quinta-feira, dezembro 13, 2007

Um grito agudo pela democracia

Rodrigo de Almeida*

Numa realidade de inquietudes, desejos inalcançados, necessidades desassistidas e insatisfações não atendidas, reclamar não é sinal de descrença. É virtude. Mais ainda: dever. Eis que só um regime político - a democracia - permite isso, e parece, nessa permissão, produzir a própria confrontação. Daí o passo inevitável para o questionamento permanente da legitimidade democrática, ou de suas limitações, ou mesmo de suas supostas promessas não cumpridas. E a virtude se transforma em abalo, o dever vira descrédito, as conquistas ganham ares de indiferença. Há presente, portanto, o inevitável sentimento de um fazer incompleto. São as anomalias mal interpretadas da democracia.

Não fossem analistas argutos, certos mitos, equívocos e teses alternativas soariam como verdades inquestionáveis. E é contra isto que se volta em seu mais novo livro o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos. O paradoxo de Rousseau: uma interpretação democrática da vontade geral é uma reflexão profunda sobre a democracia, tema que o consagrou na ciência política quando, ao lançar Quem dará o golpe no Brasil, na década de 60, anteviu as nuances do golpe que se avizinhava.

Os tempos são outros, mas há riscos igualmente ameaçadores. Em tempos de pleno avanço democrático, o professor põe o dedo em riste frente ao que chama de "idéia sedutora e generosa" - a democracia direta. Plebiscitos e referendos exibem a virtude de tentar promover o encontro entre mandantes e mandatários, entre o público e as maiorias parlamentares. São instrumentos de ação política supostamente destinados a restaurar a participação popular, perdida em algum lugar dos corredores da democracia representativa.

Supostamente. No fim das contas, diz Wanderley Guilherme, "os profetas da participação integral são hoje os potenciais seqüestradores da liberdade amanhã". Pode talvez ser uma injustiça contra certos homens e mulheres de boa vontade que têm pregado a democracia direta como solução para os rombos exibidos na conta das instituições democráticas. Imagino, por exemplo, alguns nomes do já não mais tão noviço PSOL, ou mesmo alguns juristas respeitados, defensores da combinação entre democracia direta e representativa para dar vigor e legitimidade à vida política. São seqüestradores potenciais? Não creio.

Por outro lado, há de serem lembrados os fantasmas ditatoriais alimentados por um personagem como Hugo Chávez, que se imagina detentor de mandatos indefinidos por obra e graça dos mesmos plebiscitos e referendos. Para não dizer de aventureiros irresponsáveis que, sendo mais realeza do que o rei, sonham com um terceiro mandato do presidente Lula. Há de tudo, pois.

Wanderley Guilherme, no entanto, parece preocupado menos com os nomes - nem os cita, é bom sublinhar - e mais com os conceitos e seus resultados. O cientista político reconhece a existência de um déficit democrático, mas refuta a "terapia" proposta: a democracia direta. Radicalizar a democracia, lembra, pressupõe a preliminar desmoralização das instituições representativas ditas "100% traidoras" da vontade popular ou "irremediavelmente pervertidas". Seus mecanismos comprometeriam, segundo ele, a "operação falível, porquanto humana, das instituições democráticas". Melhor a falibilidade, portanto, do que a ameaça autocrática.

O livro dialoga com Rousseau para dizer que a democracia direta implica a falácia da vontade geral, que escapa ao necessário contraditório das discussões parlamentares. A vontade geral pode estar sempre certa, posto que busca o bem público, mas nem por isso o povo está impossibilitado de se enganar em relação ao objeto de sua vontade. O paradoxo de Rousseau explica: o que cada cidadão deseja como governo (redistribuição de renda, por exemplo) repudia como súdito (rejeita pagar mais impostos para prover melhores bens públicos ou desaprova ver sua renda diminuída em benefício de quem quer que seja). Ou seja, há especial tensão entre o "paradoxo de Rousseau" e o requisito da participação universal.

Num dos momentos mais densos do livro, Wanderley Guilherme formula o que denomina de "péssimo de Rousseau": nenhum integrante de uma sociedade pode melhorar de posição sem, simultaneamente, promover o interesse de terceiros. Com tal premissa, o interesse de todos pode ser atendido mesmo na ausência de participação universal. Está aí a recusa da unanimidade rousseauniana como critério exclusivo de decisões legítimas. Nem a unanimidade, nem o outro método de Rousseau, a soma algébrica de interesses, eliminam a primazia dos interesses particularistas. (Poderia soar, e talvez soe, como um alento para as reflexões clássicas, pré-partidárias, e mais ainda para nós, democratas contemporâneos, insatisfeitos com os resultados de uma democracia de aparência às vezes sólida, às vezes frágil).

Não faltam teses polêmicas. Como a recusa, para a democracia, do papel de promotora de igualdade econômica. Não lhe caberia, segundo Wanderley Guilherme, erradicar as desigualdades econômicas. Muitos pensaram que a restauração da democracia, já se vão mais de 20 anos, traria a amenização dos mais dolorosos traços de desigualdade de renda, educação, gênero, racial e regional - anomalias que, no Brasil, têm resistido a qualquer composição da elite. De Sarney a Lula. Imaginar a democracia assim, ele defende, significa conceder uma interpretação facciosa às instituições democráticas.

A questão fundamental, para Wanderley Guilherme, não é a ausência de participação popular, mas a elevada desconstitucionalização do país - evidenciada justamente pela crescente participação, que "põe a nu seqüestro de partes do território antes civilizado por pactos constitucionais". Universalizar a democratização constitucional, afirma, deve ser a demanda prioritária dos atuais democratas, uma vez que atingimos o grau de universalização eleitoral. A "longa marcha" democrática brasileira, diz o autor, com avanços e recuos, tem sido bem-sucedida. É na desconstitucionalização que estariam as razões para as insatisfações e, mais do que isso, os novos patamares a serem alcançados.

São dois pontos polêmicos porque constitucionalização e bom funcionamento das instituições democráticas andam em par. Ou melhor, devem andar em par porque de ambos depende o sucesso dos governos, de partidos políticos, dos Legislativos, das decisões enfim que conduzem a uma melhor oferta de bens públicos, do mesmo modo que o cumprimento pleno dos direitos constitucionais. Nesse sentido, chega-se a um ponto em que se poderia unir Wanderley Guilherme e os defensores da democracia direta: a constatação que o todo, ou partes desse todo, não vai bem.

Sejam nas "cartas democráticas sobre a vontade geral", seja na "teoria experimental da história" que elabora a partir do péssimo de Rousseau (estes dois eixos intercalados por espécies de ensaios mais livres, menos compromissados), Wanderley Guilherme exibe o habitual refinamento estilístico e teórico - o que significa leitura densa e inspiradora para nossas reflexões democráticas. Talvez exceda no ataque à democracia direta, deixando pouca margem para o que ela pode ser: algo conjugado à democracia representativa, inegavelmente, no caso brasileiro, abalada por práticas pouco republicanas. Em contrapartida, exibe o cientista político de formação filosófica, especialmente consciente das imperfeições do mundo ordinário.

* Jornalista e organizador do livro 'O Brasil tem jeito?'

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