domingo, junho 24, 2012

Mostrar para Esconder: O Papel da Mídia na Construção do Conformismo - Parte 2

24 de junho de 2012


2. DO ESPETÁCULO À INVISIBILIDADE

“Tudo aquilo que engana parece liberar um encanto”.
Platão.

Após longa e gostosa espreguiçada, o secretário arruma as folhas do
relato e se prepara vagarosamente para retomar o trabalho. Impaciente,
Nádia cruza as asas na altura do peito enquanto marca com o bater da
pata o nervoso passar dos segundos.
O duelo silencioso que se instala entre os dois seres usa olhares,
gestos e caretas como espadas afiadas da luta entre a urgência de
desvendar a realidade e o sossego de quem, ao nadar no fluxo da
correnteza, resiste a qualquer mudança. Ciente das dificuldades do
embate, em que dúvidas e novas perguntas precisam cutucar o senso
comum, a coruja se aproxima do ajudante e sinaliza o desejo de
sussurrar algo ao pé do ouvido:
- “Bem-vindo ao espetáculo!”, murmura o bico protegido pela asa em
forma de concha.
- “Espetáculo... de que...?!?”, indaga o homem ao estranhar a atitude
e as palavras.
- “Ora, querido humano de óculos, estou me referindo a tudo aquilo que
ajuda a vender mais jornais, livros, revistas, CDs ou a garantir os
índices de audiência. Chamo de espetáculo aquilo que, insólito ou
corriqueiro, pode ser separado dos seus elementos constitutivos e
transformado em show de vida ou de morte”, arremata a coruja ao virar
as costas em tom de provocação.
- “O que você quer dizer com isso?”, pede o secretário ao cair na armadilha.
- “Se, de um lado, o cardápio da imprensa sensacionalista sempre foi à
base de notícias de variedades, fofocas de famosos, violência, sangue,
sexo ou dramas humanos, temperados com certo ar de mistério, de outro,
não há meio de comunicação que, apesar de manter a respeitabilidade,
esqueça que são esses pratos a elevar as vendas e a aumentar a
audiência. O inusitado, insólito ou inesperado dá cor à rotina
cinzenta do dia-a-dia, provoca emoções, gera empatia, atrai as
atenções e cutuca a curiosidade.
Como critério de seleção, a importância do acontecimento em termos de
compreensão das causas e consequências para a vida coletiva cede o
lugar à busca do sensacional e do espetacular presentes em fatos que
interessam às grandes maiorias, não envolvem disputas, não provocam
divisões, geram uma comoção capaz de despertar uma multiplicidade de
reações, mas não uma atitude que leve o cidadão comum a se envolver na
mudança do que serviu de caldo de cultura à produção da realidade.
Imagens e comentários não se distanciam do que atrai, do que integra o
consenso social existente ou pode ser facilmente assimilado como tal
ao mesmo tempo em que põem em cena a gravidade, o caráter dramático,
trágico ou cômico de um fato. Ao exagerar a importância desses
aspectos, a mídia cria símbolos, fantasias, medos, fobias ou,
simplesmente, representações falsas da realidade na medida em que, a
exemplo do prestidigitador, atrai a atenção para algo que distrai o
público e o impede de ver o essencial, no nosso caso, as razões
profundas que gestaram os acontecimentos.
Na busca incessante pelo furo de reportagem, pelo que rompe com o
cotidiano, até a morte se transforma em show a ser explorado. Este
processo não só banaliza a violência como introduz princípios de
análise que servem de lentes pelas quais as pessoas passam a ver e
interpretar o mundo. Atraído pelo espetáculo e tornado cego pelas
evidências que, supostamente, deveriam possibilitar uma visão mais
ampla da sociedade, o público incorpora e reproduz a leitura enviesada
dos acontecimentos e desconsidera as relações cotidianas, rotineiras,
e aparentemente banais nas quais estão as explicações para os eventos
espetaculares que marcam o tempo da mídia”.
