sexta-feira, agosto 31, 2012

Mostrar para Esconder: O Papel da Mídia na Construção do Conformismo - Parte 5


Autor: Emilio Gennari.
5. A MAGIA DAS PALAVRAS.

"Se não tomar cuidado, os jornais farão
você odiar as pessoas que estão sendo
oprimidas, e amar as que oprimem".
Malcom X.

Autor: Emilio Gennari.
5. A MAGIA DAS PALAVRAS.

"Se não tomar cuidado, os jornais farão
você odiar as pessoas que estão sendo
oprimidas, e amar as que oprimem".
Malcom X.

Instigado pela coruja, o secretário se ajeita na mesa e esboça um sorriso amargo. Numa sensação de desconcerto, típica de quem descobre ter sido enganado, o homem coloca o instrumento de trabalho entre os dedos e, titubeante, pergunta:
- “Como é que simples palavras podem mostrar a realidade para escondê-la?”.
Satisfeita com a retomada dos trabalhos, a ave limpa a garganta e, sem perder de vista as expressões que se desenham no rosto do seu interlocutor, diz:
- “O que para você não passam de simples palavras, para mim são um poderoso instrumento de comunicação capaz de dar vida a novos símbolos, traduzir vivências, alterar a visão da realidade e fazer avançar as relações sociais no rumo desejado pelo poder. Repetidas à exaustão, aplicadas a uma variedade enorme de situações, usadas para alterar o sentido da história, as palavras ganham vida, refletem novas percepções e marcam os limites da atuação do sujeito. Em volta delas, a mídia desenvolve um trabalho intenso e sistemático que afirma com naturalidade e consistência a razão de ser dos novos termos e oculta os interesses dominantes aos quais servem na medida em que tudo parece não passar de mais uma maneira de descrever a realidade.
O que está em jogo, portanto, não é uma simples forma de definir aspectos do cotidiano e sim de usar determinadas expressões para construir uma compreensão que permita adequar as estruturas mentais (através das quais a sociedade é pensada e conhecida pela maioria) às mudanças produzidas na base econômica e alterar a postura dos indivíduos diante das contradições sociais. Aos poucos, o que incomodava a elite é apagado por termos que aparentam identificar de forma mais clara e abrangente os fenômenos sociais e se instalam com naturalidade na linguagem do dia-a-dia até que os acontecimentos rompam o encanto e introduzam a necessidade de palavras em torno dos quais se moldam novos sentidos, símbolos e interpretações”.
- “E... como é que os humanos conseguem visualizar o que a sabedoria das corujas acaba de apresentar?”, pedem os lábios ao sugerir ironicamente a necessidade de passar da teoria às formas nas quais se concretiza.
Imperturbável, Nádia sorri e, sem alterar o tom de voz, responde:
- “Entre os exemplos que podemos dar, escolhemos três que, em graus diferentes, já penetraram no senso comum, alteraram a percepção da realidade e produziram respostas que melhor se adequam ao que os grupos no poder precisam moldar para fortalecer a sua ordem.
A primeira palavra a desaparecer das intervenções da mídia é a tristeza. Em nossos dias, ninguém mais se sente triste e sim deprimido.
Quando analisamos esta mudança no campo da medicina, verificamos que há uma alteração nos parâmetros que definem a depressão. De acordo com o 3º Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, são nove os sintomas que apontam a sua presença:
1. Humor deprimido;
2. Diminuição do interesse ou do prazer nas atividades cotidianas;
3. Ganho/perda de peso ou alterações no apetite;
4. Insônia ou excesso de sono;
5. Agitação ou retardamento psicomotores;
6. Fadiga ou perda de energia;
7. Sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva ou descabida;
8. Diminuição da capacidade de pensar ou de se concentrar, indecisão;
9. Pensamentos recorrentes de morte, ideação suicida ou tentativa de suicídio.

À exceção dos casos de luto, o manual considera deprimidas as pessoas que apresentam cinco dos nove sintomas por mais de duas semanas. O problema desta definição está no fato de que, salvo raras exceções, humor deprimido, perda de interesse nas atividades cotidianas, insônia, diminuição do apetite e incapacidade de concentração podem ocorrer na ausência de qualquer transtorno depressivo e em reação a um variado grupo de acontecimentos negativos. Basta pensar, por exemplo, na perda do emprego, no fim de um relacionamento duradouro, na descoberta de uma doença grave, na humilhação causada pela revelação de um comportamento vergonhoso ou na negação de uma promoção dada como certa.
