quarta-feira, novembro 03, 2010

Um guia para ler Antonio Vieira

Livro reúne 1.178 verbetes que ajudam a
percorrer o caminho dos Sermões do padre português

Joselia Aguiar


Aos leitores de hoje, um Índice das coisas mais notáveis parecerá inusitado, mas era comum em edições de luxo na época em que Antonio Vieira (1608-1697) viveu e publicou os Sermões, obra-prima da língua portuguesa. Em cada um dos seus 15 volumes havia um glossário como esse, incluído como apêndice, que listava as frases mais relevantes, segundo a escolha do próprio pregador. Esquecidos havia tempo, os índices saem agora pela editora paulista Hedra em nova edição que os reúne num só volume.

A tarefa de descobrir seus nexos e organizá-los em verbetes coube a Alcir Pécora, um dos maiores especialistas no padre português. As 1.178 entradas levam a 8.364 abonações, ou seja, às frases que servem de exemplo, seguidas da indicação dos sermões onde são encontradas e dos outros termos a que estão associadas. Crítico literário, professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 1977, Pécora organizou diversas obras de Vieira, como os próprios Sermões, em dois volumes, que reúnem uma seleção de 50, lançados pela Hedra na última década. É autor também de estudos sobre o pregador, como Teatro do sacramento: a unidade teológico-retórico-política nos “Sermões” de Vieira (Edusp/Editora da Unicamp).

O livro serve, portanto, como grande mapa dos Sermões e também se sustenta como obra independente, pois grande parte das frases do Índice das coisas mais notáveis vale como aforismos. Ou seja, podem ser lidas sozinhas, “como formas breves, lapidares e fulminantes, que contêm em si um dito engenhoso, de alcance filosófico, prático e moral”, como as descreve Pécora. Os termos contêm, em geral, diversas ocorrências –“Deus”, “Cristo” e “Maria”, como se pode esperar, são os que possuem mais abonações.

A beleza das frases logo se revela: “Deus deu vida a Adão com um sopro, porque a vida do homem é vento” (verbete “Adão”); “Para as perdas que têm remédio, se fez a diligência: para as que não têm remédio, se fez a dor” (verbete “Diligência”); “Ninguém é nem pode ser feliz com a alma noutra parte (verbete “Felicidade”). Sua beleza, porém, não compete com a de um sermão quando se lê inteiro, ressalta o especialista. Se, por um lado, como diz Pécora, os Índices são o livro de máximas que o padre não se deu ao trabalho de escrever, “os verbetes são como andaimes, sistema de sinalizações, advertências e avisos de trânsito. Os sermões são o conjunto dos edifícios”. E o objetivo de Vieira “não é apenas produzir maravilha, mas fazer a maravilha trabalhar em favor de seu propósito, que era sempre edificante, em seu projeto de conversão universal”, diz. Não é muito fácil começar a usar o Índice, mas depois que se começa a ter familiaridade é “uma porta estupenda para a compreensão dos sermões”, acrescenta.

No tempo de Antonio Vieira, seu uso era frequente, explica Pécora. Para os seus colegas de ofício, aquelas páginas serviam como escola de pregar. Encontravam os principais temas e argumentos, as referências bíblicas e frases de impacto para ilustrá-los. Para os fiéis, a obra era importante por apresentar os temas fundamentais do aprendizado e da prática religiosa. Para o letrado, há o prazer imenso de ler frases definitivas sobre os grandes temas do período.

Roubo – A organização da obra consumiu 13 anos, e não é sem alívio que Alcir Pécora a conclui. Conta que, além de contingências como o roubo de dois notebooks, onde fizera a descrição de vários índices europeus, especialmente italianos do mesmo período, a maior dificuldade era lidar com a quantidade de dados envolvidos. O sistema de referências desses índices, com três editores diferentes dos Sermões, era diverso a cada volume. “Normalizar tudo isso, de maneira inteligível, foi uma saga, e eu jamais a cumpriria sozinho”, explica.

O desfecho da empreitada dependeu das ideias que teve Jorge Sallum, editor da Hedra, para resolver os problemas de remissão de maneira econômica e compreensível. Sallum diz que a solução foi organizar os índices como um banco de dados. “É algo que parece muito distante dos Sermões, mas que guarda semelhanças com a estrutura do texto, uma vez que o computador apenas organiza uma massa de informações, cuja ordem já está totalmente prevista pelo jesuíta”, afirma. Quando começou a operação, descobriu que várias das frases eram praticamente idênticas e que muitas se repetiam. Notou, assim, que havia uma ligação natural entre os verbetes, mais relacionada a sua redação do que ao emprego que os primeiros editores queriam que o texto tivesse. “Isso, mais a totalização de verbetes, foi uma descoberta para Alcir Pécora, que começou a trabalhar imediatamente nas suas hipóteses de leitura”, relembra Sallum.

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