- “A teoria parece boa. O problema é entendê-la na prática!”, afirma o
homem ao interromper bruscamente o relato da coruja.
- “Se é de exemplos que você precisa, aí vão eles! Vamos começar pelas
chuvas de verão que transformam São Pedro em carrasco dos mais pobres.
Via de regra, imagens e comentários retratam o que o repórter enviado
ao local pôde constatar no curto período de tempo em que aí
permaneceu. Vídeos de casas inundadas ou derrubadas pela correnteza,
de ruas e avenidas transformadas em corredeiras ou de desmoronamentos
filmados em tempo real se alternam aos de grupos de socorro, aos de
manifestações de solidariedade e às falas dos moradores que costumam
reproduzir o que ouviram nos noticiários.
Numa aparente investigação objetiva da realidade, são ouvidos
especialistas, prefeitos, governadores e testemunhas oculares das
tragédias descritas. Quando a sorte ajuda, há um vídeo amador ou uma
foto de celular que retrata o momento mais dramático, a situação mais
inusitada, enfim, o que se destina a chamar a atenção do público e
proporcionar a audiência almejada. Na apuração das responsabilidades
costumamos encontrar três grandes linhas de investigação: o nível de
chuvas acima do esperado, que caracteriza o acontecimento como
catástrofe natural; a estrutura geológica do terreno, em relação à
qual pouco ou nada pode ser feito; e, finalmente, o fato de a
população carente estar ocupando áreas de risco, apontado como
principal responsável pela tragédia ao lado de um Estado que alega não
ter condições de controlar a ocupação desordenada do solo e está
fazendo o possível para providenciar abrigo aos desabrigados.
O que não aparece, ou é diluído a ponto de passar desapercebido aos
olhos do público, é o cotidiano das vítimas feito de trabalho precário
e mal remunerado, exploração, pobreza, menor escolaridade, maior
dificuldade de acesso a oportunidades de novos empregos, desemprego de
longa duração, angústia e insegurança diariamente vivenciadas por quem
se vê, literalmente, sem alternativas. Isso sem contar a especulação
imobiliária, a ausência do Estado no cumprimento de seu papel de
garantidor dos direitos essenciais e a sua negligência em obras e
ações efetivas na prevenção de catástrofes, tão regulares quanto o
ritmo das estações. Na medida em que as luzes do show da vida ocultam
a rotina que não faz notícia, produz-se uma anestesia do pensamento
capaz de levar as pessoas a não perceberem o óbvio: ninguém mora em
áreas de risco porque quer, por teimosia, por falta de consciência ou
irresponsabilidade, mas porque sua situação não oferece outra
possibilidade.
Num passe de mágica, chuvas acima da média não fazem boiar em suas
águas as contradições do dia-a-dia que permanecem invisíveis, pois não
há nada espetacular no sofrimento dos pobres e marginalizados, mas
inocentam o sistema econômico ao apontar as vítimas como principais
responsáveis pela própria desgraça. Desta forma, nenhum meio de
comunicação precisa mentir para que a anestesia do pensamento seja
revigorada com as informações divulgadas. Basta distrair o público com
a notícia-espetáculo, tão verdadeira quanto o coelho que sai da
cartola do mágico e profética quanto basta para que a próxima chuva
abundante demonstre a veracidade das constatações divulgadas no
passado.
Do mesmo modo, a realidade das periferias das grandes cidades só vira
manchete quando um crime hediondo, uma ação arrojada dos traficantes,
a ocupação dos morros pelas forças policiais ou algo com forte cheiro
de violência, sexo e sangue é levado ao conhecimento do público. Como
nos casos das chuvas de verão, a lógica do espetáculo consegue
desinformar ao informar. Os corpos das vítimas, as marcas dos tiros, a
reconstrução dos acontecimentos através da animação gráfica ou de um
mapa, as imagens da operação policial, algumas entrevistas
cuidadosamente selecionadas e a confirmação implícita de que a
periferia é um lugar sinistro, violento, sem lei, onde a fronteira
entre um morador honesto e um delinquente é sempre tênue e porosa, o
que transforma o ambiente em algo instável e aterrorizante. Logo,
sempre que alguém falar em favela, morro ou citar bairros tristemente
famosos, a imagem recorrente será a de um menino armado a serviço do
tráfico, da droga vendida como laranjas na feira, das armas que
circulam indiscriminadamente, enfim, de um estado de guerra latente
onde tudo pode acontecer de uma hora pra outra.