Via de regra, a tristeza intensa produzida pela gravidade de uma destas experiências tende a ser superada quando o sujeito constrói ou encontra uma alternativa satisfatória: um novo emprego, um procedimento médico promissor, a adesão a um processo de profissionalização, uma pessoa atraente e assim por diante. Portanto, estamos falando de casos que, provavelmente, levarão mais de duas semanas e cujo desfecho costuma trilhar caminhos tortuosos e imprevisíveis.
Embora a depressão tenha sido observada desde os primeiros registros da história da medicina, a recente explosão de diagnósticos tem como base fundamental a orientação do Manual que, por sua vez, deixa cair em segundo plano a divisão clássica entre a tristeza com causa, fruto da experiência de perda ou de circunstâncias dolorosas, e a tristeza sem causa, quando os sintomas relatados aparecem e perduram sem que haja um evento desencadeador ou quando há uma desproporção entre os efeitos no sujeito e os acontecimentos reais.
Os próprios médicos reconhecem que, em grande medida, a onipresença da depressão se deve à confusão entre a tristeza normal, resultado de muitos fatores sociais, e a depressão, ou seja, a tristeza como doença. Ninguém nega que acontecimentos externos possam desencadear um transtorno depressivo que perdure mesmo quando os agentes causadores do estresse deixam de existir, mas isso requer uma análise pormenorizada e um acompanhamento prolongado dos profissionais da área para evitar que o paciente seja equivocadamente levado a se considerar doente e a se submeter a tratamentos desnecessários”.
- “Sendo assim, quem ganha e quem perde ao passar da tristeza à depressão?”.
- “Simples! Ao transformar estados de tristeza intensa em transtornos depressivos, o enfoque do Manual faz com que aumente fortemente o mercado potencial de antidepressivos. Não por acaso, as empresas farmacêuticas são as principais financiadoras das atividades de psiquiatria e dos grupos que defendem o benefício da medicação como tratamento de primeira linha dos sintomas que vão da tristeza comum aos transtornos depressivos. Esta postura não ganha apenas a legitimidade das orientações do manual como, em vários países, a medicalização do sofrimento psíquico é veiculada pela propaganda como caminho mais curto para diminuir a distância entre a situação do momento e a normalidade almejada.
Na medida em que os meios de comunicação reforçam a imagem de consumidores que desfrutam de estilos de vida desejáveis por usarem antidepressivos, as pessoas são levadas a ver no remédio a solução imediata para voltar ao alto astral, valorizado na sociedade contemporânea como elemento essencial para o sucesso. Por outro lado, ao definirem a si mesmas como vítimas de uma doença, muitos ganham uma explicação socialmente aceitável para seus problemas e uma justificativa que os livra da responsabilidade na produção da situação em que se encontram. O famoso me deixe em paz!, Não vê que estou doente?, procura escamotear qualquer cobrança e sustenta a busca de um culpado que oculte o papel do indivíduo no que desencadeou o transtorno depressivo. Estou me referindo, por exemplo, ao assédio moral, hoje muito comum nos locais de trabalho, e que só é possível quando o sujeito demonstra um elevado grau de submissão diante dos superiores. Neste âmbito, a medicalização da tristeza leva a não enfrentar a razão de ser da própria situação, mascara a realidade e não aumenta a capacidade de resistência das pessoas que passam por situações dolorosas”.
- “Também não dá pra negar que se, de um lado, o sujeito ganha uma boa desculpa, de outro, os conhecidos costumam se afastar dos deprimidos...”, questiona o ajudante ao coçar a cabeça.
- “Você tem razão. E, de fato, aqui está outro benefício que as elites extraem de uma mídia propensa a substituir tristeza por depressão na hora de descrever o humor de quem passou por um forte sofrimento. O psiquiatra australiano Aubrey Lewis foi o primeiro a propor que as reações apontadas pelo Manual como possíveis sintomas da depressão pudessem funcionar como uma espécie de pedido de socorro capaz de chamar à atenção dos que estão próximos e obter seu apóio no sentido de estimulá-los a trazer a pessoa de volta ao normal. Ou seja, a tristeza oriunda de acontecimentos estressantes convoca o coletivo a se transformar no âmbito onde o sofrimento pode ganhar a forma de um desabafo que ajuda o sujeito a ordenar e dar o justo valor aos aspectos do seu sofrer e em espaço no qual este mesmo sofrimento, ao ser pensado junto aos demais, ganha novos sentidos e estimula o portador a elevar sua capacidade de resistir às adversidades.
Um ouvido amigo que se coloca à disposição de maneira desinteressada ou alguém que oferece uma espécie de terceiro ombro para ajudar a vítima a suportar a carga que pesa sobre suas costas tendem a estimular posturas e ações que o grupo pode desenvolver desde que em seu meio haja um sentimento mínimo de coletividade. Por grande e doloroso que seja o evento que desencadeou a situação de tristeza profunda, a duração das reações por esta produzidas diminuirá à medida que o indivíduo receber a atenção do coletivo e este, por sua vez, ensejar ações que buscam responder ou ajudar a conviver mais serenamente com o drama vivenciado.
Ainda que nem sempre as pessoas se disponham a oferecer alguma ajuda, tenham preparo ou jeito para isso, é fato que a tristeza convoca a solidariedade. Mas, quando a depressão substitui a tristeza, temos exatamente o efeito contrário, pois o transtorno depressivo ainda costuma ser visto através das lentes do preconceito que envolve as doenças mentais. Este estigma leva à hostilidade, à rejeição, à perda do apoio social e, portanto, a uma reação mais demorada e sofrida diante da situação pela qual o sujeito está passando. Em seu isolamento, este tende a atribuir um significado mais negativo aos eventos que perturbaram sua normalidade e corre o risco de entrar num círculo vicioso que fortalece a impressão de estar num beco sem saída.
Aplique quanto analisamos a uma empresa, onde é comum que os funcionários sejam submetidos a fatores estressantes, e não terá dificuldades em perceber porque, ao não diferenciar tristeza e depressão, cresce o isolamento em que cada indivíduo se vê projetado e as pessoas são incapazes de pensar saídas coletivas numa luta por mudanças. Longe de procurar as causas nas relações de trabalho e estimular o sentimento de coletividade, o que é vivido por um colega é visto como algo próprio, fruto de uma fragilidade pessoal ou da incapacidade de lidar com o sofrimento, mas também como elemento que contagia negativamente o grupo, causa baixo astral, paira como ameaça sobre cada um e, de conseqüência, precisa ser exorcizado com o esquecimento, com o abandono, com o deixar que o sujeito se vire sozinho apesar de sua evidente incapacidade de dar a volta por cima.
Na medida em que a depressão afasta o grupo com o qual se convive, enfrentar o problema pessoal como manifestação individual das pressões exercidas sobre o trabalhador coletivo é algo bem mais difícil de ocorrer. O fim das situações estressantes que estão na origem dos problemas passa a ser entregue à hierarquia da empresa que, por sua vez, atuará sempre e somente com a preocupação de preservar a imagem pública da organização e a produtividade dos funcionários. A busca da qualidade de vida no trabalho, como elemento cuja violação desperta indignação e desejo de mudança, cede o lugar à submissão, à aceitação das diretrizes que serão implementadas e à resignação pura e simples diante da lógica da empresa.
Se a origem deste processo não pode ser diretamente atribuída ao papel da mídia, é inegável que os efeitos sociais oriundos da utilização do termo depressão para descrever qualquer estado de tristeza é de grande ajuda aos grupos no poder, interessados em bloquear sentimentos de coletividade que introduzam uma crítica real a suas posturas e interesses”.
- “E a segunda?”, pede o homem ao sinalizar que entendeu o recado da coruja.
