http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/10/1358065-o-cidadao-tem-direito-a-nao-querer-ser-biografado-diz-chico-buarque.shtml
LUCAS NEVES
COLABORAÇÃO PARA A
FOLHA, EM PARIS
O cantor e compositor Chico Buarque ensaiou nesta quinta-feira (17), em entrevista à
Folha
em Paris, um mea-culpa em relação a seu apoio à necessidade de
autorização prévia de figuras célebres ou dos herdeiros destas para a
comercialização de biografias. Mas voltou a defender "que o cidadão tem o
direito de não querer ser biografado".
"Posso até não estar muito bem informado sobre as leis e posso ter me
precipitado [...] repito: posso ter me enganado [...]se a lei está
errada, se eu estou errado, tudo bem, perdi", disse ele, ao ser abordado
pela reportagem na entrada do prédio da Île Saint-Louis, um dos
endereços mais nobres da capital francesa, onde escreve seu novo livro.
"Entendo que alguns artistas, algum cidadão, algum ator queira preservar
a sua intimidade. Não acho que isso seja uma aberração. Acho que é um
direito [...] São problemas que não são levados pelo artista ao público,
[questões] com que ele toma o maior cuidado. Não transforma isso em
música, não escreve a respeito, quer preservar para si. Acho
respeitável", completou o músico.
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Daryan Dorneles/Divulgação |
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O cantor e compositor Chico Buarque |
A manutenção desse imperativo de anuência (ancorado em brecha do Código
Civil brasileiro) é a principal bandeira do Procure Saber, grupo que
reúne, além de Chico, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto Carlos,
Milton Nascimento, Erasmo Carlos e Djavan, com a empresária e ex-mulher
de Caetano, Paula Lavigne, como porta-voz.
Os músicos têm por antagonista a Associação Nacional dos Editores de
Livros (Anel), que move desde 2012 no Supremo Tribunal Federal (STF) uma
Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a obrigatoriedade do
consentimento dos biografados. A corte deve realizar em novembro
audiência pública para discutir o tema.
Depois de Chico quebrar o silêncio e publicar artigo no jornal "O Globo"
na quarta-feira (16) defendendo o direito à privacidade de Roberto
Carlos, que conseguiu banir livro a seu respeito em 2007, a reportagem
foi procurá-lo para pedir detalhes sobre o alinhamento do compositor à
agenda do Procure Saber. Esperou nos arredores do prédio dele por quase
oito horas no primeiro dia, em vão. Mais tarde, o assessor do músico
diria, por e-mail, que ele havia decidido não dar entrevistas, "pois o
assunto já o distraiu bastante do processo de criação do novo livro".
A reportagem, no entanto, decidiu perseverar na vigília, talvez se
aferrando ao sofisma costurado por Chico e Ruy Guerra à letra de
"Bárbara": "Nunca é tarde, nunca é demais". Voltou, pois, ao posto de
sentinela no dia seguinte. Passaram por ali turistas severamente não
francófonos pedindo informações sobre a localização da vizinha
Notre-Dame e um ou outro interessado nas pechinchas da também vizinha
imobiliária (com destaque para o apartamento de 70 m² na Ile ela mesma,
em edifício do século 18, a R$ 2,95 milhões).
Até que Chico apareceu a metros do portão de entrada de seu edifício,
passo apressado, edição do "Le Monde" sob a axila, óculos de lente
fosca. Só respondeu à reportagem ao terceiro "Chico!". Resistiu de
início, dizendo já ter se pronunciado por intermédio do artigo. Mas
acabou falando por quase oito minutos.
Leia abaixo a entrevista.
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Folha - Por que aderiu ao grupo Procure Saber?
Chico Buarque - Posso até não estar muito bem informado sobre as
leis e posso ter me precipitado, mas eu acho e continuo achando, que o
cidadão tem o direito de não querer ser biografado, como tem o direito
de não querer ser fotografado ou filmado. Me pareceu natural isso.
Parece que não. Parece que essa ideia já está perdendo [espaço] na
mídia, por interesses ou não por interesses, e está correndo o risco de
não vingar na Justiça.
Agora, o que tem que ficar claro é que nós não começamos esse movimento.
