segunda-feira, junho 10, 2013

A Copa no Brasil, ou o fim da alegria do povo

Por José Geraldo Couto


Brasil 1 x 2 Uruguai (final da Copa de 1950)
As Copas do Mundo de futebol costumam ter, sobre os países que as sediam, um efeito que transcende em muito as quatro linhas do campo de jogo.
Basta pensar no mundial de 1978, na Argentina, vencido meio na marra pelos anfitriões e usado para intensificar o poder de uma das ditaduras mais sangrentas da história. Ou na Copa de 1998 na França, um caso oposto, em que o triunfo da multiétnica seleção de Zidane, Thuram e Djorkaeff serviu para silenciar, ao menos momentaneamente, a vociferação racista e xenófoba de Jean-Marie Le Pen e seus sequazes.
Nos países em que o futebol está impregnado no dia a dia dos cidadãos, as copas catalisam sentimentos, medos, desejos e expectativas que configuram uma espécie de “espírito do tempo”. Qual é o “espírito do tempo” no (ou do) Brasil às vésperas do segundo mundial em seu território?
Não tenho a pretensão de responder aqui a essa complicadíssima questão, mas talvez um cotejamento sumário com o que ocorria no país na época da primeira copa aqui sediada lance alguma luz sobre o assunto.
Euforia e trauma
Todos estão cansados de ouvir falar do “trauma de 50”. A “derrota incomparável”, o “silêncio ensurdecedor do Maracanã”, o “complexo de vira-lata” tornaram-se clichês mais ou menos intercambiáveis, numa constelação de signos nefastos.
Mas se houve um baque espetacular, uma depressão profunda e generalizada, é porque havia antes uma grande esperança, convertida em euforia antecipada às vésperas da grande final. Vale a pena dar uma espiada no que ocorria no Brasil em 1950.
O país vinha se modernizando e urbanizando intensamente nas últimas décadas. Para se ter uma ideia, a população de São Paulo quase quadruplicou entre 1920 e 1950, saltando de 580 mil habitantes para 2,2 milhões. Terminada a guerra – e a ditadura do Estado Novo –, o sentimento geral era de otimismo. O Brasil era o país do futuro, e o futuro estava logo ali. A construção do estádio do Maracanã – “o maior do mundo” – sintetizava essa crença de que, finalmente, entraríamos de cabeça erguida no tal concerto das nações, nem que fosse tocando pandeiro e tamborim.
Embriaguez patriótica
O entusiasmo nacional era galvanizado em campo por um time de primeira linha, com craques como Zizinho, Ademir de Menezes e Jair da Rosa Pinto. Já tínhamos encantado a Europa na copa anterior, de 1938, e agora tudo apontava para um triunfo retumbante, prenunciado pelas vitórias categóricas nas primeiras rodadas. A embriaguez patriótica atraiu ao Maracanã 200 mil pessoas – pouco menos de um décimo da população carioca na época –, sem contar as que não conseguiram entrar no estádio superlotado. O desfecho todos conhecem.
Corta para 2013 e a Copa das Confederações, antessala da segunda Copa do Mundo em solo brasileiro. Nas seis décadas cobertas por esse salto vertiginoso, o Brasil conquistou cinco títulos mundiais e se consolidou como “país do futebol”, com uma excelência reconhecida internacionalmente só comparável à da nossa música popular. O binômio que José Miguel Wisnik chamou de “tecnologia de ponta do ócio”.
Mais que isso: em seus momentos altos, o futebol brasileiro foi visto como uma encarnação das nossas melhores potencialidades, um sonho de país que dá “aos pés astúcia de mão”, como diz o verso de João Cabral, um lugar em que se harmonizam a eficiência e a fantasia, a criatividade individual e a solidariedade coletiva, o trabalho e o prazer, a guerra e a festa. Uma revanche do sensual, mestiço e dionisíaco hemisfério sul (do globo e do corpo humano) contra a supremacia do norte apolíneo, branco, cerebral, disciplinado.
Ainda que resista como horizonte utópico, essa imagem hoje está bastante obscurecida, ou no mínimo desfocada. Dentro de campo o escrete canarinho deixou há algum tempo de ser sinônimo de alegria e exuberância, tendo se igualado, em seu pragmatismo cauteloso, a inúmeros outros selecionados, sobretudo europeus. Em face do desempenho medíocre nas últimas competições internacionais, o Brasil caiu para um inacreditável 19º posto no ranking da FIFA, atrás de países como Equador, Suíça e Costa do Marfim, e mesmo jogando em casa não é propriamente favorito ao mundial do ano que vem.
