terça-feira, janeiro 01, 2008

Chagas abertas a ferro e fogo

Duílio Gomes Jornalista e escritor

Se cada crime bárbaro praticado no Brasil gerasse um livro, teríamos uma infindável biblioteca formada por testemunhos extremamente indignados. Um desses volumes seria O massacre , do escritor e tradutor paulista Eric Nepomuceno, o relato detalhado de um dos crimes mais hediondos praticados no país. Há 11 anos, em 17 de abril de 1996, a polícia militar do Pará - o mesmo Estado que destrói suas florestas e prende mulheres e menores em celas masculinas - assassinou, a sangue frio, 19 trabalhadores rurais em Eldorado do Carajás. Eric Nepomuceno revela que semelhante brutalidade só presenciou em El Salvador, quando cobriu a guerra civil daquele país da América Central, entre 1979 e 1983.

As chagas dessa barbárie ficam ainda mais expostas ao leitor nas fotos de Sebastião Salgado. Todas em preto e branco, elas promovem uma parceria de impacto com o texto de Nepomuceno.

Durante o trabalho de armar e escrever este livro consultei uma enorme quantidade de material nas mais diferentes fontes - conta o autor. - Queria saber desde antecedentes até análises acadêmicas sobre a questão dos conflitos da terra no Brasil, além, é claro, de verificar material de imprensa.

54 horas de gravações

Inquéritos policiais, em torno de 20 mil páginas, o processo criminal em si, os dois julgamentos ( que deixaram os culpados impunes), reportagens, livros, relatórios, boletins e depoimentos - 54 horas de gravações - serviram de base para Nepomuceno compor as 214 páginas desse libelo capaz de sacudir os nervos dos mais insensíveis.

O autor adverte que não se deve usar palavras como "incidente", "choque" ou "confronto" para definir o que aconteceu entre a polícia militar e os trabalhadores rurais naquele 17 de abril na Curva do S.

-Aquilo foi uma carnificina brutal - desabafa o autor. - As fotos que ilustram os laudos periciais dos cadáveres são um primor de barbárie: corpos mutilados, cabeças destroçadas. Foi como se não bastasse disparar contra alguém desarmado: era preciso mais. Era preciso desafogar uma fúria descontrolada e estabelecer de uma vez e para sempre qual era a punição que iria além da morte.

Desde o início do livro, Eric Nepomuceno questiona as razões que levaram a polícia a promover o que ele mesmo chama de sanha desmedida contra os sem-terra e a frieza da autoridade maior que ordenou essa força policial a desobstruir a ferro e fogo uma estrada bloqueada por integrantes do MST do Pará que apenas reivindicavam um direito constitucional.

- Nas duas pontas ( quem mandou, quem executou) a dramática reedição de um hábito enraizado no que há de pior das tradições brasileiras: a justiça feita pelas próprias mãos, a mando e na defesa dos interesses de determinados grupos, e às margens da Justiça - sintetiza Nepomuceno, que também aponta, na base da tragédia, um vício antigo no país - a mistura do que é público e do que é privado. Uma polícia absolutamente despreparada e mal paga - um canal de entrada para a corrupção - defende, acima dos códigos, os interesses de fazendeiros, grileiros e comerciantes.

Papéis e títulos

Na imensidão do Pará coexistem conflitos exacerbados, crimes, violência desumana e impunidade. Ali a propriedade da terra está sempre em disputa porque tudo é meio confuso quando se trata de papéis e títulos. Os desmatamentos são feitos à luz do dia, sem temor da justiça. É quando florestas inteiras se transformam em pastos, carvoarias e plantações de soja. O trabalho escravo é regra geral, como provam estatísticas de instituições ligadas à Igreja e relatórios da OEA e dos sindicatos de trabalhadores rurais. No comando do batalhão de 155 policiais que assassinaram os trabalhadores rurais, o coronel Pantoja.

Por ser o comandante do 4º batalhão da PM do Pará - explica o autor - foi o chefe máximo da operação. Partiu dele a ordem dada ao major Oliveira: que só começasse a disparar depois de ouvir a tropa de Marabá atirando.

Um livro lúcido e corajoso, O massacre deve ser lido sem pressa. Mas com revolta.

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