O movimento para modificar a lei partiu da Associação Nacional de
Editores.
O que a gente pretendia era deixar as coisas como estão, no sentido de
se poder preservar a privacidade de qualquer cidadão, não me refiro
[necessariamente] a artista... agora, essa é uma discussão que é até bom
que seja levada adiante, mas não nos termos em que as coisas estão
acontecendo. Já virou uma batalha num nível muito pessoal --e desigual.
Não adianta querer dizer que os artistas são famosos, são isso, são
aquilo. Nós somos pequenos nessa briga. Repito: posso ter me enganado.
Eu julgava que eu estava tendo uma posição sensata.
Não é natural que se o público tenha curiosidade em saber mais sobre
figuras que admira, e isso inclua episódios de diferentes naturezas,
tanto favorável quanto desfavorável, para que se chegue a uma visão
completa?
A mim, me pareceu --não falo nem por interesse pessoal. Quem tem
interesse nisso são mais as editoras. Eu não tenho problema quanto a
isso.
Entendo que alguns artistas, algum cidadão, algum ator queira preservar a
sua intimidade. Não acho que isso seja uma aberração. Acho que é um
direito.
Me pareceu [ênfase] que era um direito. E parece que não. Então tá bom: então vai se criar um outro tipo de situação.
As biografias serão automaticamente liberadas, e os biografados poderão
recorrer à Justiça para receber uma indenização que parece que não é
significativa. Ou, quem sabe, para até retirar o livro de circulação.
Paulo César de Araújo sugeriu que a sua filiação ao Procure Saber, ao
pleito apresentado por Roberto Carlos [pela autorização prévia para
biografias], teria sido uma moeda de troca ao apoio deste à agenda
pró-fiscalização do Ecad que vocês três defendem. Houve esse acordo?
Isso é uma ilação dele. Eu, em relação ao Roberto Carlos, e ao que eu
achava que era o direito do Roberto Carlos de preservar a sua vida
pessoal, aspectos da sua vida que ele não queira... antes de se falar em
Ecad, em Procure Saber, eu sempre tive essa opinião. Achava que ele
tava certo, sim, de se proteger. [ri] Se for levar isso ao extremo, o
sujeito é obrigado a deixar invadirem sua casa, fazerem fotografias
[dele] de cueca, exporem sua mulher em trajes mínimos, sem poder
recorrer.
[No caso do Roberto] Ele pode não querer que se fale de um casamento, de
algum problema da infância. São problemas que não são levados pelo
artista ao público, que ele toma o maior cuidado,quer preservar para si.
Acho respeitável. Agora, se a lei tá errada, se eu tô errado, tudo bem.
Perdi.
Como encara as críticas de quem vê incoerência histórica no fato de
você, Caetano Veloso e Gilberto Gil terem sido perseguidos e censurados
durante a ditadura e agora adotarem uma postura que alguns entendem como
defesa da censura?
Dizer que é censura realmente é um pouco pesado. Parece que na lei há
esse conflito entre a liberdade de expressão, que é justa e louvável, e o
direito à privacidade. São duas coisas que entram em conflito, e é isso
que tem de se resolver na lei. Parece que a lei é ambígua --é a
informação que eu tenho. Também não estou muuuiiito por dentro da
legislação, posso dizer aqui algum despropósito. São as informações que
tenho. Estou me baseando nelas e na minha intuição pessoal.
O Procure Saber também faz lobby pelo pagamento de royalties aos
biografados ou a seus herdeiros. Em nota, Djavan disse que "editores e
biógrafos ganham fortunas enquanto aos biografados resta o ônus do
sofrimento e da indignação". O grupo de fato acha que, no Brasil,
escritores enriquecem com suas obras?
Não acredito que seja esse o problema central. Não acredito que a
reparação financeira resolva tudo, não acredito que o Roberto Carlos
queira reparação financeira. Não é disso que se trata. Não se falou de
dinheiro em reunião nenhuma [dos integrantes do Procure Saber], que eu
me lembre. Cada um pode ter sua posição. Eu não acho que seja o momento
de levantar essa questão.
Colaboraram MATHEUS MAGENTA e JULIANA GRAGNANI, de São Paulo