segunda-feira, junho 04, 2012

As capas polêmicas da New Yorker

Por André Miranda em 29/05/2012 na edição 696

Reproduzido do blog Prosa Online, 26/5/2012; título original “Traços controversos”

Talvez o melhor jeito de se conhecer o perfil de uma revista não seja apenas pelas capas que ela publicou, mas também por aquelas que ela não publicou. A americana The New Yorker teve à sua disposição polêmicas imagens políticas (soldados se beijando no Afeganistão), comportamentais (uma mãe e duas filhas passeando, as três grávidas), sociais (o ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, sendo ameaçado pela sombra de um homem negro) ou meramente provocativas (uma bailarina mostrando mais do que gostaria durante um movimento de corpo), e todas foram rejeitadas. Não porque a New Yorker, uma das mais relevantes publicações do mundo, não goste desse tipo de sátira – a revista já levou às bancas cenas até mais fortes do que as citadas. Mas simplesmente porque artistas nem sempre respeitam o que seria o tal politicamente correto de seu tempo, e cabe aos editores impor um limite. A não publicação de uma capa da New Yorker representa, portanto, um sintoma de uma época.

É por isso que Blown covers, coletânea recém-lançada nos EUA pela editora Abrams (US$ 24,95, sem previsão de publicação no Brasil), pode ser encarada como um livro de História. A obra foi organizada por Françoise Mouly, editora de arte da New Yorker e mulher do mais famoso capista da revista em atividade, Art Spiegelman – o casal está em São Paulo esta semana –, e traz 250 ilustrações comentadas, a maioria nunca publicada pela revista, além de algumas capas que chegaram às bancas e causaram enorme polêmica. São ilustrações de artistas de renome como o próprio Spiegelman, Robert Crumb e Barry Blitt.

Obras vetadas

Françoise está na New Yorker desde 1993 e participou da decisão sobre quase mil capas da revista. A responsabilidade do cargo acompanha o prestígio da New Yorker. Criada em 1925, a publicação reúne semanalmente ensaios, longas reportagens, críticas culturais, quadrinhos, poesias e prosa. Foram muitos os exemplos de histórias saídas das páginas da New Yorker para o cotidiano pop da sociedade americana. “A sangue frio” foi publicado primeiro como uma série na revista antes de se tornar um dos livros mais populares de Truman Capote. Os cartuns da Família Addams, de autoria de Charles Addams, ocuparam as páginas da New Yorker entre 1938 e 1988. Hoje, poucos sabem quem foi Charles Addams. Mas ninguém tem dúvidas quando se fala em Gomez, Mortícia ou Vandinha.

Essa mistura de temas e estilos da New Yorker volta e meia trazem uma dose elevada de humor e, sobretudo, de ironia quanto aos principais acontecimentos do mundo. Suas capas, sempre com imagens de artistas consagrados, retratam bem esse tom da revista. Para um editor, o que costuma pesar na escolha de uma capa é a relevância da imagem, sua atração sobre os leitores e sua capacidade de transmitir uma informação. Entretanto, mesmo uma publicação respeitada, feita na terra da democracia, admite que às vezes vale a pena abdicar de uma ótima sacada em prol de menos aborrecimento.

Em 2009, uma capa de Robert Crumb sobre união homossexual foi engavetada pela revista. A imagem era perfeita para mostrar como a atual indefinição de gêneros complica qualquer possível restrição em legislações sobre o tema. Uma moça de cabelo curto, brinco e terno aparecia ao lado de um rapaz alto, musculoso, de peruca loura, saia e salto alto, ambos num balcão de casamento, frente à expressão confusa do juiz. Françoise, porém, achou que a ambientação daquela imagem não combinava com o período.

A capa rejeitada de Crumb parece desenho de seminarista frente a algumas feitas por Spiegelman. Por suas cenas nunca publicadas na revista, pode-se dizer que ele foi obcecado pelo caso da estagiária Monica Lewinsky, aquela que conferiu os segredos de Estado do ex-presidente americano Bill Clinton – depois de negar várias vezes, Clinton admitiu que houve “sexo oral”, mas que sexo oral não integrava o conjunto de atividades de uma “relação sexual”. O mundo caiu na gargalhada com as declarações de Clinton, e Spiegelman fez barba, cabelo e bigode com o caso. Em uma das capas não publicadas, intitulada “O último pedido de Clinton”, o presidente aparecia diante de um pelotão de fuzilamento, com uma mocinha ajoelhada entre suas pernas. A New Yorker vetou.

Pior fez o cartunista Danny Shanahan. Em 2002, ele aproveitou o noticiário sobre mulheres-bomba para desenhar uma muçulmana cuja burca era levantada pelo vento de uma tubulação no chão, tal como Marilyn Monroe. Mas, diferentemente de Marilyn, acima das coxas da personagem imaginada por Shanahan apareciam dinamites.

Barry Blitt foi além em 2008. A New Yorker não rejeitou sua capa em que Barack Obama, ainda não eleito, e sua mulher, Michelle, se cumprimentavam no Salão Oval da Casa Branca. Ela portava um fuzil e usava roupa de guerrilheira; ele tinha um turbante na cabeça. Numa lareira, a bandeira dos EUA era queimada. Na parede, um quadro de Osama Bin Laden. Todo mundo, de democratas a republicanos, criticou a revista por supostamente inflar o medo na população. E o editor-chefe, David Remnick, teve que ir a público explicar que a intenção era satirizar o que se falava do casal livremente na internet. Depois, a New Yorker acabou assumindo publicamente seu apoio à candidatura de Obama.

Torres Gêmeas de areia

O exemplo de quanto uma capa pode fazer barulho – ou provocar uma ferida – estava dado. Anos antes, já ficara claro que artistas são capazes de analisar em detalhes uma sociedade, ao ponto de sugerir um acontecimento do porte do 11 de Setembro de 2001. Em 1993, o cartunista americano David Mazzucchelli se inspirou na prisão de quatro homens pela tentativa de um atentado em Nova York e publicou uma capa em que um guri com um lenço na cabeça (lembrando um árabe) destruía duas torres gêmeas feitas de areia por outras crianças na praia.

Se Françoise Mouly tivesse imaginado o que aconteceria oito anos depois, talvez a capa de Mazzucchelli nunca tivesse saído.

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[André Miranda, de O Globo]

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