- “Se você prestar atenção à linguagem dos meios de comunicação, vai perceber que a palavra susto é substituída por trauma em um número crescente de situações. Eventos que, até ontem, eram assustadores, são descritos como traumatizantes até nas conversas informais das pessoas.
À diferença do exemplo anterior, onde encontramos uma construção social que transforma a tristeza em depressão, podemos dizer que a utilização das palavras trauma, traumatizante e traumatizado funciona como uma espécie de cereja num bolo que vem ganhando forma nas duas últimas décadas.
De um lado, a exposição à violência e a leitura que a mídia faz da mesma levam o indivíduo a ficar mais ansioso, desconfiado e inseguro. De outro, a reestruturação produtiva, o aumento da precarização do trabalho e a visão da empregabilidade como problema estritamente pessoal criaram nas pessoas a sensação de estar se deparando com forças poderosas, incontroláveis e invencíveis. Diante delas, parece não haver outra possibilidade a não ser a de elevar a própria capacidade de adaptação num ambiente onde a incerteza, a vulnerabilidade e a impotência crescem na mesma proporção em que o sujeito se vê sozinho e sem uma identidade coletiva que lhe sirva de rede de proteção.
Para piorar o que já é difícil, a própria relação doença-trabalho muda de figura. O prevalecer de acidentes e doenças típicas da profissão cede lugar à predominância de adoecimentos atípicos. Trocado em miúdos, podemos dizer que, atualmente, a saúde dos trabalhadores parece estar sendo consumida mais a partir do interior do próprio corpo do que pelos agentes químicos ou físicos que trinta anos atrás caracterizavam a maior parte dos afastamentos por doença. Os distúrbios psíquicos originados pelo trabalho fazem com que o desgaste pareça mais subjetivo, próprio de uma fragilidade pessoal e não a manifestação individual de um problema coletivo. A soma destes elementos produz no indivíduo a clara sensação de estar sempre na corda bamba e em constante situação de risco.
A tendência que se estabelece como dominante não é a de as pessoas se prepararem para correr um risco, ou seja, para fazerem escolhas que permitam nadar contra a correnteza, enfrentar com a espada o que o escudo das próprias formas de defesa não consegue conter. Neste caso, estaríamos diante de alguém que, com suas ações, busca relações que permitem mudar as circunstâncias e obter resultados positivos para si mesmo e os demais, apesar das incertezas que envolvem sua decisão. Longe disso, a sensação de estar permanentemente em situação de risco leva as pessoas a um papel passivo e dependente que só se torna ativo no sentido da defesa e da proteção de si mesmo, ou seja, de tudo o que, por solitário, isolado, paliativo, limitado e ilógico que seja, ajuda a diminuir a ansiedade, a insegurança e a percepção da própria vulnerabilidade.
Do auto-engano, fruto do pensamento mágico próprio do senso comum, ao famoso jeitinho, nada desfaz a sensação de impotência e passividade de quem se sente vítima das circunstâncias. Aos poucos, o sujeito que poderia agir sobre a realidade para mudá-la, transforma-se em objeto que sofre a ação desta sobre a própria vida. A sensação de vulnerabilidade leva o indivíduo a acreditar que tudo o que pode fazer é tentar se proteger quanto basta para não dar sopa ao azar”.
- “Minha Nossa! Mas será que estamos todos tão assustados assim?”, indaga o homem ao cortar sem cerimônias o relato da coruja.
- “O fato, meu caro secretário, é que a sensação de vulnerabilidade é subjetiva, assim como a percepção da gravidade do risco. Focado em si mesmo e vivenciando relações que excluem o outro do âmbito de suas preocupações, o indivíduo não vê que sua fragilidade cresce na medida em que está sempre sozinho na hora de enfrentar o que só pode ganhar uma resposta consistente num coletivo. Sem um diálogo com os demais para dar sentido ao sofrimento e alterar as expectativas negativas oriundas da sensação de impotência, a avaliação do risco pelo sujeito depende apenas do seu julgamento pessoal e do medo vivenciado no contato com as incertezas. A consciência do risco, no lugar de estimular e aprimorar os cuidados a serem tomados na luta para eliminá-lo, torna-se um elemento que paralisa o indivíduo na exata medida da percepção de sua vulnerabilidade.
