quarta-feira, junho 30, 2010

Vaticano tem sistema de poder misto que une o laico e o religioso

EL PAÍS

Miguel Mora
Roma (Itália)

Os Gentis-homens de Sua Santidade fazem parte da família pontifícia como o comandante da Guarda Suíça ou os clérigos que trabalham com o papa. Antes se chamavam Camareiros de Capa e Espada, e havia os secretos e os de honra. Em março de 1968, dois meses antes que em Paris fosse proibido proibir, em Roma Paulo 6º aboliu a Corte vaticana e criou os gentis-homens. Montini escreveu com um toque de pena: "Tanto na Igreja inteira, especialmente depois do concílio ecumênico Vaticano 2º, como na opinião pública mundial, abriu caminho uma mais atenta, digamos mais zelosa, sensibilidade sobre a preeminência dos valores puramente espirituais, uma exigência de verdade, ordem e realismo em relação ao eficaz, funcional e lógico, contra o que é só simbólico, decorativo e exterior".

Morto o patriciado, parecia que a modernidade finalmente havia chegado ao Vaticano. E o papa tentava explicá-lo "motu proprio": "Nossa antiga e benemérita Corte - que agora será designada unicamente com seu original e nobre apelativo de Casa Pontifícia - continuará resplandecendo em seu prestígio autêntico, compreendendo eclesiásticos e laicos que, além de sua particular competência e autoridade, se distingam por seus destacados serviços no campo do apostolado, da cultura, da ciência, das diversas profissões, pelo bem das almas e a glória do nome do Senhor".

Saiba-se que os gentis-homens de Sua Santidade não recebem do Vaticano, mas às vezes trabalham dando pompa aos ritos. Vestem-se de preto rigoroso e levam o peitoril do fraque forrado de medalhas. Altivos, fugidios e misteriosos, fazem parte do clube mais exclusivo do mundo e têm a categoria mais alta a que um laico pode aspirar no Vaticano.

Hoje, o trabalho secreto dessa nova nobreza negra é muito estimado em São Pedro. Sua "competência e autoridade" e seus "destacados serviços" representam ações beneméritas para a Santa Sé. Em alguns casos, dir-se-ia que o requisito básico para entrar no clube é ajudar a engordar as arcas do Estado pontifício, o paraíso fiscal mais rico, melhor decorado e mais visitado do mundo.

Alguns gentis-homens são verdadeiros prodígios das finanças. Tomemos por exemplo Herbert Batliner. Nascido em 1928 em Liechtenstein, é considerado pela polícia alemã um dos maiores peritos em criar sociedades fiscalmente obscuras, um grande especialista em lavar dinheiro sujo. Batliner é um dos banqueiros que se movem na sombra das finanças vaticanas. O presidente da Fundação Peter Kaiser trabalha há décadas em silêncio pelo bem da Europa cristã. Pelo menos desde 1970. Foi nomeado gentil-homem por João Paulo 2º em 1998, e continua sendo.

No ano de 2000, segundo revelou uma recente reportagem de "La Repubblica", um empregado do escritório de Batliner entregou à promotoria de Bochum, Alemanha, um CD cheio de dados secretos. Nesse momento ele foi qualificado como o rei dos evasores fiscais em um relatório do serviço secreto alemão, que definiu o "sistema Batliner" como um mecanismo que durante anos havia subtraído ao fisco pelo menos 250 milhões de euros.

Polícia
Apesar do anterior, em 9 de setembro de 2006, Batliner se encontrou com o papa Joseph Ratzinger em Ratisbona. Batliner foi até lá para doar pessoalmente à Igreja local um órgão avaliado em 730 mil euros. Sobre ele pesava uma ordem de busca e captura da polícia alemã. Mas conseguiu entrar no país graças aos bons ofícios da diplomacia vaticana. E não foi detido. Apenas um ano depois, no verão de 2007, Batliner admitiu suas culpas e fez um pacto com o Estado alemão, aceitando pagar uma multa de 2 milhões de euros. Cinco anos antes, a Suprema Corte de Liechtenstein confirmou em uma sentença que Batliner já era em 1990 o fiduciário do equatoriano Hugo Reyes Torres, indicado como chefe mafioso da droga, que nesse ínterim foi condenado.

Enquanto Ratzinger emprega em suas homilias e encíclicas a ética da economia e clama contra os especuladores e "os sacerdotes que tentam fazer carreira para enriquecer", alguns membros desse clube de cavalheiros parecem entender o contrário.

Nem todos, é claro. No clube laico papal figuram 147 notáveis. Embora o título seja vitalício, o papa pode revogá-lo quando considerar oportuno. Batliner ainda não foi expulso. Mas Angelo Balducci, sim.

Balducci é um engenheiro que durante 25 anos se encarregou de executar as obras públicas na região do Lácio, onde se encontram Roma e o Vaticano. Dali passou ao governo central como responsável pelo Conselho Superior de Obras Públicas. Depois de uma vida dedicada a melhorar as infraestruturas italianas e vaticanas, Balducci, de 62 anos, vive hoje na prisão romana de Regina Coeli.

Desde fevereiro Balducci é o principal acusado no escândalo de corrupção da todo-poderosa Proteção Civil italiana, que por enquanto tem mais de 50 pessoas acusadas ou sob investigação. Desde 2001 até agora, o superministério que depende da Presidência do Governo (primeiro-ministro) gastou fundos públicos no valor de 13 bilhões de euros, segundo o último relatório da Autoridade para Vigilância dos Contratos Públicos.

O dinheiro era administrado pelo chefe da Proteção Civil, o secretário de Estado Guido Bertolaso, também acusado de corrupção, e pelo executor das obras, Balducci, graças a uma argúcia autorizada pelo primeiro-ministro Silvio Berlusconi, para superar a maldita burocracia e enfrentar as emergências com mais rapidez: a licitação de contratos públicos sem concurso, a dedo, abolindo-se os procedimentos comuns.

Esse tratamento especial criou um monstro de mil cabeças. A Proteção Civil de Berlusconi não se encarrega só de calamidades. Também organiza provas esportivas como o Mundial de Natação, cúpulas internacionais como a do G-8, restaurações de museus e teatros e todo tipo de atividades religiosas.

A investigação dos fiscais de Perugia vinculou desde o início a Igreja Católica com a trama corrupta. Descobriu, por exemplo, que o padre Evaldo Biasini, de 83 anos, gerente da Congregação dos Missionários do Preciosíssimo Sangue de Jesus, guardava grandes quantias de dinheiro para o construtor Diego Anemone, a quem os promotores acusam de ter recebido numerosos contratos da Proteção Civil em troca de comissões, presentes e favores de toda sorte, desde massagens em seu clube esportivo até reformas de apartamentos. Desde aquele dia, o ancião dom Evaldo passou a ser conhecido como "Dom Bancomat" (dom caixa automático).

Eventos
O "sistema gelatinoso", como o definiram os promotores em seu texto de acusação, "inclui nomes de grande espessura institucional" e se expande por diferentes vias religiosas. A lista de eventos católicos organizados pela Proteção Civil e pagos nestes anos pelo contribuinte italiano é longa, desde o Giro pela Itália do papa no Ano Paulino até as exéquias de João Paulo 2º ou as canonizações do Padre Pio e de São Josemaría Escrivá.

Balducci foi nomeado gentil-homem pelo papa Wojtyla em 1995. Quinze anos depois caiu em desgraça e o Vaticano foi obrigado a cancelar seu nome do anuário pontifício. Mas seu pecado, ironicamente, não foi roubar. Balducci só foi riscado da lista quando se tornou público que recorria com frequência a um tenor africano do coral suplente de São Pedro para que organizasse encontros com jovens seminaristas e sem-papéis. As escutas telefônicas interceptadas do corista e do gentil-homem eram deste estilo: "Tenho um bailarino da RAI", "Tenho um negro...".

Como Balducci, os cavaleiros papais se destacam por seus contatos, seu poder e seu patrimônio. No índice são abundantes os banqueiros, empresários, príncipes, políticos e diplomatas. A Itália encabeça de longe a lista, com 114 "gentiluomini". São seguidos por EUA, com sete, e Áustria e Espanha com cinco cada.

Poucos meses depois de chegar ao trono, em 2005, Bento 16 nomeou seus primeiros sete gentis-homens. Embora a doutrina e a teologia sejam os assuntos favoritos do papa alemão, também lhe preocupa a eficácia organizacional. Nessa primeira lista apareceu o personagem central das perigosas amizades Igreja-Estado. Trata-se do jornalista e político Gianni Letta, 75, secretário de Estado da Presidência do Governo e número 2 de fato do Executivo de Berlusconi em 1994, 2001 e 2008, mentor e protetor de Guido Bertolaso, herdeiro do estilo e da arte para a tubulação política de Giulio Andreotti.

Curiosamente, o poderoso Letta se transformou em gentil-homem muitos anos depois que o anônimo técnico Balducci. Ex-forense, ex-diretor de "Il Tempo" e ex-jornalista da Mediaset, vice-presidente da Fininvest Comunicações, supervisor dos serviços secretos e conselheiro externo do Goldman Sachs para investimentos na Itália, Letta talvez seja o único berlusconiano que adora negociar. Dá-se bem com todos, e comenta-se que é o único político italiano capaz de contentar a maçonaria e a Opus Dei. É o grande mediador, o homem que atende ao telefone quando há problemas.

Abuso de poder
E sua referência na cúria é Ratzinger. "Sob sua aparência de homem religioso, a fatura que Letta passa ao Vaticano é a mais discreta, mas também a mais cara", afirma o sacerdote e vaticanista Filippo di Giacomo. "O doutor Letta tem tanto poder que se permite nomear bispos a sua conveniência, como fez há alguns meses em L'Aquila ao promover seu amigo Giovanni d'Ercole.

"No plano familiar, Letta não está só. Seu sobrinho Enrico é um alto dirigente católico do Partido Democrata. Sua filha Marina é casada com o restaurador Ottaviani: é dele o monopólio do "catering" da Proteção Civil. Até agora o nome de Letta só apareceu de forma colateral nas 410 mil ligações telefônicas que os promotores têm depositadas em Perugia. Embora em novembro de 2008 tenha sido imputado por abuso de poder e estelionato em um assunto que parece diferente, mas não é tanto: supostamente, mediou a favor de uma cooperativa do movimento Comunhão e Libertação para a contratação de um centro de assistência para imigrantes.

Quando se revelou o caso da Proteção Civil, o papa dedicou a Letta um "pensamento especial" durante um discurso público. Coisa rara, que significa: é um amigo. Como se explica essa condescendência em um papa tão estrito? Segundo o filósofo Paolo Flores d'Arcais, o problema de Ratzinger é que está preso em um dilema existencial e histórico. "Estou convencido de que sua vontade de limpar a Igreja dos dois pecados capitais, sexo e dinheiro, é séria", diz o diretor da revista "Micromega". "Sua linha é a do Concílio de Trento: dogmatismo radical e ataque aos comportamentos imorais. Quer acabar com os padres pederastas e os prelados corruptos. Mas fazer isso supõe o impossível: sentar Wojtyla no banco dos réus. E isso não é tão fácil quanto pedir perdão pela condenação de Galileu. Representaria reconhecer que seu antecessor encobriu Marcinkus (presidente do banco vaticano IOR entre 1971 e 1989) e Marcial Maciel (dirigente dos Legionários de Cristo). Limpar de verdade o obrigaria a revelar porcaria a granel e a demitir meia cúria. Mas se não o fizer a Igreja continuará perdendo credibilidade. É esse seu dilema.

"Letta é o eixo da aliança de Berlusconi com o cardeal Camillo Ruini, ex-chefe da Conferência Episcopal italiana e criador do projeto cultural que ajudou a arrebatar da esquerda a hegemonia intelectual e informativa na Itália. Quando a Democracia Cristã desapareceu em 1993 sob o terremoto de Tangentópolis (o escândalo das comissões dos partidos), seus componentes se distribuíram entre Força Itália e a católica Margarita da centro-esquerda. Depois o católico Romano Prodi nomeou Guido Bertolaso chefe da Proteção Civil em 1996. E o católico Francesco Rutelli, ex-prefeito de Roma, pôs para trabalhar juntos Balducci e Bertolaso no Ano Santo do Jubileu.

Corrupção
Ali nasceu o sistema gelatinoso. O cardeal Crescenzio Sepe, que acaba de ser denunciado por corrupção, era o secretário-geral do comitê organizador do jubileu. O Ano Santo foi uma maionese de negócios, obras, subvenções, presentes, silêncios e favores que ligou altos funcionários públicos com a cúria da Opus Dei e os Legionários de Cristo.

