Caso fizesse pelo menos a mais vaga noção de quem foi Gonçalves Dias, Lucélia teria concordado em gênero, número e grau com o bardo maranhense: a vida é combate.
Não se pode descrever de outra forma uma jornada diária que inclui 1) acordar às cinco e meia da manhã; 2) deixar os três filhos pequenos na creche do Centro Comunitário; 3) encarar uma viagem de ônibus de quase uma hora da Cidade Operária até o Calhau, passando por três Terminais de Integração, espremida dentro de uma sucata ambulante absurdamente lotada; 4) aturar, das oito até as cinco, uma dondoca cheia de caprichos e seus filhos prepotentes e arrogantes; 5) rever as crianças no começo da noite, moída, sem ânimo para brincar com os rebentos, cujo autor não teve a coragem de assumir a paternidade e abandonou os quatro à própria sorte.
Lucélia pertence à idéia comum que as classes mais favorecidas estabelecem a respeito de quem não teve a mesma sorte e acaba enfrentando as agruras descritas no parágrafo anterior: jovem negra, alfabetizada na marra, não chegou a concluir o segundo grau, não resistiu aos apelos da carne (sem a prevenção necessária), mãe solteira, sobrevivendo a duras penas dentro de um sistema que, afinal de contas e apesar dos pesares, jamais funcionará para todos.
Mas Lucélia não é tão estúpida quanto imaginam os comedores de caviar. Ela tem lá suas opiniões. Está certo que são pontos de vista “globalizados” – não dorme antes de ouvir o que William Bonner pensa de determinado assunto. É apaixonada pelo âncora. Disse certa vez a uma vizinha: “Se ele me conhecesse, essa Fátima ia dançar”. A vizinha riu e, sem piedade, declarou: “Se tu passasse na frente dele, ele ia era sair correndo, pensando que tu é algum extraterrestre”. Lucélia e sua interlocutora estavam a léguas de distância de se considerarem uma Larissa Riquelme. No entanto, sonhar não custa nada, não é verdade?
Lucélia também não pode perder sua novela das 8, que ultimamente vem passando às 9 e meia ou às 9 e 45. Quando é quarta-feira, então, ela fica uma arara. Porque o folhetim acaba ficando espremido entre as sábias palavras de São Bonner e a porcaria do futebol. Jamais entenderá porque tanta gente se mata correndo atrás de uma bola idiota. Por outro lado, acha aquele rapaz, o Kaká, e aquele outro, o Cristiano Ronaldo, pedaços de mau caminho.
No fim de semana passado, ela me ligou. Somos amigos faz tempo. Estava preocupada. Perguntei a razão. Ela me deu duas: 1) conheceu uma agenciadora; 2) foi convidada para trabalhar na campanha de um candidato a uma cadeira na Câmara Federal. Acredito que não preciso explicar muito a respeito da primeira. É o tipo de gente que quer ganhar dinheiro de qualquer forma e acaba empurrando as moças (ou mesmo meninas) para a mesma vala comum na qual está costumada a transitar.
Quanto ao candidato: não é um dos nomes mais recomendáveis. Pratica nepotismo a torto e a direito. É chegado num tráfico de influências. Foi um vereador que esqueceu suas bases lá no Coroadinho e se deixou seduzir pelo poder. Cansou de andar de Fusca – agora tem uma Hilux. Era vivo e morto em pagodes fundo de quintal – passou a freqüentar as casas noturnas da burguesia endinheirada.
“O que eu faço?”, me perguntou Lucélia, aflita. A resposta não é tão óbvia quanto parece. É muito fácil para mim e para você dizer a ela: “Entre dois males, escolha o melhor”. E o “melhor”, nesse caso, seria participar de bandeiraços, a fim de ajudar a eleger um canalha. Alguém que respira, come, dorme, acorda e fede a corrupção. Como eu já deixei bem claro, minha amiga tem lá suas opiniões. Pelo pouquíssimo que entende de política, sabe quem presta e quem não presta.
É claro que disse a ela o que pensava. Na qualidade de alguém que gosta de ver o diabo sair da garrafa, cogitei sem o ergo sum: “Você sempre pode optar pela prostituição”. E por que não?
Pelo menos, seria uma decisão mais sensata.
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