Ninguém duvida de que, por exemplo, o complexo de favelas do Alemão,
no Rio de Janeiro, seja um lugar difícil não só para viver, mas também
de descrever e de pensar por parte da mídia. A complexidade das
situações vividas pelos moradores impede que imagens simplistas e
unilaterais representem a amplitude e a variedade de vivências que se
dão em seu meio e permitam uma compreensão profunda dos
acontecimentos. O problema é que o caldo de cultura capaz de explicar
o porquê das coisas não tem existência visível nos meios de
comunicação a não ser quando algo fora do comum se torna objeto de
interesse de algum deles. O tratamento jornalístico destinado ao
acontecimento deforma a realidade pelas lentes do espetáculo, do que é
digno de virar manchete, mas não permite um trabalho de reconstrução
da realidade na medida em que o cotidiano é ocultado pela melhor
imagem, pela tomada mais expressiva e emocionante, pelas cenas de ação
que fortalecem e reafirmam as visões estereotipadas das periferias e,
portanto, o processo pelo qual os que mais sofrem se tornam
invisíveis”.
- “Você falou em estereótipos e invisibilidade...?!?”, indaga o homem
ao tentar disfarçar a confusão em que se encontra.
- “Exatamente!”, responde a coruja com semblante sério e compenetrado.
“Sempre que uma pessoa ou um grupo humano são representados através de
um estereótipo, um estigma ou um preconceito, o resultado final é
sempre o de anular as pessoas ao fazer desaparecer o que lhe é
singular. Quem está na frente do repórter não é a Maria, o José, a
Francisca ou o Severino, mas sim ‘a favelada, o negro, a garota
perdida, o moleque perigoso’ e assim por diante. Tudo aquilo que ajuda
a entender e a distinguir uma pessoa simplesmente desaparece sob os
traços estereotipados que a lógica do espetáculo reforça ao estimular,
ou justificar implicitamente, a adoção de atitudes preventivas que
marginalizam e condenam as próprias vítimas.
A história de vida, desejos, sentimentos, ambições, qualidades,
defeitos, a capacidade de resistir ao sofrimento, as injustiças
sofridas, enfim, tudo desaparece sob o manto cinzento do estereótipo.
E quando some a realidade material que ajudou a construir o que cada
sujeito é, faz, acredita e deseja, a elite mata dois coelhos com uma
cajadada só. De um lado, o retrato produzido pela mídia inocenta de
antemão ouvintes, leitores e telespectadores de suas responsabilidades
na injustiça social. Os cidadãos comuns acreditam piamente que nada
têm a ver com a existência das favelas, do racismo, da marginalização,
da pobreza, da violência e das escabrosas realidades que marcam a vida
em sociedade. Todos se sentem inocentes porque acreditam que as coisas
são assim e não adianta teimar, que no mundo há uma luta encarniçada
entre o bem e o mal, que ninguém mandou essa gente morar em favelas ou
em ambientes degradados, mas que este foi seu destino, ora por
ignorância, ora porque fizeram por merecer.