Protegido de Wojtyla, Sepe, agora arcebispo de Nápoles, foi entre 2001 e 2006 o responsável pela Propaganda Fide, hoje chamada Congregação para a Evangelização dos Povos. É o ministério vaticano que se encarrega de financiar as missões e de administrar o patrimônio imobiliário do Vaticano. E seu principal assessor era Angelo Balducci.

A acusação afirma que o cardeal Sepe concedeu de graça um dos 2 mil apartamentos que a Propaganda Fide possui em Roma ao chefe da Proteção Civil, Guido Bertolaso. E que além disso vendeu em 2004 um luxuoso palacete romano a preço de banana (entre 3 e 4 milhões de euros, quando valia 9 ou 10 milhões) ao então ministro de Infraestruturas, Pietro Lunardi, também acusado formalmente por essa operação. A hipótese dos promotores é que em troca Lunardi financiou com dinheiro estatal da sociedade Arcus obras milionárias da Propaganda Fide que nunca foram realizadas.

O cardeal se defendeu acusando seus superiores: "A administração vaticana aprovou todas as operações", disse. E insiste em se considerar um mártir: "Trabalhei sempre com transparência e pelo bem da Igreja, uma Igreja sempre perseguida". Segundo Sepe, foi Francesco Silvano, outro de seus assessores na Propaganda Fide, membro da Comunhão e Libertação e atual economista do arcebispado de Nápoles, quem lhe recomendou emprestar e vender as propriedades.

A investigação revelou que os apartamentos são o principal objeto de intercâmbio de favores entre a Itália e o Vaticano. Chefes dos serviços secretos, da polícia fiscal, dos Carabineiros, magistrados, políticos, empresários e o próprio Bruno Vespa, o jornalista preferido de Berlusconi e de Wojtyla, vivem ou viveram em apartamentos da Propaganda Fide.

O cardeal Sepe foi afastado da Propaganda Fide por Bento 16, no que hoje parece uma tentativa de afastar a cúria italiana e a Comunhão e Libertação da gestão imobiliária. Depois de cinco anos de papado, é um segredo em voz alta que Ratzinger não confia em sua cúria, com exceção de um pequeno punhado de fiéis. Embora tenha substituído o núcleo duro de Wojtyla, o governo vaticano continua nas mãos de grupos como a Opus Dei - seus porta-vozes se empenham em negá-lo -, a citada Comunhão e Libertação e os Legionários de Cristo, embora hoje esteja prestes a desaparecer como movimento carismático para pagar pelos crimes de seu fundador.

Presença dos laicos
Os movimentos eclesiásticos ganharam peso no Vaticano desde o último concílio. Aparentemente solidários, lutam pelo controle dos melhores cargos e negócios, e na refrega esquecem o que for preciso do Evangelho e se dedicam a um ajuste de contas permanente, enquanto os fiéis atônitos assistem ao espetáculo.E os laicos eclesiásticos controlam amplos setores da política, da informação, da empresa, da caridade, da educação, da saúde e da magistratura. Em Roma exercem uma influência cada vez maior, em estreita e democrática conivência com a centro-direita ateia-devota, mas também com a lânguida oposição do Partido Democrático e a cúria dos bons e felizes tempos do papa viajante.

A fragilidade das ordens religiosas, castigadas pela escassez de vocações, favoreceu a sufocante presença dos laicos. "Em 1998, Ratzinger aumentou a integração laica durante um congresso organizado por Wojtyla", lembra Paolo Ciani, membro da Comunidade de São Egídio, um movimento eclesiástico que conta com 50 mil voluntários distribuídos pelo mundo e só 25 empregados. "Ratzinger releu a experiência das ordens religiosas e monásticas junto com a dos movimentos eclesiais e reconheceu a estes, com seu dinamismo e competência, um papel na Igreja. A mensagem foi que para sobreviver era preciso confiar no rebanho fiel.

"Hoje a Cúria Romana é uma máquina ingovernável e reumática que custa anualmente ao Vaticano 102,5 milhões de euros. A estrutura depende da Secretaria de Estado, uma espécie de conselho administrativo com um presidente (o secretário de Estado) e um diretor-geral (o substituto), as duas únicas pessoas que têm acesso direto ao gabinete do papa. No Vaticano trabalham 2.748 pessoas. Delas, 778 são eclesiásticos, contra 333 religiosos e 1.637 laicos (destes, 425 são mulheres).

Os laicos tomaram o poder cooptando bispos e cardeais menos cristãos do que se supõe. "A nulidade da cúria se deve a sua falta de informação e a seu excesso de italianidade", explica o sacerdote e canonista Filippo di Giacomo. "Das dioceses chega o pessoal com conta-gotas porque os bispos demoram para enviar seus melhores homens. As ordens, antes canteiro privilegiado de inteligência e talento, têm cada vez menos matéria cinzenta a que recorrer. Os bons chegam a bispos, e à cúria só chega o pior de cada família."

Assim nasceu um sistema de poder misto que confunde o laico e o religioso, a Igreja e o Estado, a Itália e o Vaticano, a cúria com a elite civil. O sistema se baseia em um enorme poder econômico, sensação de impunidade, gosto pela "omertà" e o encobrimento e a capacidade de infiltração.

A ambição desse sistema é conseguir a fusão fria entre Itália e Vaticano. Em seus esquemas mentais, essa nova cúria negociante e carnal não visualiza dois Estados, mas um único país que poderia se chamar, abreviando, Vaticália. "Impossível confiar em canalhas que usam Deus para satisfazer sua atrofiada vaidade!", diz o padre genovês Paolo Farinella.

A grande caixa-forte laica do momento se chama Comunhão e Libertação (CL). Nascida em 1954 e assim denominada desde 1969, está presente em 70 países; na Itália controla empresas, meios de informação, dioceses, colégios, universidades, hospitais privados e públicos e inclusive uma holding de cooperativas sociais, a Auxilium, que administra vários centros de identificação e expulsão de imigrantes para o Ministério do Interior."Há 20 anos a Auxilium é o braço clerical da ultra-direita milanesa", explica Di Giacomo. "Sua estratégia é cultural e política. Seus padres povoam os seminários lombardos; seus prelados se mobilizam onde for preciso." Afirma também que seus chefes ideológicos ditam a lei em diferentes jornais e que sua presença é constante em televisões e rádios: "Mandam a torto e a direito".

Roberto Formigoni é há 15 anos presidente da Lombardia, a região italiana com renda mais alta da Europa, junto com a de Paris-Ile de France. Pertence de pleno direito, e não o oculta, à Comunhão e Libertação. Isso poderia lhe permitir inclusive aspirar a suceder Berlusconi. Nos últimos meses, o governador distribuiu entre os homens da CL, os postos fundamentais da organização da Expo Milão 2015. Um paraíso de contratos públicos, privados e mistos no qual a magistratura já detectou a penetração das máfias.

Quase diariamente vêm à luz novas amizades perigosas. Há poucas semanas os juízes enviaram uma comissão rogatória ao Vaticano porque suspeitam que o tesouro oculto do bando gelatinoso pode estar depositado no IOR - Instituto para Obras Religiosas. E esta semana reclamaram por via oficial os documentos da Propaganda Fide, a imobiliária da Santa Sé.

Embora o trabalho dos promotores seja exaustivo, em Vaticália se sabe que não será fácil para eles apurarem a verdade. O Vaticano continua sendo um paraíso fiscal, o "concordato" lhe concede amplas cotas de imunidade e as contas secretas que prosperam à sombra do IOR, da APSA - a Administração do Patrimônio da Sé Apostólica, a antiga Propaganda Fide e um longo número de empresas participantes são o segredo mais bem guardado.

Apesar dos apelos à limpeza de Ratzinger, as coisas não parecem ter mudado muito. Aqui os mistérios se resolvem com tempo. Com muito tempo. Balducci é por enquanto o grande bode-expiatório. Durante 15 anos ninguém viu nada nem suspeitou de nada: era um gentil-homem e os sinos tocavam a "omertà". Hoje se fala dele, mas logo tudo voltará a seu ser e a gelatina continuará se ampliando. Hoje, em junho de 2010, os italianos ainda não têm uma lei de casais de fato; os imigrantes sem papéis são considerados criminosos e não se respeita o direito de asilo; os homossexuais são agredidos diariamente nas ruas e as mulheres que querem se submeter a inseminação artificial devem emigrar.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

DC muda o uniforme da Mulher Maravilha

Jim Lee é quem traz a novidade
Por Edu Almeida - 30/06/2010 02:08

Na segunda-feira publicamos uma nota sobre a edição 600 da revista da Mulher Maravilha nos EUA. Pois bem, ali a gente contou que a DC iria revelar algumas novidades e a bomba já surgiu. A moça tem um novíssimo uniforme e a surpresa estreia nesta edição comemorativa.
O novo visual foi desenvolvido por Jim Lee, um dos maiores desenhistas da atualidade e também um dos chefões da DC. Ele mexeu no modelito que está aí nos quadrinhos há 69 anos. É a primeira vez que a roupa da heroína sofre uma mudança tão drástica. Mas algumas coisas se mantiveram, como as cores tradicionais – vermelho, azul e amarelo. De resto, a coisa toda está bem diferente. Sobre os ombros antes nus, agora entra uma jaquetinha azul. Os braceletes também mudaram o formato e agora têm uma espécie de luva por baixo que deixa aparecer os dedos. A heroína também passa a usar uma calça colante azul. A tiara e o laço continuam lá e também há uma gargantinha nova.
A gente sabe que a Mulher Maravilha é uma personagem problemática e que não está na lista das prediletas dos novos leitores. A mudança sinaliza a tentativa da DC em dar mais força para a heroína, um dos grandes ícones da editora. Além disso, esse visual é bem mais verossímil para ser usado num possível filme. Afinal, é meio complicado mesmo usar aquela roupinha minúscula, né? Embora a ala masculina do CAPACITOR prefira o "roupitcha" antiga, claro.
Para a Mulher Maravilha esta é uma mudança e tanto e acontece por conta de seu novo roteirista, o bom J. M. Straczynski – que acaba de assumir o título – e a roupa nova vem justamente para se ajustar a essa nova fase que é mais urbana e menos ligada às divindades. Segundo o que o roteirista explicou ao site Newsarama, “os deuses, por razões próprias mudaram a linha do tempo. Nesta nova linha, os deuses, vários anos atrás, removeram a proteção da Ilha Paraíso (lar das amazonas) e a deixaram vulnerável a ataques. E ela foi mesmo atacada. Surge um exército liderado por uma figura sombria que destrói tudo e faz com que Hipólita (mãe de Mulher Maravilha) tenha de entregar sua filha de três anos de idade para uma guardiã”. Quase todas as amazonas são mortas. Assim, a jovem Diana (nome da heroína) é levada embora e cresce na cidade, se transformando numa mulher urbana, mas com ligações com seu passado. A história se passa vinte anos após o ataque à ilha.
Com tudo isso, Straczynski dá uma nova origem para a heroína e fará com que ela fique mais rápida, elegante, esperta. É a Mulher Maravilha do século 21.
A edição 600 de Wonder Woman sai nesta quarta, dia 30, nos EUA.

Adam Dean - Vale de Arghandab

A paisagem do Vale de Arghandab, no Afeganistão, acompanha o rio com o mesmo nome que leva à cidade de Kandahar. Atualmente, a região é disputada entre o exército americano e os talibãs, sendo patrulhada pelos soldados sempre a pé para evitar as inúmeras minas terrestres que já mataram centenas de militares. A nova tática, porém, aproximou os soldados da população, que recebe a presença militar com curiosidade. Foto de Adam Dean.

terça-feira, junho 29, 2010

A hora e a vez do ensino médio

Há problemas de cobertura, modalidade de currículo
e forma de atendimento, com graves reflexos
no fluxo e no desempenho dos alunos


A sociedade brasileira parece ainda não ter-se dado conta da verdadeira crise de audiência que vem afetando nosso ensino médio, com previsíveis consequências para o desenvolvimento sustentável do país. Trata-se de uma verdadeira bomba-relógio.

Para entendermos a gravidade da situação, o primeiro fato a encarar é o de que vivemos em uma sociedade do conhecimento, que exige, como passaporte mínimo para que os jovens sejam inseridos no mercado de trabalho, o diploma do ensino médio.

Também para os países, a vantagem competitiva passa a ser esse nível de escolaridade de sua população. Entretanto, a média brasileira de anos de estudo ainda é de sete anos e apenas 16% da população economicamente ativa concluiu o ensino médio.

Sem dúvida, isso é fruto de um processo histórico, mas, se os dados atuais fossem animadores, poderíamos prever boas perspectivas para o futuro. Infelizmente, é justamente aí que se processa a montagem da bomba-relógio.

