terça-feira, julho 15, 2008

Os solitários de Coetzee

Silviano Santiago
Escritor e crítico literário

Se fosse concedido à literatura brasileira o direito de existência no mundo letrado ocidental, a melhor crítica do Diário de um ano ruim, de J. M. Coetzee, teria salientado o parentesco com o papel do romance machadiano em seu tempo. À semelhança de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), o último romance do premiado autor sul-africano, hoje naturalizado australiano, questiona a organização tradicional do livro de ficção. Cada página do Diário de um ano ruim está dividida, primeiro, em dois blocos paralelos e, a partir da página 33 até o final, em três blocos.
Cada um dos blocos é semi-autônomo, embora os três, conjuntamente, não se apresentem desprovidos de afinidades óbvias ou sutis, a serem desenvolvidas pela imaginação e a habilidade do leitor. Cada página e todo o livro são compostos como "unidade tripartida", para retomar a idéia trabalhada em escultura por Max Bill.
Na parte superior das páginas, em seqüência, temos 51 curtos ensaios filosófico-literários, na maioria das vezes de teor político. Eles versam sobre as pequenas e as graves questões universais que, durante o período que vai de setembro de 2005 a maio de 2006, esquentaram as mentes cidadãs e a mídia impressa e eletrônica. Dos filósofos Thomas Hobbes e Machiavel, que discorrem sobre o Estado moderno, o autor passa ao filme Sete samurais, de Kurosawa, e à anarquia, ao terrorismo e ao apartheid. Detém na vergonha nacional, obra consciente do presidente Bush e elogia o destemor de Harold Pinter na crítica à invasão do Iraque. Não se esquiva diante de questões superdelicadas, como as que cercam os aborígines australianos, ou a pedofilia (tema este recorrente em seus melhores romances, como O mestre de Petersburgo). Em tiradas e raciocínio que beiram o politicamente incorreto, as reflexões traduzem as idéias-de-cabeceira (se me permitem a expressão) do romancista experiente e premiado, já tomado pelos anos. O envelhecimento do autor, ou o novo empreendimento ficcional, é visto como "um esvaziamento da mente para assumir tarefas mais importantes".
A parte superior das páginas e do romance se apresenta como respostas do escritor à encomenda feita a ele – e a mais cinco outros escritores – por editora alemã, interessada em publicar livro a ser intitulado Opiniões fortes. Como se informa: "Seis escritores eminentes [estariam] se pronunciando sobre o que está errado no mundo de hoje". Na reflexão sobre Harold Pinter, detentor do Nobel, esclarece o autor: "E chega um momento em que o ultraje e a vergonha são tão grandes que todo calculismo, toda prudência, são superados e a pessoa precisa agir, isto é, falar".
Abaixo dos curtos ensaios e em pequenos blocos paralelos, encontra-se a trama propriamente romanesca do Diário de um ano ruim. Está escrita na primeira pessoa. No bloco do meio de cada página, o próprio autor fala do encontro inesperado com Anya, bela vizinha de condomínio. No momento, ela vive com Alan, um consultor na bolsa de valores de Sidney. Está armado o trio amoroso. O encontro casual com Anya despertou no escritor paixão incontrolável. Para tê-la ao lado, oferece-lhe a função de digitadora do livro que escreve para a Alemanha. O segundo segmento do romance se afirma pela fricção entre as idéias fortes do velho e a leitura do manuscrito pela jovem. Lê-se no segundo bloco: "O que começou a mudar desde que eu entrei na órbita de Anya não são tanto minhas opiniões em si, mas minha opinião sobre minhas opiniões".

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