Ao apagar a história individual e coletiva, a lógica do espetáculo
focaliza o reflexo que cega a capacidade de ver a injustiça presente
nas relações de propriedade, de trabalho e de poder, e que se
manifesta na particularidade da história de cada um e na vivência
coletiva de grandes grupos humanos. Mais uma vez, a história é
reafirmada como obra do acaso e não como produto de estruturas que
ganham vida na atuação e na omissão de cada um enquanto membro de uma
classe social. É por acaso que as favelas nascem e crescem em número e
tamanho incomodando com sua presença as pessoas de bem. É por acaso,
ou por um capricho da própria vontade, que o aviãozinho da droga busca
a vida onde só pode encontrar a morte. É por acaso, preguiça,
incompetência ou por acomodação que há gente sem trabalho,
subempregada, sem casa ou vivendo do lixo. E, neste último caso, as
distorções são ainda mais gritante na medida em que o espetáculo dos
lixões a céu aberto leva muita gente a acreditar que só há catador
porque os moradores da cidade se desfazem de coisas que ainda servem
ou poderiam ser reaproveitadas e não porque uma realidade social
injusta transforma seres humanos no último elo da economia antes do
chorume.
Para quem está, ou se sente, um degrau acima dos desqualificados, a
invisibilidade proporcionada pela lógica do espetáculo não é sinônimo
de não perceber a presença física do outro, mas de ignorá-lo ou de
decretar que, enquanto desqualificado, este outro não tem nenhuma
relevância social. A idéia pela qual cada um deve saber o seu lugar e
aceitar humildemente o que lhe é oferecido é parte da cotidiana
relação de classes que marca as diferenças e os critérios pelos quais
se define quem é ou não importante, quem tem direito ou não de
incomodar os demais. Que o catador peça papelão, latinhas, vidros,
plásticos ou metais com aquele jeito submisso e cordial, próprio dos
humilhados, é algo que todos aceitam e prezam. Mas que esse sujeito
incômodo, mal-cheiroso e potencialmente perigoso por morar no submundo
da rua peça água, comida, dinheiro ou transforme a calçada em depósito
momentâneo para arrumar a carga do carrinho, isso já é demais. E caso
ele esbarre em alguma coisa ou em alguém, a sua pequena distração
abrirá o caminho de mais uma humilhação, vinda do cidadão de bem que
se sente acima de sua condição social”.
- “E o segundo coelho?!?”, pede o homem ao mostrar que não perdeu o
fio da meada.
- “O segundo efeito da invisibilidade pela lógica do espetáculo é que
os marginalizados se convencem de que eles não têm direito a ter
direitos. Ao interpretarem a própria situação como fracasso individual
no estudo, na busca do sucesso, no trabalho e no aproveitamento das
chances de subir na vida, as vítimas do estereótipo partilham a
necessidade imprescindível de se manterem afastadas dos últimos
lugares da fila dos derrotados com os quais convivem. É comum que
estas pessoas se deparem frequentemente com a escolha entre o caminho
do tráfico, do crime e da violência e o do trabalho desqualificado
que, apesar de não oferecer chances concretas de ascensão social,
proporciona o conforto moral de não estar entre os drogados, os
traficantes, os bandidos ou quem se prostitui para viver. A carteira
de trabalho assinada ou o ser conhecido como trabalhador honesto é
tido como sinal de distinção em relação à delinquência e motivo de
orgulho.
Se o lugar de moradia, a cor da pele, a situação de marginalidade ou
as injustiças sofridas colocam as vítimas a um passo de atravessar a
fronteira do crime, provar que não se é nem vagabundo, nem bandido,
apesar da vida de privação, torna-se caminho obrigatório para
reafirmar a própria dignidade. Motivo de felicidade e disposição para
enfrentar a vida, a luta para não descer mais um degrau na hierarquia
social pode não afugentar a pobreza, mas proporciona a alegria
resignada ao pouco que se tem. Quem se sacrifica para se afastar dos
últimos lugares, ou não depender da caridade alheia, tende bem mais a
se confortar com os casos de quem está pior do que a lutar para fazer
valer o direito a ter direitos.