O ensino médio no Brasil sofre de males seríssimos. Há problemas de cobertura, modalidade de currículo e forma de atendimento, com graves reflexos no fluxo e no desempenho dos alunos. Em termos de cobertura, menos da metade daqueles que deveriam estar nesse nível pode ser aí encontrada.

Parte ainda está no fundamental e quase 20% estão fora da escola. O mais grave é que, na faixa de 18 a 24 anos, 68% estão nessa situação.

Quanto ao currículo, observa-se que menos de 10% dos alunos cursam o ensino profissionalizante. Ou seja, mais de 90% dos jovens estão sendo "preparados" para uma universidade na qual a maioria não pisará.

O dado mais incompreensível é o turno em que o ensino médio regular é ofertado. Mais de 40% dos alunos estudam à noite, inclusive nos Estados mais ricos, quando apenas 17% conjugam escola com trabalho. A soma desses fatores está por trás de uma verdadeira sangria, responsável pela perda de metade de nossos alunos (entram 3,6 milhões e concluem 1,8 milhão).

Estamos perdendo esses jovens para o desemprego, para a reprodução da pobreza (22% dos mais pobres já têm filhos) e para a violência. Dos que concluem, apenas 9% (em matemática) e 24% (em português) apresentam um desempenho considerado adequado.
Em face dessa situação, cabe a pergunta: quem é o responsável pela oferta do ensino médio? De fato, 86% das matrículas estão nos sistemas estaduais, cujos governantes serão eleitos neste ano.

O voto de cada um de nós deveria estar condicionado a propostas dos candidatos sobre como pretendem enfrentar tais problemas.

Seria necessário um compromisso com metas claramente definidas, tais como universalizar o acesso e a permanência dos jovens entre 15 e 17 anos, melhorar o desempenho e diminuir o abandono, aumentar a autonomia das escolas, promover maior estabilidade das equipes de direção e flexibilizar os currículos, mas definindo mínimos para cada série.

Outras metas possíveis são aumentar o ensino profissionalizante, criar formas de articulação entre educação e trabalho, concentrar o ensino médio regular nos turnos diurno e vespertino, reservando o noturno apenas para a EJA (Educação de Jovens e Adultos, a partir de 18 anos), e criar sistemas de incentivos baseados em resultados.
Além disso, os candidatos poderiam definir as metas de usar os resultados de avaliações como instrumento pedagógico e de contribuir para mudanças na formação de professores.

Os candidatos poderiam assumir essas ou outras propostas, mas deveriam explicitar seu forte compromisso com a melhoria do ensino médio, sem o que não mereceriam nosso voto.

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WANDA ENGEL ADUAN, 65, doutora em educação pela PUC-RJ, é superintendente-executiva do Instituto Unibanco

segunda-feira, junho 28, 2010

A América Latina de Oliver Stone

THE NEW YORK TIMES

Larry Rohter

Nos filmes sobre John F. Kennedy, Richard M. Nixon e George W. Bush, Oliver Stone deu asas à sua imaginação e foi frequentemente criticado por fazer isso. Agora, em “South of the Border”, que estreou na sexta-feira, ele se voltou para Hugo Chávez, o controverso presidente populista da Venezuela, e seus aliados reformistas da América do Sul.

“Pessoa que são com frequência demonizadas, como Nixon, Bush, Chávez e Castro, me fascinam”, disse Stone numa entrevista esta semana durante uma turnê para promover o filme, que retrata Chávez como um líder benevolente, generoso e corajoso que foi injustamente difamado. “É uma coisa recorrente”, ele acrescentou, que pode sugerir “um apego psicológico aos perdedores” de sua parte.

Diferentemente de seus filmes sobre presidentes norte-americanos, “South of the Border” de 78 minutos tem a intenção de ser um documentário e portanto tem um outro padrão. Mas está contaminado pelos mesmos problemas de acuidade que os críticos levantaram sobre seus filmes, desde “JFK”. Considerados em conjunto, os erros, declarações equivocadas e detalhes omissos podem minar o retrato de Chávez feito por Stone.

Os problemas de Stone com o filme começaram cedo, com seu relato sobre a ascensão de Chávez. Segundo “South of the Border”, o principal oponente de Chávez em sua campanha inicial à presidência em 1998 era “uma ex-miss Universo loira de 1,84 metro chamada Irene Saez, e portanto “a disputa ficou conhecida como a eleição entre a Bela e a Fera”.

Mas o principal oponente de Chávez não era Saez, que ficou em terceiro lugar com menos de 3% dos votos. Era Henrique Salas Romer, um inexpressivo ex-governador estadual que ficou com 40% dos votos.

Quando esta e várias outras discrepâncias foram apontadas para Stone na entrevista, suas atitudes variaram. “Sinto muito por isso, e peço desculpas”, disse ele sobre a eleição de 1998. mas ele também reclamou que estavam “pegando no pé” e “procurando cabelo em ovo” e disse que não era sua intenção fazer um programa para C-Span nem empreender o que ele chamou de interrogatório “cruel e brutal” sobre Chavez ao estilo de Mike Wallace sobre Chávez que a BBC transmite este mês.

“Estamos lidando com o quadro mais amplo, e não paramos para entrar numa série de críticas e detalhes de cada país”, diz ele. “É uma introdução a uma situação na América do Sul que a maioria dos norte-americanos e europeus não conhece”, acrescentou, por causa de “anos e anos de jornalismo negligente.”

“Acho que tem havido tanto desequilíbrio que somos definitivamente uma resposta a isso”, disse.

Tariq Ali, historiador e comentarista britânico-paquistanês que ajudou a escrever o roteiro, acrescentou: “Não é nenhum segredo que nós apoiamos o outro lado. É um documentário opinativo.”

As críticas iniciais de “South of the Border” foram mornas. Stephen Holde do The New York Times chamou-o de “uma exaltação provocativa, embora superficial, do socialismo na América Latina”, enquanto a Entertainment Weekly o descreveu como “propaganda política ingênua”.

Algumas informações equivocadas que Stone, que costuma pronunciar o nome de Chávez errado como Chavês, insere em “South of the Border” são relativamente benignas. Um voo de Caracas a La Paz, Bolívia, passa principalmente sobre a Amazônia, e não sobre os Andes, e os Estados Unidos não “importam mais petróleo da Venezuela do que de qualquer outra nação da OPEC”, uma posição que pertenceu à Arábia Saudita durante o período de 2004 a 2010.

Mas outras afirmações questionáveis se referem a temas fundamentais, incluindo o argumento de Stone de que os direitos humanos, que são uma preocupação na América Latina desde a era de Jimmy Carter, é “a expressão da moda”, usada principalmente para criticar Chávez. Stone argumenta no filme que a Colômbia, que “tem um problema de direitos humanos bem pior do que a Venezuela”, recebe “um passe livre na mídia que Chávez não tem” por causa de sua hostilidade em relação dos Estados Unidos.

Quando Stone começa a falar, aparece na tela o logotipo da Human Rights Watch, que monitora de perto a situação tanto na Colômbia quando na Venezuela e divulgou relatórios sobre os dois países. Isso aparentemente indicaria que a organização faz parte do “dupla medida” da qual Stone reclama.

“É verdade que muitas dos críticos mais duros contra Chávez em Washington fecharam os olhos para os terríveis problemas de direitos humanos na Colômbia”, disse Jose Miguel Vivanco, diretor da divisão do grupo para as Américas. “Mas não há motivo para ignorar os sérios prejuízos que Chávez acarretou aos direitos humanos e à democracia na Venezuela”, que incluem expulsar Vivanco e um associado sumariamente, violando a lei venezuelana, depois que a Human Rights Watch divulgou um relatório crítico em 2008.

Uma atitude similar e tendenciosa pode ser percebida no tratamento que Stone dá ao golpe de abril de 2002 que derrubou Chávez brevemente. Um dos eventos cruciais daquela crise, talvez o que a tenha instigado, foi o “Massacre da Ponte Llaguno”, no qual 19 pessoas foram mortas a tiros em circunstâncias que permanecem obscuras, com os partidários de Chávez culpando a oposição e vice-versa.

O filme de Stone inclui novas cenas do confronto na ponte, mas seu argumento básico adere ao que foi mostrado em “A Revolução Não Será Televisionada”, um filme que o campo de Chávez endossou. O documentário, entretanto, foi refutado por um outro, chamado “Raio-X de uma Mentira”, e pelo livro de Brian ª Nelson “O Silêncio e o Escorpião: O Golpe Contra Chávez e a Formação da Venezuela Moderna” (Nation Books), nenhum deles mencionado por Stone.

Em vez disso Stone se baseia muito no relato de Gregory Wilpert, que testemunhou parte das trocas de tiros e é descrito como um acadêmico norte-americano. Mas Wilpert também é marido da cônsul-geral de Chávez em Nova York, Carol Delgado, e há tempos editor e presidente do quadro do Venezuelanalysis.com, um site montado com doações do governo venezuelano, ligações que Stone não revela.

Como a visão de Stone sobre o assassinato de Kennedy, esta parte de “South of the Border” gira em torno da identidade de um atirador ou atiradores que podem ou não ter feito parte de uma conspiração maior. Como Stone coloca no filme: “os tiros foram disparados dos telhados dos prédios, e membros de ambos os lados foram baleados na cabeça.”

Numa entrevista por telefone esta semana, Wilpert reconheceu que os primeiros tiros foram disparados de um prédio conhecido como La Nacional, que abrigava os escritórios administrativos de Freddy Bernal, o prefeito do centro de Caracas, pró-Chávez. Numa investigação do Congresso depois do golpe, Berna, que liderava um esquadrão de elite da polícia antes de assumir o poder, foi questionado sobre o testemunho de um funcionário militar de que o Ministro da Defesa havia ordenado a Bernal que atirasse nos manifestantes da oposição. Bernal descreveu a acusação como “totalmente falsa”.

“Não sei nada sobre isso, eu nem sabia que era um prédio chavista”, disse Stone inicialmente, antes de recuar à sua posição original. “Mostre-me as cenas de Zapruder, e pode ser diferente”, diz ele.

A segunda metade de “South of the Border” é um “road movie” no qual Stone, às vezes acompanhado de Chávez, encontra-se com líderes da Bolívia, Argentina, Paraguai, Brasil, Equador e Cuba. Mas aqui também ele distorce os fatos e omite informações que podem minar sua tese de uma “revolução bolivariana” em todo o continente, encabeçada por Chávez.

Na visita à Argentina, por exemplo, ele descreve acuradamente o colapso econômico de 2001. Mas logo pula para a eleição de Nestor Kirchner à presidência em maio de 2003 e deixa Kirchner e sua sucessora – e mulher – Cristina Fernandez de Kirchner alegarem que “começamos uma política diferente da anterior”.

Na realidade, o presidente anterior a Kirchner, Eduardo Duhalde, e o ministro das finanças de Duhalde, Roberto Lavagna, foram os arquitetos dessa mudança de política e da recuperação econômica subsequente, que começou enquanto Kirchner ainda era um governador desconhecido de uma pequena província na Patagônia. Kirchner foi originalmente um protegido de Duhalde, mas os dois homens agora são inimigos políticos, o que explica o desejo dos Kirchners de apagá-lo de sua versão da história.

Tentando explicar a ascenção de Evo Morales, o presidente da Bolívia que é aliado de Chávez, Ali se refere à controversa e descuidada privatização da água na cidade de Cochabamba.

“O governo decidiu vender o suprimento de água de Cochabamba para a Bechtel, uma corporção norte-americana”, diz ele, “e uma das coisas que essa corporação fez foi obrigar o governo aprovar uma lei dizendo que de agora em diante era ilegal que os pobres saíssem nos telhados para coletar água da chuva em recipientes.”

Na verdade, o governo não vendeu o suprimento de água: ele concedeu a um consórcio que incluia a Becthel o gerencialmente da concessão durante 40 anos em troca de injeções de capital para expandir e melhorar o abastecimento de água e a construção de uma represa para gerar eletricidade e irrigação. A questão da coleta de água pelos pobres tampouco é como Ali apresenta.

“A permissão sobre a água da chuva sempre vem à tona”, diz Jim Shultz, um crítico da privatização da água e coeditor de “Dignidade e Desafio: Histórias do Desafio da Bolívia para a Globalização” (University of California Press), disse numa mensagem de e-mail. “O que eu posso dizer é que a privatização do sistema público de água foi acompanhada por um plano do governo que exigia permissões para poder cavar poços e coisas do tipo, e que ele poderia ter fornecido as concessões à Bechtel ou outras empresas.”