O povo costuma justificar a inanição assim produzida com o ditado pelo qual a corda arrebenta sempre do lado mais fraco. Tido como sábio, este provérbio oculta a realidade ao mostrá-la. A fragilidade do indivíduo ganha relevância à medida que ele passa longe de uma ação ou identidade coletiva capaz de devolver-lhe o papel de protagonista, ou seja, a possibilidade de correr riscos ao construir as condições para mudar a história. Ao centrar-se sobre si mesmo, o sujeito vivencia os limites e a inviabilidade de sua ação. Como graveto separado dos demais, não percebe que só ganha força no feixe de sua classe e não na visibilidade individual proposta pelas elites”.
- “E, qual é a relação disso com a idéia de trauma?”.
- “Você deve estar lembrado que, ao introduzir a substituição de susto por trauma, dizia que servia como cereja no bolo. Quando a sensação de viver em constante situação de risco leva a assumir uma postura de passividade que deixa campo aberto aos interesses dominantes, receber eventos adversos como fonte de trauma não só aumenta a percepção da própria impotência como joga uma pá de cal na simples hipótese de enfrentar os riscos. Passar de assustado a traumatizado como termo que delata a vulnerabilidade experimentada nas adversidades traz em si a imagem de ser dominado por uma força que aniquila e impede de agir. E como as possibilidades de risco são infinitas, estão por toda parte, pairam no ar como um destino cruel, inevitável e traumatizante (a ponto de ser difícil imaginar um aspecto da vida coletiva que não seja potencialmente arriscado), a experiência do medo cresce na mesma proporção do encolhimento e da passividade das pessoas.
Quando a idéia de trauma atua sobre um sujeito acuado, é reproduzida nas relações informais e reafirmada pela mídia, alimenta-se no imaginário coletivo uma percepção fatalista e perturbadora da realidade que faz crescer a sensação de desamparo e amplifica o medo que dominava a experiência social do indivíduo. Viver como trauma as manifestações da que é percebida como situação de risco faz com que o portador do senso comum não teste os limites da realidade, mas apenas recue diante deles tornando-se avesso a mudanças ou atitudes que aumentem sua ansiedade e insegurança.
Aos poucos, a submissão e a servidão voluntária tornam-se o único caminho para evitar mais razões de sofrimento e possíveis traumas. O processo que não leva o indivíduo a enfrentar o medo é perigoso não só porque faz com que se encolha diante da realidade, mas, sobretudo, porque transforma a covardia em coragem ao apontar como façanha pessoal e motivo de auto-estima a capacidade de se sujeitar a situações que proporcionam a destruição do indivíduo enquanto ser humano. A porta para o trauma propriamente dito, ou seja, para a situação em que caem todas as máscaras e o sujeito descobre que chegou no fim da linha, é aberta pela convicção de que o indivíduo se valoriza até numa dinâmica que o destrói.
Atingido este ponto, a idéia de ser autor da vida coletiva não tem a menor chance de se sustentar e, ao fugir da participação como o diabo da cruz, as pessoas buscam freneticamente expressões e situações que as absolvam das responsabilidades de sua omissão. O problema é que, ao fazer isso, as relações com os demais se desgastam, o isolamento cresce, a sensação de estar sozinho diante de um mundo perigoso ganha feições cada vez mais paralisantes. O medo torna-se chave de leitura e critério de interpretação do cotidiano a ponto de justificar qualquer dificuldade como possível fonte de trauma e, portanto, como razão que explica uma maior necessidade de adaptação, ausência de reação e resignação.
Quem ganha com isso? Ora, a elite que assiste de camarote o excelente espetáculo de uma imensa maioria que se percebe como fraca, assustada, enfim, tão incapaz de resistir quanto o boi que dobra o pescoço diante da canga por não ter consciência da força que tem”.
- “Sendo assim, a marginalização e as contradições que emergem da realidade aumentam e podem transformar o boi manso em bravo...”, sugere o ajudante em tom esperançoso.
