quarta-feira, abril 27, 2011

O POETA E A CIDADE

“A vida é cheia de grandes injustiças”, anotou meu amigo Juliano em sua longa carta de despedida. “Um exemplo: José Chagas não ser considerado o mais importante de todos os poetas brasileiros. Quando digo isso, as pessoas olham para mim como se eu fosse um rematado idiota. É claro, o nome ‘Carlos Drummond de Andrade’ grudou-se feito carrapato no entendimento delas graças à decoreba colegial. Ainda bem que Deus me concedeu o dom do discernimento. Sei quem é muito bom e quem é espetacular. E entre estes, a meu ver, José Chagas é simplesmente hors concours.
Juliano está morto, agora. Daqui a algumas horas, estarei no Cemitério do Turu, para o sepultamento. Por enquanto, diante desta máquina de escrever (é, eu gosto de bancar o anacrônico, às vezes), vou escrevendo algo que pretende ser uma última homenagem a alguém que fez de um tudo para sobreviver dentro de um sistema que nunca funcionará de forma semelhante para todo mundo.
Ele cometeu suicídio. Eu estava no jornal quando Raquel, aos prantos, ligou para o meu celular. Aconteceu por volta das três da tarde – há quase 12 horas, portanto. Dirigi feito um louco até a casa dele, no Largo do Caroçudo. De agora em diante, todos os dias de Carnaval na Madre Deus serão quarta-feira de cinzas sempre que eu pensar no quanto Juliano era apaixonado pelo Bicho Terra, pelos Foliões e pela Máquina de Descascar’Alho.
A polícia ainda não havia chegado. Curiosos entravam e saíam da residência. Abraçada pelo namorado, Raquel dava a impressão de que passaria o resto da vida chorando. A reação me impressionou e ao mesmo tempo me deixou intrigado. O falecimento de sua própria mãe, dois meses antes, não a deixou tão abalada assim. O diabinho sentado em meu ombro direito me disse que nesse angu tinha caroço. Deixei quieto. Curiosidade tem hora.
Foi muito difícil chegar perto do corpo. Juliano encontrava-se deitado no chão, no centro exato da sala. Os pulsos e a garganta cortados. O estilete com que se matou jazia a sua direita, a lâmina coberta de sangue. Mesmo em seus últimos momentos, não largou um dos livros de seu grande ídolo literário: “Os canhões do silêncio”. Só no começo da noite encontrei a carta. Entrei no quarto dele em busca de razões para o ato extremo e vi as seis folhas de papel chamex.
“Assim que Paula e eu terminamos”, Juliano relatou, “caminhei um pouco pelo Cais da Sagração. Observei atentamente os navios fundeados e reconheci que São Luís é uma cidade tão abençoada por ter nascido de frente para o grande mar, que parece não ter fim. Mais abençoada ainda porque o bardo paraibano apaixonou-se por ela e a ela dedicou seus melhores versos. Diante de tanta poesia, eu queria não ficar tão triste”.
Não foi apenas o fim do namoro de cinco meses com uma garota volúvel e mesquinha. Foi também a dificuldade em arranjar um ótimo emprego; o alcoolismo reincidente de seu pai; o desejo que não tinha como realizar: construir tijolo por tijolo uma realidade na qual fosse o sujeito mais feliz do mundo.
Juliano prossegue: “Estas confissões são velhas como eu e minha angústia. Espero que o meu querido bardo não se incomode por causa dessa rápida paráfrase. Bem que eu tentei um dia produzir versos tão incríveis quanto os de ‘Os canhões do silêncio’. Mas até nisso eu fracassei. Mas no que eu estava pensando? A cidade já tem o seu poeta. Já o meu caso pode ser explicado pelo que eu não tenho mais: esperança”.
Dizem que as palavras tem uma estranha potência. As de Juliano me deixam muito abalado porque revelam uma desistência completa e, até certo ponto, totalmente absurda. Mas até aí esse meu raciocínio se deve a minha posição privilegiada, como um profissional de imprensa um tanto quanto bem-sucedido. Ou seja, não dá para julgar. Não dá para dizer: “Ah, isso nunca vai acontecer comigo”. Acho que a melhor homenagem que devo fazer a Juliano é ler os poemas de José Chagas e procurar enxergar – como fez meu pobre amigo – as inúmeras declarações do bardo a esta cidade. Que também é uma festa, sr. Hemingway.

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