Mas ele “nunca chegou a tanto”, acrescentou, e “ainda não está claro para mim até agora que tipo de sistemas de coleta de água seriam incluídos”. Ele concluiu: “Muitos acreditaram que ele incluiria alguns sistemas de coleta de água da chuva. Isso poderia facilmente causar polêmica.”

Questionado sobre a discrepância, Ali respondeu que “nós podemos falar sobre isso infinitamente”, mas, “o objetivo de nosso filme é muito claro e básico”. Em “South of the Border”, ele acrescentou: “Nós não estávamos escrevendo um livro ou fazendo um debate acadêmico. Era para ter uma visão simpática desses governantes.”

Tradução: Eloise De Vylder

domingo, junho 27, 2010

A harmonia (da Copa) do mundo

Espero que na Copa em 2050 o Brasil continue
sendo líder no futebol e seja o novo líder na ciência


Agora que o Brasil se classificou para a segunda rodada da Copa (como escrevo antes do jogo com Portugal, não sei se em primeiro ou em segundo grupo), está na hora de darmos uma relaxada e refletirmos um pouco sobre futebol e esportes em geral.
Os gregos foram os primeiros a sacar que esportes unificam populações. Se a poesia épica de Homero não funcionava por si só para unificar as cidades-estado num império homogêneo, use os esportes como complemento. Assim nasceram as Olimpíadas, em torno de 776 a.C.

Atletas das diversas cidades-estado e reinos espalhados pela costa do Mediterrâneo competiam entre si a cada quatro anos. Durante os jogos, guerras entre as cidades-estado eram suspensas. Já então, os esportes eram um excelente modo de sublimar o apetite pela guerra.

Esportes são guerras controladas. Um mundo sem esportes seria bem mais caótico. Adoro esportes em geral e futebol mais ainda. Nos meus tempos, fui um jogador bem razoável, se bem que de...vôlei. Cheguei até a ser campeão brasileiro, junto ao Bernardinho.

Mas, vendo os jogos, e, mais importante, a torcida, como não pensar em guerras tribais? Especialmente com as caras pintadas, os uniformes, as bandeiras, a testosterona elevada, as brigas entre torcedores e entre jogadores, as indignações que a pobre mãe do juiz sofre...

Interessante que o mesmo ocorre em jogos contra times locais. Não é só país contra país. É num Fla-Flu, Corínthians e São Paulo, Barcelona e Real Madri, Everton e Manchester United...as guerras são tão intensas quanto nos jogos internacionais. Esportes representam nossas várias alianças tribais: clube, Estado, país. Durante a Copa, torcedores de clubes diferentes se esquecem das disputas e vestem com orgulho a camisa do seu país.

Durante um mês o país é o foco principal, do mesmo modo que entre os gregos: as cidades-estado são os países e o império é o mundo.

O poder da Copa como unificador global é realmente impressionante. O mundo inteiro grudado nas TVs, nos rádios e, desta vez, graças à frota de satélites de telecomunicação, nos telefones celulares também. A tecnologia leva a Copa aos quatro cantos do planeta.

Nenhum outro evento mundial tem o poder de focar tanta gente de culturas, religiões e realidades sociais completamente diferentes.

Lembro a primeira Copa a que assisti, a de 1966, numa TV PB a válvulas, que demorava 30 segundos para "esquentar". O homem não havia ainda pousado na Lua, os Beatles ainda tinham cabelos curtos, o modelo do Big Bang acabava de ser confirmado, se bem que eu, com sete anos, não sabia de nada disso.

O mundo mudou muito. A população mundial mais do que dobrou. A Guerra Fria acabou. A economia global é uma coisa só, a falência de um país afeta o mundo inteiro.

Controlamos o buraco de ozônio, mas temos muito a fazer para controlar as emissões de CO2. Talvez estejamos vendo o início de uma mudança de atitude global, uma nova relação de sustentabilidade com o planeta.

Espero que na Copa de 2050, quando estaremos assistindo à final em hologramas tridimensionais em casa, o Brasil continue sendo o líder do futebol e seja o novo líder da ciência, e que tenhamos aprendido a viver em sintonia com a Terra.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"

Dilma e Serra são parceiros de um fracasso

Desde 1998, o governo não consegue receber
das operadoras privadas de saúde o ressarcimento do SUS


ELIO GASPARI

O CERIMONIAL DAS campanhas eleitorais determina que a oposição prometa rios de mel, os governistas digam que eles já existem e ambos joguem os problemas sobre as costas dos outros.

Dilma Rousseff e José Serra formam uma dupla rara. Compartilham em silêncio pelo menos um desastre e poderiam explicar à patuleia o que pretendem fazer para consertá-lo. Trata-se de discutir a ruína do ressarcimento ao SUS dos custos que caem sobre a rede pública de saúde pelo atendimento dos clientes dos planos privados.

Essa questão está aí desde 1995, no início da gestão tucana, e é lei desde 1998.
O fracasso prosseguiu durante os oito anos petistas. Segundo o Tribunal de Contas, entre 2003 e 2007 a Viúva deixou de coletar pelo menos R$ 2,6 bilhões das operadoras de planos de saúde cujos clientes são atendidos na rede pública. A conta pode ter chegado a R$ 5 bilhões.

O governo entendeu que, se um cidadão paga um plano privado, a operadora ganha dinheiro bancando custos de sua saúde.

Caso um cliente do melhor plano do país sofra um grave traumatismo craniano num acidente de automóvel, deve ser levado para a emergência de um pronto-socorro público. (Se for para o melhor hospital privado da cidade, arrisca morrer antes da chegada da equipe de neurocirurgia, pois só há esse plantão em alguns pontos na rede do SUS.)

A vida desse paciente será decidida nas primeiras 24 horas, a um custo de pelo menos R$ 20 mil. Noutro exemplo, um cidadão precisa fazer hemodiálise, vai para a rede pública e, novamente, nada de reembolso.

As operadoras surram a Viúva há 12 anos. Marcando em cima no Congresso, na nobiliarquia médica e na Agência Nacional de Saúde Complementar, desossaram todas as iniciativas dos governos. Quatro mil cobranças estão travadas na Justiça.

Teatralmente, o ministro José Gomes Temporão enganou quem lhe dava crédito, inaugurando um novo sistema de cobrança que simplesmente não existia.

A ANSS tem agora cerca de 200 funcionários trabalhando na cobrança do ressarcimento. Estimando-se em R$ 4.000 o salário de cada um, custarão R$ 10 milhões anuais. Em 2008, no auge da ruína, a agência coletou R$ 2,6 milhões.

Dilma e Serra podem responder: noves fora platitudes, o que tenho a propor? Recomeçar do zero, mobilizando a opinião pública, como fez o companheiro Obama, pode ser uma boa ideia.

RECORDAR É VIVER

O poderoso banco de investimentos Goldman Sachs está lutando bravamente para entrar na engenharia financeira da capitalização da Petrobras. Dos grandes, é o único que está fora do negócio.

Deveria ser chamado a participar, desde que seu principal executivo, o doutor Lloyd Blankfein, peça desculpas públicas por uma molecagem e por um mau conselho que seu banco deu aos brasileiros.

A molecagem: No início da campanha presidencial de 2002, quando o dólar começou a subir, o Goldman Sachs criou o Lulômetro. Era uma elegante equação onde cada interessado podia prever o preço do dólar depois da eleição, mudando as variáveis de acordo com suas expectativas políticas. Num resultado otimista, a vitória de Lula levaria a moeda americana de R$ 2,70 para R$ 3,04. Caso José Serra fosse eleito, ela cairia para R$ 2,52. Terrorismo eleitoral, do bom.

O mau conselho: Em janeiro de 1999, quando o governo de Fernando Henrique Cardoso estava afogado numa crise cambial, o Goldman Sachs recomendou uma "medida de grande impacto", a privatização da Petrobras, da Caixa Econômica e do Banco do Brasil. Paulo Leme, diretor de mercados emergentes do banco, acreditava que o bota-fora aumentaria a credibilidade do país, e a Petrobras renderia até US$ 60 bilhões. O valor de mercado da empresa estava em US$ 15,4 bilhões. Hoje está em US$ 165 bilhões. Leme era um queridinho da ekipekonômica tucana, que desejava colocá-lo numa diretoria do Banco Central. Foi abatido em voo pelo então ministro José Serra.

CONVERSÃO DO CRENTE

O resultado da pesquisa CNI/ Ibope levanta a suspeita de que o tucanato esteja com a febre dos candidatos mordidos pelo mosquito que os leva a fazer campanhas com o objetivo de converter os convertidos. Essa prática ajudou a derrotar Lula em três eleições presidenciais.

Pregando para os convertidos, José Serra consegue que seus eleitores multipliquem a raiva que têm de Nosso Guia. O problema é que uma pessoa com cinco vezes mais raiva do PT continua valendo um só voto.

RETRANCA


O comissariado de Dilma Rousseff decidiu radicalizar a blindagem da candidata. E só deve se expor a diálogos, entrevistas ou sabatinas de risco zero. Se puder, ficará no "Bom dia, boa tarde".

OFF DEMAIS

A novela da indisciplina militar americana no Afeganistão está longe de terminar. O general Stanley McChrystal ficou no papel de paspalho por conta de seu exibicionismo pueril e cinematográfico, mas seu papel era secundário.

Desde que entrou na Casa Branca o companheiro Obama percebeu que os generais tentavam emparedá-lo, impondo-lhe a expansão da guerra. Nesse jogo, McChrystal sempre foi um peão de seu colega David Petraeus, muito mais esperto, ambicioso e hábil na manipulação de políticos e jornalistas. Petraeus foi para o lugar de McChrystal.

Quando se vê que McChrystal e seus Rambos foram apanhados dizendo bobagens para um jovem free-lancer que conheceram em Paris, percebe-se que os craques da grande imprensa que trabalham em Washington e Kabul estão ouvindo demais e publicando de menos.

O EMBAIXADOR INGLÊS CONTOU TUDO

Há um bom livro na praça. É "Diplomacia Suja", de Craig Murray, embaixador da Inglaterra no Uzbequistão de 2002 a 2004, quando foi posto para fora do serviço diplomático. Seu subtítulo diz tudo: "As conturbadas aventuras de um embaixador beberrão, mulherengo e caçador de ditadores, sem um pingo de arrependimento".
São três as qualidades do livro. Primeiro, dá uma ideia do que é a vida nas tiranias da Ásia Central pós-soviética. Islam Karimov, o cleptocrata uzbeque, ferve opositores.

Depois, Murray expõe a hipocrisia das chamadas "potências" ao lidar com essas ditaduras. Para os Estados Unidos, Karimov é um santo porque abriga uma base militar e torra as riquezas minerais do país.

Quando o ex-embaixador narra a maquinação que fraudou um relatório do FMI, entende-se o que foi a festa da globalização do século passado. Finalmente, o livro retrata o mundo mesquinho e covarde de uma burocracia diplomática. Nesse sentido, é uma leitura útil para quem vive ou pretende viver nesse meio. Para quem fantasia um serviço diplomático chique e inteligente, é um instrutivo choque de realidade.
Murray soa vulgar e machista, mas fica um registro: ele e Nadira, a stripper que conheceu em Tashkent, vivem juntos e felizes em Londres.

sábado, junho 26, 2010

Cultura pernambucana desaparece sob as águas do rio Una

Daniella Jinkings
Da Agência Brasil
Em Palmares


Mais de dois séculos da história e da cultura pernambucanas se perderam em meio à cheia do rio Una, provocada pela forte chuva do fim de semana passado. A enchente devastou o município de Palmares, conhecido como a Terra dos Poetas e dono do primeiro teatro do interior do estado. A força da água destruiu a prefeitura, casas, um cinema e pontes, além de danificar a estrutura de um templo centenário. Só restaram a dor, o desespero e a sensação de desamparo entre os 56 mil habitantes da cidade - terceira mais antiga do estado e distante 105 quilômetros da capital Recife.

Foi a maior enchente da história de Palmares, segundo os moradores. “Essa enchente não vai mais ser esquecida pelos palmarenses. Até parecia um terremoto”, disse o radialista José Alberto Passos da Silva. Ele perdeu a casa localizada a 200 metros da beira do rio, o carro e documentos. “Fique só com a roupa do corpo”.

Passos e mais sete pessoas da família estão abrigados na casa de um parente, na parte alta da cidade. “Não deu tempo de tirar nada, a água veio como tromba d'água. Nós esperávamos que o rio subisse de maneira mais lenta, quando anoiteceu aumentou a velocidade”, relatou esse pernambucano de fala rápida e grave, estatura baixa e de cabelos escuros. “Diante de tudo isso, fico alegre porque ainda estamos vivos”.