Fora do seu ambiente, o desafio de manter a dignidade passa por negar
a origem social, mentir em relação ao local de moradia e evitar
situações que possam repercutir em novas derrotas e humilhações. Via
de regra, as vítimas dos estereótipos sociais preferem não ser vistas,
não aparecer, não serem identificadas por sentir que sua situação não
oferece chances reais de reconhecimento. Sempre à espera de novas
humilhações, preferem perder por não escalar o time do que amargar uma
goleada. Ao aceitar espontaneamente, e por antecipação, os limites da
posição social que ocupam, os oprimidos contribuem involuntariamente
com a própria opressão na medida em que se calam, ficam vermelhos de
vergonha, baixam o olhar, diminuem o tom de voz, sentem-se
desconfortáveis ao interagir com seus superiores no trabalho ou com
alguém de uma classe social acima da própria. O ditado pelo qual
‘manda quem pode, obedece quem tem juízo’, transforma em sabedoria o
agüentar passiva e resignadamente situações de humilhação,
incompreensão, negação dos próprios direitos por parte de quem é visto
como superior. O jeito assumido como certo, então, é fazer de tudo
para se reservar, se preservar e sumir do olhar alheio.
Viver o fato de que não se tem direito a ter direitos tende a fazer
com que as próprias vítimas se distanciem do que cheira a envolvimento
na ação política de movimentos e representem como ‘metidos à besta,
abusados ou desaforados’ aqueles que, em seu meio, resistem a aceitar
esta situação ou se rebelam. Ora por identificá-la como caminho para a
desonestidade e a corrupção, ora porque, na situação de humilhado, se
vê incapacitado de atuar no que define o próprio futuro e o dos
familiares, o oprimido só consegue se imaginar no âmbito da política
pela lógica do espetáculo: alguém dotado de superpoderes e de uma
vontade capaz de resolver num estalar de dedos a situação dos pobres.
No fundo, é isso que ele espera dos governantes, mas o problema está
justamente aqui: não age e, no máximo, torce para que outros façam por
ele por serem aqueles que têm escolaridade, conhecimento, dinheiro e
poder.
Longe de ser vista como espaço de disputa dos interesses de classe e
caminho para a construção coletiva de um direito, a política é algo
que está fora do seu alcance. O que resta é pedir a Deus para que
apareçam melhores oportunidades de trabalho, para que ninguém da
família fique desempregado ou doente, para que haja sempre horas
extras ou até pinte um segundo emprego. É isso que possibilita comprar
mais, adquirir aquela tv, geladeira ou celular dos sonhos, sinônimo de
mais dignidade, de um degrau acima dos níveis mais baixos da escada
social, enfim, de um afastamento mais claro da incômoda fronteira com
o crime.
- “Ao mesmo tempo, não dá pra negar que nem todos agem assim...”,
indaga o ajudante em tom de contestação.
- “As exceções mais confirmam do que negam a regra”, rebate Nádia ao
riscar o ar com um rápido movimento da asa. “O que precisamos deixar
claro é que os efeitos produzidos pelas imagens da mídia nas classes
sociais não podem ser divididos com precisão cirúrgica entre os
membros destes grupos. Estou me referindo, por exemplo, à outra face
da invisibilidade: a arma como passaporte para sair do esquecimento e
pela qual quem passava sem ligar para o marginalizado, agora lhe
obedece.
Enquanto os estereótipos reafirmam entre a maioria dos dominados que
não têm direito a ter direitos e fortalecem sua invisibilidade, a arma
permite percorrer o caminho inverso, da sombra que fazia o humilhado
desaparecer ao medo que o torna visível. Ao empunhar um revólver, um
fuzil ou uma faca, o esquecido recupera sua visibilidade, exige ser
tratado como sujeito e repassa pelo caminho da violência a fatura da
dívida social da qual todos falam.
