a moderna ênfase em dinheiro que transformou um livro, um disco, uma
pintura em "produto cultural".
Não é questão de dinheiro, Caetano. A questão é: que tipo de país
você quer deixar para os seus filhos? Minha biografia foi elogiosa,
porque acredito na grandeza de Clarice. Mas liberdade de expressão não
existe para proteger elogios. Disso, todo mundo gosta. A diferença entre
o jornalismo e a propaganda é que o jornalismo é crítico. Não existe só
para difundir as opiniões dos mais poderosos. E essa liberdade ou é
absoluta, ou não existe.
Imagino, e compreendo, que você pense que está defendendo o direito
dos artistas à vida privada. Mas quem vai julgar quem é artista, o que é
vida privada e o que é vida pública, sobre quem, e sobre o que se pode
escrever e sobre quem e, sobre quem não? Você escreve em jornal, você,
como o artista deve fazer, tem se metido no debate público. José Sarney,
imortal da Academia Brasileira das Letras, escreve romances. Deve ser
interditada também qualquer obra crítica sobre ele, sem autorização
prévia?
Não pense, Caetano, que o seu passado de censurado e de exilado o
proteja de você se converter em outra coisa. Lembre que o Sarney, quando
foi eleito governador do Maranhão, chegou numa onda de aprovação da
esquerda. Glauber Rocha, também amigo seu, foi lá filmar aquela nova
aurora.
Não seja um velho coronel, Caetano. Volte para o lado do bem. Um abraçaço do seu amigo,
Benjamin Moser
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