O radialista também descreveu o cenário desolador do centro da cidade. “Em frente à prefeitura, abriu uma cratera de mais de dez metros de profundidade. Lá está uma carreta que foi arrastada do outro lado do rio pela força da água”. Segundo ele, o templo de uma igreja presbiteriana de mais de 100 anos também ficou com a estrutura comprometida.

Teresa Cristina Aragão é dona de uma farmácia que ficou completamente destruída. A água chegou ao teto e estragou todos os medicamentos. Segundo ela, ninguém da família morreu, mas os filhos, que moram em Recife e Maceió, ficaram em “pânico” quando acompanharam pela internet a notícia das inundações na noite de sexta-feira (19).

“Nossos celulares não funcionavam e a falta de energia nos deixou sem internet. Pela manhã, as coisas se acalmaram quando conseguimos dar notícias e soubemos que estavam todos bem. Não sei o que será desse povo, do comércio e de toda uma população que foi tragicamente atingida pelas águas que inundaram nossos lares. Quanto às ruas, continuam podres e enlameadas, sem água nas torneiras”, afirmou.

De acordo com Teresa Cristina, a cidade, que sobrevive do plantio de cana de açúcar, não recebia atenção dos governantes há muito tempo. “Já estávamos a ver navios antes das enchentes. Sem indústrias, sem fábricas, sem uma voz forte que clamasse por melhorias na Terra dos Poetas. As usinas da região davam o sustento aos trabalhadores da Zona da Mata de Pernambuco”.

Mesmo sofrendo como os outros palmarenses que perderam casas e objetos pessoais, a comerciante começou uma campanha para arrecadar doações para os conterrâneos em sua página pessoal na internet. Neste sábado (26), ela recebeu roupas e alimentos arrecadados por familiares e amigos de Recife. “As pessoas estão sobrevivendo de donativos que chegam sem parar. Eu estou engajada nessa solidariedade e fiz da casa em que estou alojada um campo de S.O.S., pedindo doações e ajudando a matar a fome dos desesperados”.

O município recebeu o nome de Palmares em homenagem ao Quilombo dos Palmares, localizado em Alagoas. A cidade começou a se desenvolver a partir de 1862, com a chegada dos trilhos da estrada de ferro no Sul de Pernambuco. Em 1879, deixou de ser comarca e passou a município.

Palmares ganhou o nome de Terra dos Poetas porque lá nasceram grandes nomes da literatura brasileira, como o poeta modernista Ascenso Ferreiro e os escritores Hermilo Borba Filho e Jayme Griz. Outros palmarenses ilustres são os artistas plásticos Darel Valença Lins e Murilo La Greca.

Jayme Griz (morto em 1981) foi quem mais escreveu sobre a chuva que constantemente cai sobre a região: “De repente / Chuva / Chuva / Chuva / Chuva / Chuva / Chuva de danar a paciência! / Chuva de sapo pedir aos céus clemência! /Mãe Natura endoideceu/ E se ela, / que é mãe, / que é sábia, / que é única, / a cabeça perdeu/ quanto mais eu/ quanto mais eu.”

O que é a lenda do Santo Graal?

Por Cíntia Cristina da Silva

É uma lenda que atribui poderes divinos a um cálice sagrado, que teria sido usado por Jesus na última ceia. Essa, porém, é uma versão medieval de um mito que surgiu muito antes da Era Cristã. Na Antiguidade, os celtas - povo saído do centro-sul da Europa e que se espalhou pelo continente - possuíam um mito sobre uma vasilha mágica. Os alimentos colocados nela, quando consumidos, adquiriam o sabor daquilo que a pessoa mais gostava e ainda lhe davam força e vigor. É provável que, na Idade Média, tal história tenha inspirado a lenda "cristianizada" sobre o Santo Graal. Na literatura, os registros pioneiros dessa fusão entre a mitologia celta e a ideologia cristã são do século 12. "As lendas orais migraram para textos de cunho historiográfico, desses textos para versos e dos versos para um ciclo em prosa", diz o filólogo Heitor Megale, da Universidade de São Paulo (USP), organizador do livro A Demanda do Santo Graal, que esmiúça esse tema.

Ainda no final do século 12, o escritor francês Chrétien de Troyes foi o primeiro a usar a lenda do cálice sagrado nas histórias medievais que falavam sobre as aventuras do rei Artur na Inglaterra. A partir daí, outros autores, como o poeta francês Robert de Boron, no século 13, reforçaram a ligação entre os mitos do cálice e do rei Artur descrevendo, por exemplo, como o Santo Graal teria chegado à Europa. Foi Boron quem acrescentou um outro nome importante nessa história: o personagem bíblico José de Arimatéia. Nos romances de Boron, Arimatéia é encarregado de guardar e proteger o Santo Graal. Apesar das várias referências cristãs, essas histórias não são levadas a sério pela Igreja Católica. "O cálice da Santa Ceia tem o valor simbólico da celebração da eucaristia. Já seu poder mágico é só uma lenda", diz o teólogo Rafael Rodrigues Silva, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Poderosa ou não, o fato é que essa relíquia cristã jamais foi encontrada de fato.

A jornada do cálice
Romances medievais contam que, de Jerusalém, ele teria sido levado para a Inglaterra
1. Em Jerusalém, durante a última ceia com os 12 apóstolos, Jesus Cristo converte o pão e o vinho em seu corpo e seu sangue - esse sacramento, denominado eucaristia, é um dos pontos máximos dos rituais cristãos. O cálice usado por Cristo nessa ocasião é o chamado Santo Graal

2. Após a última ceia, Jesus é preso e crucificado. Um judeu rico que era seu seguidor, José de Arimatéia, pede autorização para recolher o corpo e sepultá-lo. Antes, porém, um soldado romano fere o corpo de Cristo para ter certeza de sua morte. Com o mesmo cálice usado por Jesus na última ceia, José de Arimatéia recolhe o sangue sagrado que escorre pelo ferimento

3. Após sepultar o corpo de Cristo, José de Arimatéia é visto como seu discípulo e acaba preso, sendo recolhido a uma cela sem janelas. Todos os dias uma pomba se materializa no local e o alimenta com uma hóstia. Mesmo após ser libertado, Arimatéia decide fugir de Jerusalém e ruma para a atual Inglaterra na companhia de outros seguidores do cristianismo. Ele cruza a Europa levando o Graal

4. José de Arimatéia funda a primeira congregação cristã da Grã-Bretanha, onde se localiza a atual cidade de Glastonbury. Nos romances medievais, nessa mesma região ficava Avalon, o lugar mítico que guardaria depois o corpo do rei Artur. Arimatéia prepara uma linhagem de guardiães do Santo Graal, pois o cálice dá superpoderes a quem o possui. Seu primeiro sucessor nessa missão é seu próprio genro, Bron

5. Com o tempo, o Santo Graal e seus guardiães se perdem no anonimato. Quem tenta reencontrar o objeto é justamente o rei Artur, que tem uma visão indicando que só o cálice sagrado poderia salvar sua vida e também o seu reino de Camelot - que ficaria onde hoje há a cidade de Caerleon, no País de Gales. Leais companheiros de Artur, os cavaleiros da Távola Redonda saem em busca do cálice, sem jamais encontrá-lo

Monarca fictício
Histórias sobre o rei Artur se popularizaram no século 12
A cultura celta foi o ponto de partida não só do mito sobre o cálice sagrado, como também do personagem que tornou o Santo Graal popular no mundo inteiro. A criação do lendário rei Artur pode ter sido inspirada num homem de verdade, um líder celta, que teria vivido na Inglaterra por volta do século 5. Mas foi só a partir do século 12 que os primeiros textos com as aventuras de Artur e sua busca pelo Graal fizeram sucesso.

Formas imaginárias

O objeto já foi descrito das mais diferentes maneiras

Simples e redondo

A primeira vez que ele aparece num romance medieval é em Le Conte du Graal ("O Conto do Graal"), do francês Chrétien de Troyes, no século 12. Ele é descrito não como um cálice, mas como uma tigela redonda e simples

Luxuoso e talhado

Em outros textos, que permanecem de autoria desconhecida e são datados entre os séculos 12 e 13, o Graal aparece na forma de um cálice bastante luxuoso, talhado em 144 facetas incrustadas de esmeraldas


Divino e intocável


Em The Queste Del Saint Graal ("A Busca do Santo Graal"), texto do século 13 creditado ao francês Robert de Boron, o cálice é descrito como um objeto divino sem forma. Somente alguém puro e casto poderia tocá-lo.

Será que a questão das burcas diz respeito aos direitos das mulheres?

DER SPIEGEL

Na última quarta-feira, a Espanha tornou-se o mais recente país europeu a aprovar uma legislação para proibir o uso da burca e de outros véus faciais do gênero. Muitos dos indivíduos que apoiam tais leis citam os direitos das mulheres como justificativa, mas será que a criminalização das vestimentas delas ajuda de fato?

Ao que parece, em se tratando das burcas todos são feministas. Em 2006, o populista de direita holandês Geert Wilders argumentou que a burca – uma veste feminina que cobre o corpo inteiro, tendo apenas uma rede em frente aos olhos para que se possa enxergar – é “um símbolo medieval, um símbolo contra as mulheres”. No ano passado, o presidente francês Nicolas Sarkozy classificou o uso da burca de “um sinal de subserviência”. E, na última quarta-feira, o senado espanhol deu a sua aprovação a uma proposta de legislação anti-burca que apoia a proibição de “qualquer roupa, costume ou prática discriminatória que limite a liberdade das mulheres”.

A Espanha, de fato, tornou-se o país mais recente a aderir ao movimento para a proibição da burca e do niqab – que é similar a burca, mas que tem uma abertura para os olhos, em vez de uma rede. Assim, a Espanha junta-se à França, à Itália e à Bélgica. Enquanto isso, a Holanda, a Áustria e a Suíça também estão cogitando adotar leis proibindo tais vestimentas.

Mas será que esse ímpeto no sentido de descobrir o rosto das muçulmanas mais fervorosas pode ser explicado apenas por um desejo recém-descoberto de zelar pelos direitos das mulheres? A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, o órgão que assessora o conselho nas questões referentes aos direitos humanos, certamente acha que não.

Na quarta-feira, a Assembleia Parlamentar, conhecida como Pace (sigla em inglês de Parliamentary Assembly of the Council of Europe), aprovou uma resolução rogando aos Estados membros da União Europeia que não decretem um banimento das burcas “ou de outras roupas religiosas ou especiais”. Em vez disso, sugere a resolução, os países da União Europeia deveriam concentrar as suas energias na proteção da “livre escolha das mulheres de usarem ou não roupas religiosas ou especiais”. Em outras palavras, a Pace pareceu estar dizendo que as liberdades religiosas e os direitos humanos encontram-se no cerne do debate sobre a burca. E, segundo a organização, impedir as mulheres de usarem o que desejam seria uma ação antifeminista.

“As mulheres não têm o direito de serem humanas”

Essa alegação não é incontroversa. No final do ano passado, a líder feminista alemã Alice Schwarzer disse acreditar que uma proibição da burca é uma medida “autoevidente”. A ativista dos direitos das mulheres Necla Kelek, também da Alemanha, diz que as burcas “nada tem a ver com liberdades religiosas ou com religião”. Segundo ela, a vestimenta é derivada de uma ideologia segundo a qual “as mulheres em situações públicas não têm o direito de serem humanas”.

À medida que o debate se amplia, vai ficando cada vez mais fácil ignorar o fato de que grande parte da mobilização pela proibição da burca e do niqab é oriunda de partidos populistas de direita. Wilders foi seguido pelo partido belga de extrema-direita Vlaams Belang, e o partido alemão antimuçulmano Pro-NRW está defendendo também uma proibição desses trajes. Todos esses grupos também gostariam que os minaretes desaparecessem das paisagens europeias, e eles chamaram atenção principalmente devido à sua retórica antimuçulmana.

Na sua resolução da quarta-feira, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa também indicou que enxerga a mesma conexão. Ela justificou as suas recomendações enfatizando a prioridade “de se trabalhar no sentido de garantir a liberdade de pensamento, consciência e religião, e ao mesmo tempo de combater a intolerância e a discriminação religiosa”. O documento a seguir solicitou à Suíça que revogasse a sua proibição de minaretes, uma resolução que foi aprovada em um plebiscito nacional no final de novembro do ano passado.