Como passaporte para a visibilidade, a arma é um grito de socorro, um
pedido de reconhecimento e valorização, mas, ao mesmo tempo, o pior
caminho possível na medida em que esse tipo de reconquista da
visibilidade trilha as sendas do crime e faz com que o sujeito vista a
carapuça que o preconceito lhe preparara. Sua afirmação não
proporciona o reconhecimento sonhado e sim o pacote completo de
maldições que o medo faz ressoar na alma do assaltado e a conseqüente
comprovação dos estereótipos divulgados. Ao optar pelo crime, o
invisível de ontem se desarma das condições que poderiam proporcionar
a denúncia das injustiças, a busca de apoios e aliados, a criação de
fatos que marquem a saída da resignação rumo à construção do direito a
ter direitos. Por sua vez, diante da arma, a vítima sente medo e ódio,
tende a afasta-se abruptamente de tudo o que poderia levá-la a se
solidarizar com o ambiente no qual nasceu o seu agressor e reafirma
como verdadeiras e dignas de fé as leituras do real que a mídia vinha
trabalhando.
O pedido de socorro se transforma, assim, em fonte de nova e mais
pesada condenação alimentando o ciclo que reproduz a marginalização e
a invisibilidade. O dinheiro do assalto e do tráfico proporciona
instantes fugazes de respeito e visibilidade, a admiração do grupo, a
satisfação de desejos de consumo estimulados pela propaganda e negados
pela realidade social, mas, ao mesmo tempo, legitima o estigma, o
estereótipo, a invisibilidade, a humilhação e a renúncia à luta para
ter direitos própria das maiorias marginalizadas”.
- “Mas de que forma isso contribui para anestesiar o pensamento de
ouvintes, leitores ou telespectadores?”, pede o homem ao deitar
suavemente a caneta nas folhas do relato.
Feliz com a preocupação do secretário, a ave permanece silenciosa por
alguns instantes. Os gestos produzidos pelos movimentos das asas
antecipam o teor das palavras. Um rápido piscar de olhos... Um
movimento brusco que parece cortar o véu das aparências e...
- “Além das corujas falantes, os representantes pensantes da sua
espécie estão sempre em busca de um sentido para o que fazem, pensam
ou vêem. Trata-se de um processo incessante alimentado pelas
contradições com as quais nos deparamos e pela própria dinâmica dos
acontecimentos que transforma fatos e respectivos sentidos em amantes
que se encontram por instantes, se entregam, se afastam e renovam
seguidamente a procura recíproca.
A necessidade de ir além das aparências é algo que inquieta, demanda o
esforço constante de questionar as próprias percepções e, obviamente,
não se contenta com os primeiros resultados. A sensação de satisfação
não está no significado imediato que foi encontrado, mas sim em ser
parte ativa de uma busca que mantém em alerta, faz duvidar das
aparências, nunca encontra a plenitude e só permite breves momentos de
descanso.
Por outro lado, para que possam consolidar uma determinada maneira de
ver a vida, a anestesia e a desativação do pensamento precisam se
focar nas aparências, cristalizar sentidos e percepções que não
dependem do sujeito, mas de idéias, valores, símbolos e sentidos
capazes de paralisar o significado que este atribui às relações
sociais fazendo com que percam seu caráter histórico e contingente aos
olhos das grandes maiorias.
Esta dinâmica, que marca a formação e a evolução do senso comum,
transforma o que o telespectador vê na tela em algo cuja projeção de
sentido ele já vinha demandando pela sintonia entre sua busca
particular, típica de qualquer ser humano, e o conjunto de valores e
crenças com base nas quais ele realiza a própria busca e que, via de
regra, não se distanciam fundamentalmente dos moldes preparados pela
elite. O que interessa ao cidadão comum não é encontrar algo que o
force a percorrer o tortuoso caminho que conduz à superação das
aparências e sim um simples atalho que lhe permita se deparar com um
sentido imediato, capaz de proporcionar a satisfação desejada. Estamos
falando de algo pequeno, rápido, profundo quanto basta para não dar
trabalho e apontar o que está certo ou errado. Assim, cada imagem e
comentário que produzam a coincidência entre fatos e sentidos
proporcionam ao ouvinte, leitor ou telespectador a certeza de ter
achado o que procurava. Trata-se de uma sensação de gozo, diante do
qual o pensamento cessa. O encontro com um significado, de fato,
proporciona sempre um relaxamento da tensão que alimenta o pensamento
e produz um prazer que desativa instantaneamente a capacidade de
refletir criticamente sobre o que foi percebido como uma representação
satisfatória e, temporariamente, convincente do presente.
