terça-feira, maio 27, 2008

Esquerda, governo e poder na América do Sul

por Renato Pompeu

Em três décadas, a América do Sul passou de continente das ditaduras militares para o continente em que a esquerda está renascendo, tendo assumido o governo na Venezuela, Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia e Equador. Três fatores têm caracterizado o atual ressurgimento da esquerda em escala sul-americana. De um lado, fatores étnicos; de outro lado, a verdadeira universalização do sufrágio eleitoral; finalmente, a exclusão em massa provocada pelas políticas neoliberais.
A vertente étnica: a recente onda de eleições de governos mais ou menos esquerdistas na América do Sul se tem dado em países como a Bolívia e o Equador, em que a identidade indígena permanece robusta e envolve grandes populações, apesar de séculos de dominação de etnias ibéricas. Ao contrário, por exemplo, do Brasil, onde os índios não passaram dos estágios iniciais de caça e coleta e agricultura de coivara, em vários outros países do continente, principalmente nas regiões andinas, os indígenas tinham alcançado alto estágio de civilização quando foram “descobertos” pelos europeus.
Assim, os povos andinos guardam até hoje as tradições de glórias de um passado milenar e as lembranças de submissão no passado recente à encomienda e à mita. A encomienda era um sistema pelo qual a coroa espanhola “concedia” um grupo de índios para um particular branco “cristianizar” em troca da cobrança de tributos em espécie; na prática, o particular branco evoluía para latifundiário, se tornava dono das terras e das produções indígenas, estes reduzidos a algo intermediário entre a escravidão e a servidão feudal.
A mita, no Império Inca, era o serviço público que todo habitante tinha de prestar alguns dias por ano na construção e manutenção de estradas e prédios oficiais; sob domínio espanhol, se tornou o trabalho forçado, praticamente permanente, nas minas de prata. Além disso, até tempos recentes, nos países hispano-americanos, índios livres e mestiços livres pagavam proporcionalmente impostos mais altos do que os brancos, e suas religiões e culturas, e até cultivos, como o da coca, sofriam diferentes graus de restrição.
A independência política de quase todos os países sul-americanos no início do século 19 (com exceção das Guianas Inglesa e Holandesa, que se tornaram independentes só na segunda metade do século 20, com os nomes de Guiana e Suriname, e da Guiana Francesa, até hoje ligada à França) não trouxe alterações no quadro básico de exploração por uma elite branca de uma maioria de indígenas e mestiços, com exceção da Argentina, Chile e Uruguai, onde a maciça imigração européia tornou os indígenas minorias extremamente pequenas; na Argentina, a grande proporção de mestiços (cabecitas negras) se tornou europeizada, e formou a espinha dorsal do movimento peronista. Nos países andinos, com exceção do Chile e da Colômbia, os movimentos indígenas são um fator central. No Paraguai, pela primeira vez, nas próximas eleições, haverá um candidato representante da maioria indígena, um candidato de esquerda, que por enquanto é o favorito.

Renato Pompeu é jornalista e escritor.

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