“Legislação de emergência”

Entretanto, à medida que uma quantidade cada vez maior de países começa a cogitar uma proibição da burca, a ideia está se desassociando progressivamente da retórica de direita. A ministra das Relações Exteriores suíça, Micheline Calmy-Rey, do Partido Social-Democrata da Suíça, que é de centro-esquerda, gostaria que a burca fosse proibida. Na França, o parlamentar comunista André Gerin tem liderado a campanha pela proibição. No Reino Unido, Jack Straw, do Partido Trabalhista, declarou em 2006 que se opõe ao uso do véu que cobre toda a face. E, na Alemanha, políticos de todo o espectro político têm se manifestado favoravelmente a um banimento da burca.

Mas, perdidas no debate – talvez previsivelmente –, estão as mulheres que usam burcas e niqabs. Segundo um recente artigo publicado na revista britânica “New Statesmen”, não há muitas mulheres usando esses trajes no Reino Unido. Na França, os serviços de segurança calculam que apenas 0,1% das mulheres muçulmanas no país usam a burca – um número que parece zombar dos esforços no sentido de aprovar aquela que foi chamada de uma “legislação de emergência” contra o vestuário islâmico antes do recesso parlamentar de verão. O gabinete de Sarkozy aprovou o projeto de lei no mês passado. E o número de mulheres que usam o véu integral na Bélgica pode chegar a apenas 30.

Entretanto, em um continente no qual a integração da sua cada vez maior população muçulmana vem provocando atritos políticos há anos, talvez não seja surpreendente o fato de o debate em torno da burca ter se intensificado continuamente neste ano. Os europeus estão preocupados com o islamismo radical e muitos associam a proibição da burca a um combate ao extremismo muçulmano.

“Criminalizando as mulheres para libertá-las”
Mas o oposto pode ser verdade. No verão passado, a ala norte-africana da Al Qaeda ameaçou “vingar-se” da França como resultado do debate crescente no país a respeito do banimento da burca. “Nós não toleraremos tais provocações e injustiças, e nos vingaremos da França”, advertiu o grupo em uma declaração.

Já os trabalhadores do setor de direitos humanos temem que a proibição da burca envie a mensagem errada às mulheres muçulmanas. “Tratar mulheres muçulmanas fervorosas como criminosas não ajudará a integrá-las à sociedade”, afirmou em abril último Judith Sunderland, da organização Human Rights Watch. Falando a respeito do banimento belga, a escritora britânica Myrian François-Cerrah, que é muçulmana, disse simplesmente: “Os belgas têm uma noção engraçada de libertação, criminalizando as mulheres para libertá-las”.

Apesar de toda a popularidade do banimento da burca na Europa, parece improvável que os políticos alemães sejam obrigados a se defrontarem tão cedo com um projeto de lei desse tipo. Segundo uma análise realizada pelo parlamento alemão no mês passado, uma proibição da burca provavelmente violaria a constituição alemã. E o ministro do Interior, Thomas de Maizière (da União Democrata-Cristã, de centro-direita), manifestou a sua oposição a uma legislação desse tipo na Alemanha. “Um debate a respeito da burca na Alemanha é desnecessário”, afirmou Maizière.

Tradução: UOL

quinta-feira, junho 24, 2010

Beth Carvalho está há 5 meses na cama após fissura na base da coluna

Cantora não consegue nem mesmo se sentar
Apesar do problema, Beth está bem-humorada e otimista

Carolina Lauriano
Do G1 RJ

Há cinco meses a cantora Beth Carvalho não consegue se levantar da cama. Ela se recupera de uma cirurgia feita por causa de uma fissura do sacro, osso que fica na base da coluna. “Estou deitada desde janeiro”, disse a cantora nesta quinta-feira (24), ao falar de sua recuperação. Beth não consegue nem mesmo se sentar.

Apesar do problema, a cantora está bem-humorada e otimista. “Estou melhor, estou fazendo fisioterapia e daqui a pouco estou cantando de novo”, disse ela ao G1, por telefone. Em seguida ela ainda brincou, afirmando que nunca perde o bom humor: “Daqui a pouco vou fazer um show Na cama com Beth Carvalho”.

Beth está em tratamento em sua casa, na Zona Sul do Rio, com um esquema de home care e sessões de fisioterapia. No réveillon de 2009, a cantora não pôde participar do tradicional show em Copacabana.

A tranquilidade de Beth vem do apoio de amigos, sambistas e familiares. “Por esse lado estou muito feliz, porque tive uma resposta muito boa de carinho das pessoas e mensagens de fãs também”, disse ela.

Neuropatia agravou doresA cantora explicou que foi preciso colocar parafuso durante a operação. “Tive muita dor depois. Estou com uma dor neuropática, uma doença nos nervos", disse, explicando que a dor foi provocada por ela ter ficado muito tempo na mesma posição durante a operação.

O objetivo principal agora é sanar as dores. Só então que o trabalho de sentar e andar será iniciado. Beth disse ainda que se não fosse o surgimento da neuropatia ela já estaria andando.

Não há previsão de quando a cantora voltará aos palcos, mas ela parece não estar estressada com isso. “Só mais algumas semanas e eu vou estar boa. Estou boa de cabeça, a operação foi bem. Com certeza terá um show para comemorar”, prometeu a sambista.

O problema na coluna foi provocado por uma artrose no fêmur que fazia com que a cantora andasse mancando, causando a fissura.

quarta-feira, junho 23, 2010

Caixa de CDs traz registro definitivo da obra de Chopin

IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Coleção com 17 discos reúne interpretações
de alguns medalhões do meio

Não têm faltado lançamentos para celebrar o bicentenário de nascimento de Frederic Chopin (1810-1849), mas esse aqui liquida o assunto: uma caixa com a obra completa do pianista-compositor polonês. "Chopin Complete Edition" reúne 17 CDs, combinando o que há de melhor nos catálogos de dois grandes selos eruditos: Deutsche Grammophon e Decca. Como resultado, a coletânea traz pesos-pesados até em itens menos conhecidos.

É um luxo ter o refinamento intimista do chileno de temperamento germânico Claudio Arrau (1903-1991) em obras para piano e orquestra como o "Rondó à la Krakowiak" e a "Fantasia Sobre Árias Nacionais Polonesas". No pouquíssimo executado "Trio em Sol Menor", a gravação é do Beaux Arts Trio, enquanto Mikhail Pletnev toca o quase desconhecido "Rondó Op. 16".

REGISTROS CÉLEBRES
Os itens célebres trazem alguns registros que estabeleceram os patamares de excelência pelos quais essas obras são hoje julgadas. É o caso, por exemplo, da leitura de Maurizio Pollini para os "Estudos", feita em 1972, e que, até hoje, consiste em um dos mais acabados exemplos de perfeição e excelência pianística disponíveis em disco.

Ou, ainda, do absoluto comando do polonês Krystian Zimerman, que comparece com uma interpretação sólida das quatro baladas, bem como a revolucionária gravação dos dois concertos para piano que, sem regente, fez, em 1999, para os 150 anos de morte do compositor.

As polonaises também estão a cargo de Pollini. Já as mazurcas e valsas se fazem representar pela inteligência de Vladimir Ashkenazy.

A poesia dos noturnos reside nas mãos pequenas e inspiradas de Maria João Pires, e a "Sonata para Violoncelo e Piano", no incrível duo formado por Mstislav Rostropovich e Martha Argerich. Em meio a tantos medalhões, há espaço ainda para emergentes do teclado.

Caso do chinês Yundi Li, 27, com uma gravação de 2004 dos improvisos, ou, especialmente, do espetacular polonês Rafal Blechacz, 24, vencedor da edição 2005 do Concurso Chopin, que demonstra assombrosa maturidade em sua gravação dos prelúdios. Vale muito a pena!

CHOPIN COMPLETE EDITION GRAVADORA
Deutsche Grammophon
QUANTO R$ 292 (a coleção com 17 CDs)
AVALIAÇÃO ótimo

Serra e o "certo arranjo que não funciona"

ELIO GASPARI

Estado paga juros altos a quem não trabalha,
arrecada muito de quem rala e investe pouco

DURANTE SUA SABATINA na Folha, José Serra voltou a enunciar sua crítica à política econômica do governo Lula (inclusive naquilo que ela tem de continuação do mandarinato tucano, no qual foi ministro): "O Brasil tem três ou quatro recordes de que eu me envergonho. As altas taxas de juros e impostos, a "lanterninha" nos investimentos governamentais e a maior hipervalorização da moeda no mundo. Tem um certo arranjo aí que não funciona, e que eu me proponho a consertar".

Enunciado desse jeito, move poucos votos, mas significa o seguinte: com a taxa de juros a 10,25% ao ano, o Brasil continua a ser o país do mundo onde mais se ganha dinheiro sem precisar trabalhar, emprestando-o ao governo.

Esse mesmo país tem uma das cargas tributárias mais altas do mundo (35% do PIB, pouco abaixo do patamar de 36,45% deixado pelo tucanato em 2003).

Em português de campanha: o Brasil é um dos países onde mais se trabalha para sustentar o governo que, por sua vez, melhor remunera seus gordos credores. De uma lista de 135 países, o Estado brasileiro, que tanto arrecada, disputa com o Turcomenistão a menor taxa de investimento do mundo.

Finalmente, o real sobrevalorizado barateia as compras em Miami, mas dificulta as exportações. Serra repetiu que o Brasil exporta celulose e importa papel. A taxa de investimento global da economia tem melhorado, mas ainda está abaixo da russa, indiana ou chinesa. "Tem um certo arranjo aí que não funciona."

O candidato do PSDB já disse que essa não é uma divergência entre governo e oposição, mas questão de Estado. Nem na Suíça a linha divisória de uma campanha pode passar por temas tão arcanos, mas, de fato, o arranjo não funciona.

Os conselheiros do ex-ministro Antonio Palocci sabem disso, Lula acha que esse problema pode ficar para depois, até porque o curto-circuito só ocorrerá se alguém encostar os fios desencapados e nem na crise de 2008, a da "marolinha", isso aconteceu.

Um dia esse arranjo para de funcionar, por conta de fatores externos ou mesmo internos. Nos anos 70, quando o Brasil festejava o milagre econômico que acarpetou o asfalto natalino da rua Augusta e deu a Lula o seu primeiro carro, pouca gente prestava atenção em números estranhos.

Entre 1970 e 1973, a produção de bens de consumo duráveis, como geladeiras e aparelhos de TV em cores, praticamente triplicara. Já a produção de bens intermediários, como parafusos, lingotes e mercadorias capazes de atrair novas levas de trabalhadores, crescera apenas 45%. E daí, se dá para empurrar com a barriga? Era o prenúncio de uma pressão inflacionária que, associada a duas crises do petróleo, destruiria a ditadura e infelicitaria a primeira década da redemocratização.

Nosso Guia já avacalhou um Congresso que recebeu avacalhado, entronizou as centrais sindicais como um poder paralelo e, finalmente, vem dando um toque carnavalesco à sua sucessão. Num clima de festa, preocupações como as de Serra merecem pouca atenção. Afinal, pode-se empurrar o arranjo com a barriga. Uma coisa é deixar o debate para depois, sinal de astúcia política ou oportunismo eleitoral. Outra é achar que esse "certo arranjo" funciona.

terça-feira, junho 22, 2010

O SANTO GRAAL CURANDO A FERIDA NA PSIQUE OCIDENTAL

Roger J. Woolger

O Problema de Peixes

A consciência do Ocidente cristão permanece cindida, incapaz de resolver os opostos da Roma
(de Marte) e do Amor (de Vênus), apesar do surgimento de igrejas e movimentos espirituais
alternativos. Jung vê a cisão como refletida no simbolismo astrológico de Peixes que rege a Era
Cristã. Ele diz que esta é uma era na qual o problema dos opostos psíquicos está profundamente
acentuado. Jesus, como o conhecemos, logo foi assimilado na mente mística com o símbolo do
Peixe, não só como um pescador de homens, mas também como representante do arquétipo
dominante da era: os peixes gêmeos do signo de Peixes. O primeiro peixe parece ser Cristo, mas
então quem ou o que é o segundo? Acompanhando o pensamento de um grupo de autoridades
patrísticas antigas, incluindo o venerável Agostinho (um ex-Maniqueísta) Jung conclui que o
segundo peixe é o anti-Cristo, o lado sombrio de Cristo, cujo espírito virá dominar a segunda
metade da Era de Peixes, quando a energia de Cristo irá para o inconsciente. Jung vê que “um
abismo assustador abriu-se entre Cristo e anti-Cristo no século XI”, o que visionários como
Joachim de Flora compensaram com imagens apocalípticas de uma nova era do Espírito Santo.
Mas, infelizmente, o poder potencialmente revitalizante do espírito dispersou-se nos
movimentos coletivos que mencionamos e a Igreja enrijou-se em repressão e dogmatismo:
“A era do anti-Cristo merece censura pelo fato de que o espírito tornou-se não espiritual e o
arquétipo revitalizante gradualmente degenerou-se em racionalismo, intelectualismo, e
doutrinarismo, tudo o que resultou na tragédia dos tempos modernos”.