É claro que se trata de um relaxamento provisório, pois a realidade
não pára e exige do pensamento a procura de novos significados, mas,
para isso, a sequência de imagens, notícias, comentários produzida na
lógica do espetáculo, gera elementos suficientes para tornar
desnecessário o trabalho de pensar no que havia sido visto, lido ou
ouvido. Quanto mais esse fluxo ininterrupto ocupa espaço em nossa vida
diária, mais aumentam as possibilidades de obter uma conexão estável
entre acontecimento, significado e sensação de prazer e menos o
pensamento é convocado a entrar em ação para questionar o que parece
líquido e certo. Se aos vários tipos de noticiários acrescentamos o
bombardeio das novelas, seriados, programas de auditório e demais
enlatados, não vai ser difícil perceber que a chance de o homem comum
parar pra pensar diante da tv passa a ser algo extremamente reduzido e
limitado no tempo, pelo menos enquanto ele transferir à mídia a sua
busca de sentido”.
- “Mas isso é um perigo!”, afirma o ajudante sem levantar os olhos do papel.
- “Exatamente!”, confirma Nádia ao menear a cabeça. “Na medida em que
a própria morte vira espetáculo e o espetáculo produz significados que
desativam o pensamento, os membros de sua espécie começam a se
acostumar com imagens e realidades que, anos atrás, os fariam sair da
sala, mudar de canal ou desligar a tv. O que está em jogo é algo sério
e preocupante. De um lado, temos a banalização do mal, que leva à
incapacidade de se indignar diante do que deveria ser abertamente
condenado, e, de outro, o convite implícito a repetir sem remorso o
que acaba de ganhar as cores da normalidade.
Onde o pensamento não opera, ou passa por longos períodos de
anestesia, não temos apenas um ficar calejado, um acostumar-se
progressivo à situação de violência e injustiça, como o imaginário do
sujeito o incita a agir da mesma forma sem que haja uma reflexão
pessoal que bloqueie ou obstaculize este processo. Quando o aparelho
de som, a televisão ou o rádio transmitem a música pela qual ‘um
tapinha não dói’ sem que isso seja acompanhado por uma rejeição social
à altura da situação ou de uma denúncia que trave o processo de
divulgação, ou seja, sem que o senso comum se depare com algo que
marca e reafirma como intolerável semelhante atitude, há um forte
aumento da tendência a que um número maior de pessoas passem a
realizar este ato sem reservas. Na medida em que o pensamento se
encontra desativado pelos mecanismos que apresentamos e se produz um
consenso tácito em volta do que é repetido, tocado e dançado sem
limites e nas mais variadas situações, a publicidade do gesto tende a
se tornar um incentivo à sua realização. No inconsciente das pessoas,
a idéia de permissão, autorizada pelo silêncio da falta de condenação,
transforma-se em estímulo à realização do ato, em voz que repete ‘Vai
lá e faça!’ Além de impedir a indignação, a banalização do mal tende a
ampliar o próprio mal e a fazer com que os humanos reproduzam atos
condenáveis sem sentimentos de culpa.
Neste sentido, vale a pena se perguntar quantas cenas de violência,
veiculadas na lógica do espetáculo, um adolescente viu até completar
os 18 anos; quantos crimes virtuais ele cometeu em jogos eletrônicos
ou quantos adversários eliminou a tiros experimentando a satisfação de
sair vencedor por multiplicar as mortes. Será que isso tudo serve
apenas para dar vazão aos instintos sem maiores consequências? Ou não
é o caso de se perguntar até a que ponto contribui para legitimar algo
bem mais profundo e complexo que, ao entrelaçar-se com os mecanismos
descritos, transformará o pôr fogo em um morador de rua numa
brincadeira que proporciona uma prazerosa descarga de adrenalina sem
maiores consequências? Em que medida o vazio de pensamento
seguidamente produzido torna-se condição suficiente para banalizar a
própria condição humana? E o problema aqui não é apenas a crescente
crueldade dos maus, mas, sobretudo, a indiferença e o silêncio em que
mergulham as pessoas que se definem como sendo do bem.
