segunda-feira, julho 16, 2007

CORAÇÃO DE ALUMÍNIO

Rafaelle. Meu amor ainda tem o nome dela. De outra forma, ela jamais seria a personagem principal de um conto que envolvia desejo, ternura, medo e solidão.
Comecei a escrevê-lo no Bar Antigamente, esperando a chuva passar. Era noite de sábado. Enquanto desenvolvia a história, olhava a cada instante para o relógio em meu pulso direito - nove horas. Marquei o encontro para as oito. Um jantar. Cheguei com certa antecedência, a fim de causar boa impressão. A nuvem negra já estava se formando. A temperatura caiu um pouco. Às oito e cinco, ouvi a primeira trovoada.
Luciana disse que não faltaria. Nós nos conhecemos na livraria Poeme-se, pela manhã. Volta e meia, apareço para conversar com o proprietário, meu amigo Gilson, e nesse dia ela estava lá, observando as estantes. Era uma mulher bastante jovem ainda, como se tivesse acabado de sair da adolescência. Tinha estatura mediana e um corpo sensacional. Pensei que fosse modelo. O cabelo castanho descia em cascata até o meio das costas. Mas o que a tornava inesquecível eram seus olhos: um par de verdes pedras preciosas.
Pedi licença a Gilson e fui tentar a sorte. Quando o sujeito não é bem-apessoado, como é o meu caso, deve se sobressair pela inteligência. Vi Luciana folheando desinteressada o “Espumas Flutuantes”, de Castro Alves.
- Não gosta? - perguntei.
Bem-educada, ela sorriu polidamente.
- Não faz muito meu gênero. Romantismo demais. Acho que você também pensa assim.
- Por que diz isso?
- Li um de seus contos. Uma amiga comprou o livro e me mostrou.
Meu primeiro trabalho fora lançado duas semanas antes.
- Os críticos associaram meu nome ao rótulo “bom escritor”. E você? O que achou?
- Amor, sexo, violência. Até que eu gosto.
Quase afirmei que o escritor precisa ter um coração de alumínio para escrever histórias assim, mas preferi apostar na pequena abertura que a declaração dela proporcionou.
- Que bom que você acha isso. Então... que tal discutirmos um pouco mais sobre isso num jantar?
Entretanto, creio que agi levado pela ansiedade, pois acabei pulando uma etapa importante. Novamente com toda a polidez do mundo, ela sorriu.
- Assim? Sem mais nem menos? Sem a devida apresentação?
- É verdade - admiti. - Mas, como você me conhece, resta me dizer o seu nome.
Reconheci que agi estupidamente antes de terminar a “brilhante” sentença. Repito: o sujeito, quando não é bem-apessoado, deve ser inteligente. O que não fui, naquele momento. Se tivesse jogado dentro das regras, os beijos que eu teria dado naquele rosto suave e delicado serviriam como prêmio de consolação, caso aquele encontro casual não rendesse. Um exemplo clássico de como somos capazes de cretinices antológicas.
Considerando tudo o que aconteceu no breve momento em que nossa conversa teve lugar, dei muita sorte de sair lucrando por não ter sido devidamente rechaçado. É a diferença que faz o sujeito lidar com uma mulher absolutamente madura, que sempre estava controlando todas as situações nas quais se envolvia, ainda mais aquelas (como certamente significou nosso encontro) que não mereciam figurar em sua biografia.
Ela estendeu a mão e disse:
- Pois muito bem. Meu nome é Luciana Mendes. Prazer em conhecê-lo, Daniel.
Era filha de um fazendeiro importante do sul maranhense. Mas não tinha a menor vocação para a criação de gado. Resolveu tentar a política. Antes de chegar a um cargo público, entretanto, compreendeu que não atingiria seus objetivos sem a necessária formação superior. Assim, quando a conheci, ela estava no terceiro período do curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão.
Luciana contou essa história enquanto tomávamos o café que meu amigo Gilson gentilmente nos serviu. Gilson sempre foi um cavalheiro. Geralmente, comportava-se como um daqueles mordomos ingleses do princípio do século passado, sempre prestativos, porém aliando a essa presteza imediata inteligência e sofisticação.
No final desta confraternização, que não durou tanto quanto eu desejara, ela consultou seu relógio e disse que já era para estar a caminho de casa. Morava no Renascença, com duas irmãs e um sobrinho de seis anos. Parecia não ter mais lembrança alguma do meu convite. Quando reforcei a proposta, ela respondeu, distraída:
- Não se preocupe. Eu não faltarei.
E foi embora. E também não compareceu ao jantar. Enquanto esperei, escrevi o conto cuja personagem principal eu chamei de Rafaelle. Na vida real, Rafaelle, em determinada época, iluminou minha vida com sua luz muito mais divina que a do sol. Claro que a nossa história de amor não rendeu os frutos desejados. Se o romance não foi para a frente, a culpa é toda minha. Culpa deste meu coração de alumínio, que não soube reconhecer o valor das carícias dela, do amor genuíno que ela nutria por mim.
Mas acredito que meu amor terá para sempre o nome dela. Rafaelle. Na verdade, é só isso o que importa.

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