O próprio Jung tentou demonstrar em seus estudos de alquimia que, nessa disciplina arcana e
em grande parte subterrânea, a vida e os mistérios da transformação espiritual foram, entretanto, mantidos vivos. E, se os alquimistas eram os guardiões dos mistérios perdidos do espírito, os romances corteses e cultos do amor sobrevieram para manter vivos os mistérios da natureza e a Grande Mãe. Ao mesmo tempo, os Cátaros transmitiram o lumen naturae como sendo a emanação feminina do Espírito Santo (Sofia), pela imposição das mãos, um ritual equivalente à transmissão de barakah pelos Sufis ou do Shaktiput dos Yogis. Emma Jung esforçou-se para demonstrar que os romances do Graal são meditações coletivas sobre esse problema apresentado pelo inconsciente. Em todas essas correntes encontramos uma convergência de imagens de fontes celtas, orientais, cristãs e alquímicas, todas buscando um novo símbolo não apenas da transcendência espiritual, mas também da Divina Imanência na criação.


PARTE II: UMA INTERPRETAÇÃO DA LENDA DO GRAAL

Sinopse da Lenda

O romance Percival (1185), de Chretien de Troyes, a primeira de muitas versões da história
dos Graals, é de uma simplicidade e franqueza ausentes na versão posterior, uma trama mais
elaborada de cavalheirismo e Cruzadas, que encontramos no Parzifal (1212) alemão, de Wolfram
von Eschenbach. Especialistas notaram empréstimos óbvios das sagas galesas na primeira obra,
mas a lenda é essencialmente expressa na língua franca cavalheiresca conhecida em todas as
cortes, de Monmouth a Provença e de lá a Beirute. Diferentemente de Wolfram, não há
nenhuma tentativa de referência contemporânea; o cenário é in illo tempore, o “era uma vez” da
convenção do mito e das lendas folclóricas, em que a corte de Artur é tão remota no tempo e
espaço para o leitor medieval quanto Tróia o era para os gregos atenienses da Era Clássica.
Embora o mundo seja cristão, nenhuma explicação cristã do Graal é oferecida por Chretien – a
lenda de que o Graal é o cálice da Última Ceia trazida para a Bretanha por José de Arimatéia é
um acréscimo posterior. Portanto, o Graal aparece na primeira leitura com toda a
espontaneidade e mistério de uma poderosa imagem onírica.

Os elementos essenciais da estória são os seguintes: Um nobre, mas simples, jovem
galês cresce isolado no campo. Sua mãe, uma viúva triste, o mantém afastado da corte,
porque seu pai e seus dois irmãos haviam morrido em combate quando o jovem ainda era
bebê. Percival nunca tinha visto um cavalheiro, mas, quando finalmente vê, determinase
a ser um deles. Sua mãe desmaia quando sabe de seu intento, mas permite que vá,
desde que prometa respeitar todas as donzelas, freqüentar diariamente a igreja e nunca
fazer perguntas.

Numa série de aventuras ingênuas, ele encontra primeiro uma donzela, depois o
esplêndido Cavalheiro Vermelho, a quem mata para ficar com sua armadura. Nesse feito
é encorajado pelo Rei Artur, que acredita no presságio de que um tolo simplório será o
maior dos cavaleiros.

Depois de acompanhar o treinamento de Lorde Gornamant nas artes do combate e na
filosofia cavalheiresca, o jovem segue sozinho, novamente com o conselho de ser
prudente e não falar muito. Ele encontra Lady Blanchflor, a quem compromete seus
serviços na defesa das terras da senhora que estão sitiadas. Triunfante na sua tarefa e
amado por Blanchflor, tem franca liberdade para pretender a sua mão, mas decide, antes,
tentar encontrar sua velha mãe. Em sua busca, depara-se com o misterioso castelo do Rei
Pescador, que está gravemente ferido nas coxas. O rei só consegue algum alívio para a
dor quando está pescando. Em uma marcha solene, Percival vê uma lança coberta de
sangue e uma taça que brilha com uma luz fulgurante, mas, em atenção aos conselhos de
sua mãe e de seu professor, nada pergunta sobre o rei. (Mais tarde uma jovem virgem
contou-lhe que ele poderia ter curado o rei, se lhe tivesse feito as perguntas certas).
Na manhã seguinte, o rei, o castelo e todos seus habitantes haviam desaparecido.

Percival participa de muitas aventuras, mas, gradualmente, esquece tudo que lhe haviam
ensinado, esquece sua mãe, seu professor, Blanchflor e o Graal. Depois de muitos anos,
um ermitão lhe lembra de sua fé e de sua busca original, insinuando que a perda do Graal
teria a ver com o fato de que abandonara sua mãe, que depois morrera. O ermitão
também lhe conta sobre o pai do Rei Pescador, a quem o Graal é destinado e que mora
num aposento na parte interior do castelo alimentando-se apenas de hóstias. Aqui a
história (incompleta) é interrompida.

Percival, o Herói

Iniciemos pelo herói, Percival, cuja principal proeza na história de Chretien é descobrir o Graal
e curar, ou seja, aliviar, o sofrimento do Rei Pescador. Percival é a típica criança órfã de pai, um
arquétipo que comumente caracteriza o herói, onde frequentemente se infere que o pai
verdadeiro é um homem de alta posição social, ou até mesmo, em muitos mitos, um deus. Essa
falta de um pai tem muitas consequências no plano imediato; o pai sempre estabelece limites, os
limites do mundo, que podem ser limites de dinheiro, poder ou lei. A criança criada sem pai não
conhece as limitações imediatas (a mãe não pode contê-lo e secretamente o “endeusa”) e,
portanto, pode carregar uma energia e uma intrepidez que literalmente não conhecem
fronteiras. Os feitos de heróis crianças como Hércules exibem essa superabundância de vida
como poder físico; ou, como no caso de Jesus ainda criança no templo, há uma superabundância
de sabedoria, sem limites, não contaminada pelo cânone patriarcal.

Percival passa por um grande número de enfrentamentos cavalheirescos e logo prova sua
intrepidez física, mas é reconhecido menos por sua bravura e mais por sua simplicidade e por
uma negligência, um insouciance, particularmente em relação às mulheres. Ele se esquece de sua
mãe e se esquece de perguntar sobre o Graal, e esse seu descuido é uma imagem da tendência
que nós todos temos de permitir que o reconhecimento do fundamento feminino do nosso ser
caia no inconsciente.

No começo da história, Percival mora com a mãe e é chamado “o filhinho da viúva”. Pode não
ser coincidência o fato de que Mani, que deu origem ao Maniqueísmo, fora também chamado
“o filho da viúva”, assim como também o era Horus nos mistérios de Ísis. Tanto o profeta Mani
quanto o deus criança Horus são arautos do embate com as forças do bem e do mal a serviço da
suprema deusa, a Virgem do Mundo. Na história de Chretien, a mãe chora a morte do pai de
Percival “ferido nas coxas” (como o Rei Pescador) e dos seus dois outros filhos, todos mortos em
combate. Seu refúgio na floresta é como um regresso do arquétipo da mãe à natureza, indefesa
num mundo onde a força das armas ou de Marte é toda poderosa.

Isso também significa que o nosso herói está próximo da natureza, do self natural, instintivo e
espontâneo. E é essa parte de sua ingenuidade que o equipa para a tarefa de buscar os mistérios
do feminino; ele não tem medo dos poderes negros da deusa mãe que são tão aterrorizantes para
o filho do pai (é Gawain, o filho do pai, simbolizado por sua busca pela lança – o emblema fálico
– quem deve lidar com “a noiva abominável” ou com a figura da “bruxa horrenda”, e não
Percival).

Na verdade, todos os encontros de Percival com as donzelas na história são espontâneos,
calorosos e naturalmente sensuais. No seu encontro com a “donzela triste”, a história conta que
“ele a beijou e suavemente a puxou para debaixo de suas cobertas, e ela não resistiu a seus beijos
– os quais eu não acho que lhe foram desagradáveis. Assim ficaram deitados aquela noite lado a
lado, boca a boca, até que amanhecesse”.

Deve-se ressaltar que, embora eles tenham se beijado e se deitado juntos sob as cobertas, nada
é dito sobre fazer amor; o ato é uma expressão natural de sua atração mútua; não é nem
puramente sensual nem, como nas outras versões, uma negação deliberada do aspecto sensual.

Para Chretien, como para todos os Trovadores, a beleza da mulher é o reflexo da beleza de
Deus; o que no Judaísmo místico é chamado de Shekinah, a beleza da criação, que é a Noiva de
Deus. Essa concepção profunda e abrangente perdeu-se no Cristianismo Ocidental, porque, a
partir dos Pais do Deserto, ensinou-se que os bons Cristãos de ambos os sexos deveriam
desprezar o corpo, mortificar a carne e condená-la a austeridades extremas.

A doutrina de Shekinah não ficou perdida para o Islamismo, entretanto. Apesar de uma
superfície de puritanismo, alimentava-se, contudo, entre os Sufis, um erotismo místico de muitas
facetas. Por um lado, o Sufismo absorveu os ensinamentos não somente gnósticos, mas também
os neoplatônicos, que enfatizavam a correspondência entre a beleza transcendente e a imanente.
O falecido Henry Corbin, um dos grandes estudiosos ocidentais do Sufismo, escreve, a partir
dessa perspectiva, que “a beleza feminina é a teofania por excelência”, numa menção às palavras
do Profeta: “Eu vi Deus sob a mais bonita das formas”.

Corbin prossegue dizendo:

A beleza é um atributo essencial de Deus e não pode ser percebida, a não ser nas suas
criaturas; e, além disso, o amor pelo ser criado belo é a única experiência que pode
despertar um genuíno amor a Deus. E é por isso que o próprio Deus é a fonte e a
realidade de Eros e proíbe sua dupla dessacralização: dessacralização por libertinagem,
que é sua profanação; e dessacralização por meio de um ascetismo que é deliberado ou
que, por outro lado, inerentemente procura o sofrimento, o que acaba por equivaler a sua
negação.

Então, de alguma forma, Corbin e os Sufis sugerem que há um caminho do meio entre a Scylla
da libertinagem e a Caribde da autossuplício asceta. O caminho do meio dos Sufis que os
Trovadores, e depois Dante, claramente adotaram era precisamente o caminho da contemplação da beleza em sua encarnação feminina. Afirma-se em Eric, outra obra de Chretien:

O que posso dizer sobre a beleza dela? Na verdade, foi feita para ser admirada: pois nela
qualquer um pode ver a si próprio como se em um espelho.


Admirar um belo rosto ou um belo corpo é ver refletido nele o atributo divino da beleza
transcendente. O olho que vê torna-se o olho de Deus admirando sua criação. E esse olhar,
contemplando, é a ponte do encarnado para a alma. Ao fixar nossa atenção, vamos além do
simples desejo, além até da imaginação, pois não há mais nada a imaginar na presença da beleza.

A disciplina espiritual implícita nisso foi soberbamente expressa por Simone Weil:

O belo é uma atração carnal que nos mantém à distância e implica renúncia. E isso inclui
a renúncia daquilo que é o que há de mais profundamente assentado: a imaginação.
Queremos comer todos os outros objetos de desejo. O belo é aquilo que desejamos sem
pretender comer. Nós desejamos que seja... O belo é a presença real de Deus na
matéria...O encontro com o belo é um sacramento.

No Yoga Tântrico indiano, aquela ramificação secreta do Yoga que é dedicado à Grande
Deusa, há uma prática chamada Maithuna, que, segundo Mircea Eliade, é onde “a união sexual é
transformada num ritual por meio do qual o casal humano torna-se um casal divino”.
Uma jovem Yogini, escolhida por sua beleza, vive com um jovem Yogi treinado; e,
gradualmente, o casal, passando por vários estágios juntos, prepara-se para um intercurso
ritualístico. Fitar um ao outro, em estado de excitação, é um estágio previsto no processo
destinado ao despertar místico.

Assim escreve Eliade:

Toda mulher nua encarna prakrti (i.e. substância compreendida como
“material” feminino). Portanto, ela deve ser olhada com a mesma
adoração e o mesmo desapego com que uma pessoa exercita uma
reflexão sobre o insondável segredo da natureza, sua ilimitada
capacidade de criar. A nudez ritualística da yogini tem um valor
místico intrínseco; se, na presença da mulher nua, a pessoa não
encontra em seu ser interior mais profundo a mesma emoção
aterrorizante que sente diante da revelação do mistério cósmico, não
há rito, mas apenas um ato mundano com todas as conseqüências conhecidas
(fortalecimento da corrente kármica etc).