Ao dar sua contribuição essencial na tarefa de desativar o pensamento
e tornar invisível a realidade que produz os acontecimentos, a lógica
do espetáculo faz com que as notícias mais chocantes e os fatos mais
escandalosos possam até provocar uma comoção social momentânea, mas,
produzem simultaneamente a sensação de que não há o que fazer porque a
vida é assim. A impotência que vai ganhando corpo se propaga na medida
em que o conjunto da obra não revela que estamos num mundo em
construção, onde situações e possibilidades dependem da intervenção e
da omissão de indivíduos, grupos, classes ou setores sociais, mas sim
de um acaso incontrolável do qual sempre podemos esperar todo tipo de
surpresas.
Neste contexto, desativar o pensamento é também desativar nas grandes
massas da população a capacidade de visualizar de que há sim
alternativas, de que não há nada definitivamente perdido no campo da
organização social, de que as chances de mudanças são reais, de que há
espaço para dar vida a algo que contraria os valores, as idéias, as
representações, os sentidos, os símbolos que, até o momento, marcaram
o cotidiano viver em sociedade. Em outras palavras, a lógica do
espetáculo imobiliza e anula o ato de pensar como condição para dar
início a algo que não existe, a um movimento, a uma formação social ou
a uma representação da vida que ainda não está presente, contribuindo
assim para que tudo pareça natural e imutável. E quando nas maiorias
se instala a convicção pela qual ‘não tem jeito’, qualquer meio que
tente negar esta percepção é visto como um exercício inútil de busca
do impossível. Por isso, arranhar o consenso que sustenta a ordem de
exploração torna-se algo cada vez mais complexo e menosprezado até
mesmo entre os que mais sofrem o peso da injustiça e que, não por
acaso, são os principais alvos da mídia.
Aos poucos, o cotidiano começa a se tornar o lugar onde não se pensa,
o âmbito em que quase tudo vem mastigado, pronto para ser engolido e
processado mecanicamente, onde o que importa são as emoções e os
instantes de prazer ou afirmação que proporcionam. Próximos deste
patamar, a simples possibilidade de pensamento crítico é condenada
como subversiva pelas elites, desqualificada como fora da realidade
pelas maiorias e taxada de inconsistente pela classe média. Ferir o
consenso que torna plausíveis as interpretações correntes do cotidiano
e trazer à tona o que não se quer ver gera dúvida e insegurança,
arrasa símbolos, faz precipitar os castelos no ar pacientemente
construídos para que os olhos dos de baixo não vejam o chão onde se
pisa”.
- “Então, isso quer dizer que...”, sussurra o secretário desconcertado.
- “Isso quer dizer que, para as grandes maiorias, o comum é repetir o
pensamento das elites como se fosse o próprio pensamento e o único
capaz de explicar a realidade. Em diferentes graus de complexidade, a
maneira dominante de ver e interpretar o cotidiano da história oferece
formulações que se credenciam como ‘a maneira certa de ver as coisas’
e proporcionam a sensação de ter encontrado o rumo pelo simples fato
de que há multidões caminhando na mesma direção e com o mesmo
propósito.
Mas, para dominar, não basta desativar a capacidade de pensar
criticamente. Faz-se necessário viabilizar uma visão de mundo no
interior da qual as pessoas possam dar sua adesão ativa, se emocionar,
propor e atuar sem sair do molde preparado e seguidamente adaptado
pelos grupos no poder. Por isso, vamos tratar agora de dois elementos
que os meios de comunicação não poupam esforços para consolidar:...”

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