- “De fato, esta é uma possibilidade sempre aberta – admite a coruja ao acompanhar as palavras com um gesto da asa. O problema é que sua concretização depende justamente da leitura que o boi faz de sua situação e da capacidade do dono alimentar sua submissão. É assim, por exemplo, que a mágica da terceira palavra usada pela mídia para esconder o que mostra já é repetida à exaustão até pela quase totalidade das organizações sociais. Estou me referindo à exclusão social.
Antes de seu aparecimento, o termo usado para descrever realidades de pobreza e injustiça era marginalização, ou seja, a situação de quem é colocado à margem da riqueza que produz, tem sérias dificuldades para atender necessidades básicas ou está numa posição tão desfavorável que não serve nem para ser explorado. Para reverter definitivamente as relações que criam esta situação, não basta nenhuma medida paliativa ou de suposta igualdade de tratamento, pois o simples fato de tratar de forma igual pessoas em situações econômica e socialmente diferentes não diminui e sim aumenta a desigualdade e a marginalização. E tem mais. O caminho que leva a pôr fim a este processo passa, necessariamente, pela construção de uma ordem na qual se pede a cada um de acordo com suas possibilidades e se retribui o esforço despendido conforme suas necessidades. Isso exige uma profunda mudança nas relações de propriedade, de produção e apropriação da riqueza, mas é o único que leva a humanidade a superar as contradições atuais.
Como já deve ter percebido, o problema desta posição é que ela implica na destruição dos mecanismos que geram a riqueza de poucos e que, por sua vez, são os mesmos que produzem a miséria de muitos. De conseqüência, não é de estranhar que uma das preocupações centrais da elite seja a de impedir que isso aconteça. Daí a necessidade de justificar diariamente que a posição social alcançada é fruto do esforço pessoal, do saber aproveitar as oportunidades, da herança familiar e da sorte. Estes elementos levam as pessoas simples a considerarem as relações de produção como algo natural, que sempre existiu e sempre existirá, a se conformarem com a própria situação, a se culparem pelos fracassos e até mesmo a acreditarem que não teriam como sobreviver se os patrões não existissem.
Nas duas últimas décadas, o sentido atribuído pela mídia à palavra exclusão tem sido ampliado e mudado para fechar o campo ao que soava como impedimento definitivo à própria justiça social e impossibilidade de o sistema capitalista vir a proporcionar o bem comum. No debate das idéias que se instala diante dos efeitos nefastos das políticas neoliberais, um pequeno grupo de intelectuais utiliza a exclusão como termo para colocar o dedo nas feridas incuráveis do capitalismo, ou seja, para apontar o fim das ilusões pelas quais as desigualdades seriam passageiras e passíveis de serem resolvidas graças às possibilidades oferecidas pela globalização e pela modernidade. Em outras palavras, para este pequeno grupo de autores, falar de exclusão é sinônimo de colocar o sistema no banco dos réus, desmascará-lo quanto às suas verdadeiras possibilidades de levar ao bem comum e condená-lo à pena capital no exato momento em que sua forma neoliberal prometia um futuro róseo para todos”,
- “Isso que é um golpe bem dado!”, comenta o ajudante em tom de comemoração.
- “Seria, mas o fato é que durou pouco demais – rebate a ave ao conter o entusiasmo fácil e devolver a palavra à razão. Tanto a intelectualidade a serviço da ordem, como a mídia que lhe faz de alto-falante, se apressam em redesenhar o sentido da exclusão a ponto de fazer desaparecer as relações de exploração de qualquer análise a ser veiculada e dirigir as atenções aos elementos que dependem apenas da atuação do indivíduo.
Nesta passagem, os meios de comunicação não ignoram apenas as relações de exploração que estão na base da marginalização social, mas apontam como excluídas aquelas pessoas que não têm acesso às oportunidades oferecidas pelo sistema por sua origem familiar, não aplicação nos estudos, limites físicos ou intelectuais, tipo de emprego com o qual ganham a vida ou qualquer outro vínculo entre miséria e deficiência que sublinhe a responsabilidade individual. Sob esta ótica, sejam eles migrantes clandestinos, favelados, desempregados, catadores, meninos a serviço do tráfico, pobres, mendigos, moradores de rua, etc., os excluídos não seriam vítimas das relações sociais presentes no cotidiano da história. Sua situação teria como base a ausência de atitudes positivas no seio da família, da escola ou da comunidade, razão pela qual a auto-estima e a busca de auto-realização do indivíduo teriam sido fragilizadas a ponto de impossibilitar qualquer chance de vencer na vida. A exclusão como expressão do agravamento da marginalização e condenação irremediável dos excluídos pelo sistema é substituída por uma compreensão na qual desaparece a realidade material e a auto-estima do sujeito desempenha um papel determinante.