Se essas práticas foram importadas do Oriente durante as aberturas interativas dos Séculos XI
e XII, provavelmente nunca saberemos, devido à ameaça que representavam para o ascetismo
Cristão e para uma cultura que renegava o corpo e a terra. Fortes indícios da existência de tais
práticas, ou pelo menos do princípio da contemplação da beleza, são encontrados em Chretien e
nos Trovadores contemporâneos. Apesar de todo vigor e júbilo ostentado nas cortes de Anjou e
Languedoc, a cultura do l’amour courtois permaneceu restrita a uma minoria, destinada a
prosperar, mas apenas brevemente, deixando para trás somente esses vestígios literários.

Impossível não notar a diferença entre a atitude de Percival para com a donzela e o posterior
relevo dado à castidade e à pureza que encontramos na Morte D’Arthur (1845), de Malory.
Aqui somente Sir Galahad, o mais puro cavaleiro, é digno de buscar o Graal. Malory escreveu ao
final de um período que assistiu à intensa Cristianização da lenda do Graal e a sua posterior
espiritualização. Chretien de Troyes escreveu em meio à cultura insolentemente herege dos
Cátaros que estava associada a Eleanor de Aquitânia, neta de Guilleme IX, o primeiro Trovador
o qual citamos. Uma cultura que trouxe à vida mais uma vez “o antigo prazer em Eros e a
liberdade do espírito” (Heer), mas, de igual modo, uma cultura que foi, por essa mesma razão,
execrada por São Bernardo de Claraval que, como paradigma da ortodoxia espiritual, chamava-a
de “o demônio do Sul”. É bom lembrar que, entre os grandes sermões de São Bernardo, estão os
sobre o Cântico dos Cânticos, o mais sensual dos documentos do Velho Testamento e que
celebram o amor de Salomão por sua noiva negra Sulamita. Em comum com a tradição Patrística
e também Judaica, São Bernardo viu essa paixão como uma descrição totalmente alegórica da
união da alma com Deus!

O Rei Pescador

Nesse ponto – minha imagem da apaixonada, mas sensual, Eleanor de Aquitânia fitando,
através do abismo cultural do ardente Sudoeste, a face de um igualmente apaixonado, mas
místico, São Bernardo, na frieza e imponência de sua Abadia de Cluny, no Nordeste – nesse
ponto, antes que a terrível Cruzada Albigense que se precipitou em direção a Rhone e suprimiu
a fogo e espada “o demônio do Sul”, para vitória eterna e vergonha eterna dos líderes da Igreja,
vamos nos voltar para o que Wagner, Jung e T. S. Elliot consideraram como a imagem mais
intrigante do Conte Del Graal, de Chretien, aquela do Rei Pescador ferido em meio a le pay
gaste
– a terra devastada.

A Terra Devastada

Em quase todas as versões da lenda, como foi sintetizado por Jessie Weston em From Ritual to
Romance
, a ferida do Rei Pescador, ou Rei Graal (os quais às vezes são duas entidades) está
diretamente associada à seca prolongada que reduziu o campo a um terreno inculto. A tarefa do
herói, ao fazer a pergunta certa, seria tanto curar o rei como “liberar as águas”, para assim
restaurar a vida no reino.

Nas várias versões, três diferentes perguntas são formuladas, dependendo do tipo de texto que a
acompanha. No texto de Chretien, que, acredita-se, tenha sido o primeiro, a pergunta que
Percival deve formular é: ”A quem o Graal serve?”. Uma prosa quase contemporânea de Percival faz o herói perguntar: “O que é o Graal?”. No Parzifal, de Wolfram, entretanto, muito mais tarde, a terra devastada desaparece fazendo com que toda ênfase recaia sobre a ferida do Rei Amfortas e, para der reine Thor, o tolo puro, a pergunta é: “O que te dói, meu tio?”. Iniciarei
com a última, que se refere à ferida do Rei Pescador, pois ela nos leva diretamente ao cerne do
nosso problema e, além, para o mistério do Graal.

Na versão de Chretien, o pai de Percival foi ferido por uma azagaia nas coxas, como o foi o Rei
Pescador. Em outras versões era o tio de Percival, mas neste caso parece ser mesmo o pai, em
função do tipo de ferimento. Isso torna evidente que as terras do Rei Pescador e as águas que
Percival deve atravessar são miticamente a Terra dos Mortos, ou as trevas.

Podemos dizer que o Rei Pescador é o princípio paterno ferido – o enfraquecido, improdutivo
e espiritualmente abandonado mundo paterno do tempo de Chretien. Em virtude da analogia
com Cristo como Ichthys, o Pescador de Homens, Emma Jung escreve:

O Rei Graal como tal é como se fosse a imagem arquetípica do homem Cristão como
ele é visto da perspectiva do inconsciente. Visto assim, ele dissemina uma sombra
extraordinária.

Ele está ferido nas coxas, o lugar da geratividade. Se esse simbolismo não fosse por si claro, no
Parzifal, de Wolfram, ele se torna ainda mais explicito, pois o Rei Graal, o Rei Amfortas, foi
ferido nos testículos.

É esta, então, a imagem do homem Cristão que emergiu nas fantasias inconscientes dos
Trovadores do Século XII: um Pescador Real rico, mas, do ponto de vista sexual, horrivelmente
ferido, governando sobre uma terra que está desolada, infértil, improdutiva. A terra, na verdade,
reflete sua impotência; as águas da vida secaram por dentro e por fora.

Cabe ao inocente tolo perguntar àquela parte da nossa consciência Ocidental: Por que estamos
sexualmente mortos? Por que a nossa comunhão com a fecunda terra não é mais frutífera? O que há de podre ou de tão terrivelmente errado com a sexualidade do homem Cristão ocidental?

Em outras versões da história, a única coisa que pode aliviar o sofrimento do rei é a hóstia da
comunhão, que é depositada no Graal (de cima para baixo) no Domingo de Páscoa. Wolfram e
Wagner assim elaboram o mistério do poder curador da Eucaristia: é alívio e não cura real. E eu
creio que fracassa (como o fazem todas as posteriores versões mais Cristãs e de certo modo mais
sentimentais da história) como cura real, porque vem de cima; é uma solução apenas
transcendente ou espiritual. Os símbolos ou sacramentos Cristãos não podem mais ajudar,
porque o Cristianismo do Século XII está ele mesmo doente.

O antídoto não pode vir de cima, ele deve vir de onde a ferida está: de baixo. E é daí que vem
o problema mais profundo do Cristianismo cindido: abaixo está tudo que pertence ao diabo, ao
anti-Cristo. Eu proponho que seja essa a razão pela qual o Rei Pescador queima seus dedos no
salmão, que é o que ocorre em uma das versões: ele não é capaz de manusear o segundo peixe da
Era de Peixes. É muito quente. Queima suas mãos. A sexualidade, especialmente a sexualidade
sepultada, é fogo impossível de controlar, pois é fogo do inferno.

Mas há algo que está ainda mais abaixo, que é o Graal, a fonte da vida, da geratividade, do
Eros primordial. O Graal pertence a tudo que é macio, dócil, yin, no corpo, na terra, na Mãe:
pleno, rico, suave, gentil, e infinitamente abundante.

A sexualidade impotente é a degradação final de Marte, o espírito imperialista impositivo.
Marte era originalmente para os romanos um deus “Dionisíaco”, da fertilidade, cujo falo era a
charrua que engravidava Venus, a Mãe Terra, mas que também, com sua espada, protegia a terrados invasores. Devido à insegurança e a ânsia por poder, primeiro da Grécia colonial e depois da Roma Imperial, a relha transformou-se permanentemente na espada, e a ígnea semente da criação transformou-se em chamas da destruição. Isso porque Marte, quando é unicamente deus da guerra (como o Ares grego), perde sua conexão com a terra e se torna o bruto e voraz agressor sexual que não conhece limites, a não ser que seja refreado pelas leis rigorosas de uma autoridade maior. O Cristianismo romano freou essa libido selvagem, a serviço primeiro de uma religião imperial, depois da Inquisição e das Cruzadas, e finalmente do espírito Conquistador em sua insaciável ganância por mais conquistas ou “influências“ – que inicialmente buscou um ideal ascético ou puritano que contrabalançasse seu medo de resvalar para dentro da sombra pagã da libertinagem – e sua perda da corporificação sensual de Venus.

“O medo Cristão da perspectiva pagã danificou toda consciência do Homem”. Assim escreveu
D. H. Lawrence na sua última obra, Apocalipse. A ferida do Rei Pescador é a imagem medieval
daquela consciência danificada e da terrível alienação da Mãe Terra que ela forjou.

Emma Jung cita uma versão diversa, mas também dos primeiros anos, da lenda do Graal sobre
“a destruição do país de Logres”, um tipo de lembrança de uma Idade Arturiana distante anterior à Queda. Conforme segue, o poder terrível de Marte é claramente responsável pela perda do Graal e desolação da terra:

Uma vez viviam naquela região, numa certa puis, i.e. sepulturas ou grutas que abrigavam
nascentes, jovens virgens que costumavam revigorar, caçadores e peregrinos cansados
que por ali passavam, com comida e bebida. Bastava ir a um desses puis e expressar seus
desejos e imediatamente uma linda donzela apareceria, carregando uma tigela dourada
contendo todo tipo de alimento (também um tipo de graal). À primeira, se seguiria uma
segunda jovem portando uma alva toalha de mão e uma segunda tigela contendo o que
quer que o visitante desejasse. As donzelas serviam todos os viajantes dessa maneira, até
que um dia um rei chamado Amagons raptou uma delas e roubou sua tigela dourada. Seu
povo seguiu seu mau exemplo e as virgens nunca mais saíram da gruta para revigorar
peregrinos. Daquele tempo em diante, a região começou a se tornar árida. As árvores
perderam suas folhas, a grama e as flores murcharam, e a água faltou mais e mais.
“E daí em diante a corte do Pescador Rico que fazia o solo reluzir com ouro e prata, com
peles e coisas preciosas, com alimentos de toda sorte, com falcões, gaviões e gaviões
pardais, não seria mais vista. Naqueles dias quando a corte ainda podia ser vista, havia
riquezas e abundância por toda parte. Mas agora tudo isso está perdido para a terra de
Logres.

É lugar-comum no trabalho junguiano de sonhos que, quando uma imagem não pode ser
entendida ou assimilada pela consciência, ela retorne de formas ligeiramente diferentes outra
vez e outra vez, até que a consciência esteja mais apta a receber o seu significado. Wagner
batalhou com a ferida de Amfortas em Parsifal, e T. S. Eliot explorou a terra devastada como
uma paisagem contemporânea de sonhos, mas nenhum dos dois viu o problema como sexual.
Coube a D. H. Lawrence, que trabalhou mais próximo dos problemas do Cristianismo e do
paganismo, apresentar uma versão totalmente renovada do arquétipo nos seu último romance,
O Amante de Lady Chatterly. Na obra intencionalmente mal interpretada de Lawrence, a razão
pela qual Constance Chatterly procura um amante é porque seu marido está paralisado da
cintura para baixo devido a um ferimento sofrido na Grande Guerra. No caso do Rei Pescador
foi uma azagaia, no de Lord Chatterly foi um fragmento de granada, mas para ambos a
impotência sexual é a mesma. Ambos são governantes e membros de uma elite militar,
simbolizando arquetipicamente um dominante na consciência que está ferido de morte e que
não pode mais suster a cultura que governa deixando tudo que é feminino descontente e
improfícuo.
Assim como com os Romanos, assim com os Britânicos. A expansão incontida do imperialismo de Marte (sem levar em conta aqui o “bom” verniz da instrução e da civilização) leva inevitavelmente à dispersão completa da libido da terra mãe – uma total perda da conexão com o solo pátrio causada por séculos de adulteração que a mistura com culturas estrangeiras provoca, tudo a serviço de uma idéia grandiosa, mas lunática, chamada Império Britânico.

Do mesmíssimo modo com que os bárbaros inundaram Roma, assim também hoje Londres
está à mercê da onda de imigrantes de todas as raças, mal instruídos, desarraigados e
desnorteados, provindos das antigas colônias. É o retorno do reprimido: é a sombra Dionisíaca
pagã que volta para reivindicar o centro cada vez mais decadente da metrópole (literalmente:
“Cidade Mãe”), aquela espiritual terra devastada que foi tudo o que sobrou quando o dardo
imperialista foi de fato disparado.