quinta-feira, dezembro 03, 2009

O consumo excede "a" ou "à" capacidade?

PASQUALE CIPRO NETO

O uso do acento grave nadatem que ver com ortografia,
portanto não poderia mesmo ter sido alvo do "(Des)Acordo"

EM QUASE TODAS AS PALESTRAS que proferi Brasil afora, neste ano e no último trimestre do ano passado, para tratar do "(Des)Acordo Ortográfico", muita gente me perguntou sobre o acento indicador de crase. As duas perguntas mais comuns foram as seguintes: "Houve alguma alteração no uso da crase?"; "Esse pessoal não podia ter aproveitado e eliminado também a crase?".

Antes de ir ao ponto, convém repetir: por enquanto e talvez para sempre, o nome correto desse mostrengo é "Reforma Ortográfica Brasileira", já que nenhum dos outros sete países lusófonos colocou em vigor as lambanças perpetradas pelo nefasto "(Des)Acordo Ortográfico".

Posto isso, vamos às "respostas" às perguntas feitas nas palestras: não para a primeira e não para a segunda. E por quê? Porque o emprego do acento grave (acento indicador de crase) não é mera questão orto/gráfica. Esse acento indica a ocorrência da crase, que, como se sabe (ou se deveria saber -a escola nem sempre explica isso), é a fusão de duas vogais iguais numa só, fato que ocorre não apenas entre a preposição "a" e outro "a" (em "Vou à festa", por exemplo), mas também na evolução de uma palavra do latim para o português.

Exemplificando a última informação: houve crase em "crer" e "dor", já que, na evolução do latim para o português, "dolor" passou a "door" e depois a "dor", e "credere" passou a "creer" e depois a "crer".

No português atual, o acento grave ficou restrito à indicação da fusão da preposição "a" com um segundo "a" (artigo, pronome demonstrativo, letra inicial de "aquele/s", "aquela/s", "aquilo" etc.).A pura e simples eliminação do acento grave em casos como o de "à/a espera de", por exemplo, tornaria inviável a definição do sentido de certas construções, como a clássica "Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver a/à espera de viver ao lado teu...".

Moral da história: o emprego do acento indicador de crase nada tem que ver com orto/grafia, portanto não poderia ter sido um dos objetivos do "(Des)Acordo". Nada mudou em relação ao acento.

Bem, por falar em crase, repasso ao leitor uma questão do último vestibular da FGV: "Assinale a alternativa que completa corretamente as lacunas das frases: 1) São pouquíssimas as empresas que se propõem -- fazer mudanças significativas"; 2) Os níveis de consumo excedem -- capacidade de regeneração..."; 3) Embora as empresas venham fazendo alusões -- palavra sustentabilidade...".

Pois bem, caro leitor. Não vou perder tempo com a chata combinação de opções das alternativas. Curto e grosso: como se preenchem as três lacunas? Na primeira, nada de "à", já que a palavra seguinte é um verbo. Como todos sabem, não há brasileiro que diga ou escreva "da pensar", "na estudar", "pela viajar" etc., ou seja, não há brasileiro que use artigo antes de verbo, portanto... Portanto "a".

Na terceira lacuna (sim, pulei a segunda), ocorre "à" ("...fazendo alusões à palavra sustentabilidade"). Esse "à" decorre da fusão da preposição "a", regida por "alusões", com o artigo "a", determinante do substantivo "palavra".

Na segunda frase, o bicho pega. Embora seja mais comum o uso de "exceder" como transitivo direto ("exceder o limite"), o "Houaiss" e o "Aurélio" registram (obviamente em decorrência do uso) esse verbo também como indireto ("exceder ao limite"). Moral da história: "Os níveis (...) excedem a (ou "à') capacidade de...". O pior é que as alternativas eram tais que havia duas respostas possíveis para a questão ("b" e "d"). E agora, FGV? É isso.

Nenhum comentário: