quinta-feira, julho 19, 2012

BOOKAHOLIC

Quando cheguei a “O Estado”, Deus me concedeu o privilégio e a grande felicidade de me tornar amigo do saudoso Raimundo Martins. Para quem não faz a menor ideia de quem eu possa estar falando, o profissional em questão atuava em duas frentes: era editor de capa deste jornal e tinha uma função bem relevante na TV Difusora. Tarefas que invariavelmente o tiravam de casa bem cedo pela manhã e faziam-no retornar à família lá pelas tantas da noite – quando não de madrugada.
Além de se mostrar diariamente devotado ao trabalho e à esposa e aos dois filhos, aqueles que conheceram Martins mesmo que superficialmente identificavam nele uma terceira faceta – a do bookaholic.
Nós tínhamos essa “competição”, por assim dizer: quando ele comprava um livro, acabava me incentivando a fazer o mesmo no dia seguinte. Lembro quando, há alguns anos, chegou às bancas mais uma coleção de obras-primas. Tomados em conjunto, os clássicos da literatura universal (“Moby Dick”, “O Morro dos Ventos Uivantes”, “Tom Jones”, entre outros) ocupam tranquilamente a prateleira de cima de qualquer estante – desde que se tenha a vaidade de exibir para uma eventual visita o gosto contumaz pela leitura.
Mas a grande verdade é que tanto o ato de ler quanto de escrever inevitavelmente – e de um jeito ou de outro – acabam atraindo a atenção. Ainda mais a que não desejamos de forma alguma.
Ao abrirmos um livro, já estamos divulgando ao mundo uma espécie de “diploma de intelectual”. Um atestado de que, num Maranhão (ou o Brasil de uma forma geral) com tantos analfabetos, o CDF é uma criatura diferente. O problema é que, de vez em quando, ser um indivíduo diferenciado atrai a curiosidade impertinente e, o que é pior, o preconceito.
Sempre ouvi que ler em ônibus é prejudicial à saúde da visão. Algo a ver com o deslocamento da retina, em razão das tantas sacolejadas do carro. Graças a Deus, nunca funcionou comigo. Porque, numa cidade como São Luís, que têm várias ruas parecidas com cenários de pós-guerra, muito provavelmente eu já teria ficado cego. E ainda há a questão do tempo que levo para chegar ao trabalho. Quem mora na Cidade Operária, Maiobão e adjacências sabe muito bem o que é passar entre 40 minutos e uma hora (naturalmente descontados os eventuais engarrafamentos) dentro de um coletivo que geralmente trafega pela Ilha para lá de abarrotado. Sem um livro ou qualquer forma de distração, não dá para aturar numa boa esse estresse.
Mas eu quero mesmo tratar é dos chatos que perturbam os bookaholics que estão sempre com um livro debaixo do braço e não se contêm em lê-los onde quer e com quem estejam. Nem com quem. Lembro agora de duas ocasiões. Na primeira, ligeiramente afundado no assento do ônibus no qual me encontrava, me vi perdido na trama mirabolante de “Ponto de impacto”, de Dan Brown, quando sentou-se ao meu lado um mala que muito me perturbou, do Terminal de Integração do São Cristóvão ao bairro do São Francisco comentando tudo quanto foi diacho de romance que disse ter lido creio eu desde a invenção da imprensa. Em condições normais de temperatura e pressão, a tagarelice dele seria até louvável porque abordava um assunto a respeito do qual arrogantemente me considero um especialista. O que jogou a sujeira no ventilador nesse caso foi a surpreendente anedota final do sujeito.
Depois de encher o saco falando e falando sobre tudo quanto foi peça de ficção que lhe caiu nas mãos, o indivíduo encarou-me com seriíssima gravidade e disse, quase em tom de confidência: “Pois é meu jovem. Li tudo o que me apareceu pela frente. E sabe o que foi que isso me rendeu?”. Não esperou minha resposta, que obviamente seria negativa: “Nada. Estou desempregado há dois anos e tenho dois periquitos pra dar de comer. Por isso, largue esse negócio de livro de mão e procura trabalhar, que é melhor”.
É isso aí, prezado Raimundo Martins: certos malas, só matando.

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