Consolidada esta visão, a elite mata vários coelhos com uma paulada só. De um lado, a banalização da injustiça social ganha um forte aliado e impede que as pessoas se dêem conta de que as realidades assim produzidas são o fruto do coração pulsante da exploração e das leis de mercado. Este pilar permite sustentar generosas margens de lucro via precarização das relações de trabalho, algo que, no Brasil, de acordo com o Censo de 2010 realizado pelo IBGE, condena cerca metade dos 101,8 milhões de brasileiros e brasileiras que vivem do trabalho a se virarem com uma renda pessoal de até R$ 375,00, num ano em que o salário mínimo oficial era de R$ 510,00. De outro, ao atribuir aos excluídos uma permanente incapacidade de discernimento e atuação diante das oportunidades, a elite começa a projetar políticas que, mesmo não passando de soluções paliativas, aparentam colocar um ponto final à exclusão.
Se você é um excluído que nunca teve acesso à informática e, justamente por isso, viu encolher as chances de um emprego melhor, nós, empresários, em organizações ou através do Estado, estamos prontos a oferecer um programa de inclusão digital capaz de abrir as portas que sua falta de sorte, de jeito, de atitude, enfim, de acreditar em você mesmo, fechou no passado. Ao focalizar nas características individuais a razão de ser da exclusão, a atuação da elite deixa de ser apontada como causa primordial desta situação para ser vista como resolvedora do problema.
Ao definir como e em que condições se dá a inclusão, o resultado final é o aumento da confiança dos excluídos nas possibilidades oferecidas pelo sistema, a disciplinarização dos mesmos na lógica e nas exigências do mercado, a redução das possibilidades de conflito social na medida em que os incluídos são mais propensos a se adequar ao funcionamento da ordem e a alardear esta possibilidade entre os pares. Tudo num contexto que permite manter e ampliar as desigualdades em clima de paz, harmonia, cooperação de classe e criminalização de quem questiona a ordem.
Com os marginalizados enveredando por este caminho, torna-se mais difícil debater com a sociedade o caráter precário e enganoso da inclusão proporcionada pela elite. Acrescente o fato de que é neste sistema econômico que a distribuição de migalhas maiores da riqueza nacional e uma melhor administração da pobreza vêm possibilitando aos marginalizados de ontem uma lambida do lado mais cumprido da rapadura e não estranhará a ausência de reações significativas. E não só isso, pois, os excluídos recém-incluídos expressam sentimentos de gratidão e defendem as mesmas relações que, ao condená-los a uma situação de carência assistida, prometem novos estágios de inclusão a uma parcela reduzida de seu meio”.
- “E agora?!?”, pergunta o secretário entre a perplexidade e o desconcerto.
Imperturbável, a coruja recosta o corpo na pilha de livros, suspira e diz:
- “Não há como negar que a elite brasileira esteja sendo hábil em dirigir o trabalho da mídia para mostrar o que a favorece e esconder o que a condena. Em momento algum, porém, o time que está perdendo pode apontar a competência do adversário como causa de suas derrotas.
O caminho a ser percorrido pela classe trabalhadora, portanto, começa por avaliar criteriosamente sua forma de se comunicar com os debaixo, os espaços que está deixando de ocupar no debate das idéias e os elementos que precisam ser incorporados em seu diálogo com as maiorias que apresentam características diferentes das encontrávamos no passado.
Aprender a se comunicar pode não ser tudo o que podemos fazer neste momento, mas é um passo essencial para começar a sair do atoleiro. Por isso, no lugar de uma conclusão destinada a resumir as linhas principais deste estudo, faremos do último capítulo um momento em que, ao repensar possibilidades de contato, procuramos renovar...”


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