Nenhuma surpresa, portanto, que o treinador escolhido para a seleção seja Luiz Felipe Scolari, técnico de inclinações primordialmente defensivas, para quem futebol bonito é “frescura para agradar jornalistas”, adepto de um estilo autoritário e paternalista de comando (a “família Scolari”). É claro que pesou muito, para a sua escolha, o fato de ter sido o treinador que conquistou nosso último título mundial. No Brasil, a força do pensamento sebastianista é mais forte do que normalmente se pensa.
Maracanã: reaberto com obras ainda inacabadas
Pátria da avacalhação
E fora de campo, como anda o ânimo dos brasileiros, e a articulação deste com a expectativa pré-Copa? Essa resposta só poderia ser dada por uma ampla pesquisa de opinião, mas alguns fatos são evidentes.
Primeiro: os atrasos, os superfaturamentos, as inaugurações politiqueiras de estádios inacabados, tudo isso parece confirmar os piores temores de quem se opunha à realização da Copa no país. As obras de infraestrutura de transporte urbano, comunicações, segurança etc. que ficariam como “legado” permanente para a população das cidades revelaram-se, como se temia, pouco mais que balela.
Mas, à medida que a Copa das Confederações e a Copa do Mundo se aproximam, parece que essas mazelas são vistas pela maioria como fato consumado, mera comprovação de que “é assim mesmo” no Brasil, “pátria da avacalhação e da impunidade”. Por isso, não causa mais espanto a ninguém que a CBF seja presidida por um homem com um passado de comprometimento com os setores mais tenebrosos da repressão política, sem falar nas fortes suspeitas de corrupção. Afinal, a própria FIFA é uma das entidades mais corruptas do mundo.
Tampouco causa maiores indignações o fato de os estádios serem construídos majoritariamente com dinheiro público para depois serem entregues à iniciativa privada, confirmando nosso pendor para privatizar os lucros e socializar os prejuízos.
Patriotismo compulsório
Sobre essa matéria amorfa de conformismo e resignação, a propaganda massiva, o otimismo forçado, o patriotismo compulsório imposto aos gritos pela mídia hegemônica parecem cair como uma chuva sobre um terreno impermeável, sem chegar a irrigá-lo. Nas ruas, nos bares e mesmo nos novos estádios onde se apresentam nossos craques, é difícil detectar algum entusiasmo genuíno. Pelo contrário: o que se vê é uma insatisfação difusa, caxirolas atiradas no gramado, vaias para os jogadores, gritos de “burro” para o treinador. (Mesmo a vitória em Porto Alegre sobre a fraca seleção da França representou mais uma trégua do que propriamente uma reversão desse quadro).
A caxirola e os estádios merecem comentários à parte, por concentrarem talvez sentidos mais amplos. A primeira, “inventada” por Carlinhos Brown, é um abastardamento industrial, modernoso,kitsch e antiecológico de um lindo artefato de origem africana, o caxixi, chocalho de som agradável e discreto. Como observou o músico Naná Vasconcelos, a diferença é que a caxirola pode ser usada para machucar. Ao que parece, o novo instrumento já foi abandonado. Não colou, a exemplo do esdrúxulo nome “Fuleco” escolhido arbitrariamente para o mascote da Copa.
Se essas novidades parecem concebidas em gabinetes distantes do Brasil real, os novos estádios (ou os velhos, radicalmente transformados) estão surgindo como objetos estranhos a sua paisagem física e humana. São “arenas” assépticas, de arquitetura imponente e visual vagamente futurista, que durante as duas Copas – e provavelmente também depois – serão inacessíveis ao torcedor popular. Como bem observou o jornalista e cineasta Eduardo Souza Lima, “o futebol começou como esporte de elite e está voltando a ser esporte de elite”.
Eis o paradoxo: num país que viveu, nos últimos anos, uma perceptível ascensão das camadas mais pobres e sua inclusão no mercado, o esporte mais popular se converte em diversão de endinheirados. Barrados na arquibancada e na geral que lhes deram os apelidos, os antigos “arquibaldos” e “geraldinos” verão os jogos da seleção – e possivelmente também os dos seus times – do sofá da sala, sob a voz onipresente de você sabe quem.
O risco a médio e longo prazo dessa bizarra tendência – que entretanto parece perfeitamente de acordo com os ditames da publicidade, da FIFA, da globalização e dos interesses políticos estabelecidos, tanto da situação como da oposição – é o esvaziamento do futebol brasileiro daquilo que era a sua seiva, a sua energia, a sua temperatura: a paixão do torcedor popular.
Caxirolas
* José Geraldo Couto é jornalista, tradutor e crítico de cinema.

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