terça-feira, julho 13, 2010

"Este é um momento histórico para o Egito", diz Mohamed ElBaradei, Prêmio Nobel da Paz

DER SPIEGEL

Erich Follath e Dieter Bednarz

Em entrevista ao Spiegel, o Prêmio Nobel da Paz Mohamed ElBaradei, 68, discute a necessidade de mudança em seu país natal, possível cooperação com islamitas na próxima eleição e as perspectivas de tirar o autocrático Hosni Mubarak do cargo.

Spiegel: Há cerca de seis meses, o senhor anunciou em uma entrevista conosco que ia se retirar da vida pública, que após 12 anos como chefe dos inspetores de armas nucleares da ONU em Viena, o senhor só queria dar palestras. Agora o senhor está desafiando o presidente Hosni Mubarak. O que aconteceu?

ElBaradei: O momento decisivo foi minha volta ao Cairo, em fevereiro. Eu realmente só queria visitar meu país e passar algumas semanas em minha casa perto das pirâmides. Mas então, 1.500 pessoas foram ao aeroporto. Havia gente de todas as camadas da sociedade: estudantes, empresários, trabalhadores e, surpreendentemente, muitas mulheres, inclusive egípcias com lenços na cabeça e rostos cobertos. Algumas pessoas gritavam: “Este país precisa ser mudado, por favor, nos ajude a fazer isso acontecer!” outras seguravam cartazes com: “ElBaradei para presidente!” Isso me eletrizou.

Spiegel: Foi isso que provocou a mudança de planos? De acordo com a constituição, o senhor nem pode ser candidato à presidência sem ter seu próprio partido.

ElBaradei: Viajei pelas cidades e aldeias. Fiquei abalado com o atraso do meu país; profundamente tocado pelo desejo palpável do povo por mudança; tomado pela simpatia e entusiasmo com o qual fui recebido. E o próprio regime não me deu escolha além de me tornar politicamente ativo. Com a ajuda da mídia controlada pelo Estado, eles iniciaram uma campanha sem precedentes para me caluniar, acusando-me de ser um agente estrangeiro.

Spiegel: O senhor sabe o que acontece com quem desafia Mubarak. O último homem que concorreu contra ele pela presidência acabou na prisão.

ElBaradei: Eu estive na Alexandria há pouco tempo com Ayman Nour em uma manifestação pelas vítimas da tortura do regime. Tenho uma situação privilegiada porque posso contar, em certa medida, com uma proteção pelo meu reconhecimento internacional. É claro que minha mulher e filhos têm medo que eu sofra atentados violentos. Mas minha família sabe que não tenho escolha: vivemos em uma época especial, de despertar. Este é um momento histórico para o Egito...

Spiegel: ...no qual muitos o veem como uma espécie de messias.

ElBaradei: Eu não posso nem quero ser um salvador. Essa mentalidade de ficar sentado esperando um salvador é exatamente o que estou combatendo. As pessoas têm que efetuar a mudança elas mesmas e têm que se dedicar a isso –essa é a única forma de alcançar um progresso decisivo. E isso é exatamente o que está acontecendo hoje em dia, com uma mobilização de tirar o fôlego, em formatos completamente novos.

Spiegel: Como?

ElBaradei: Há pouco tempo eu nem sabia o que era Twitter e Facebook. Agora uso esses novos meios e já temos quase 30.000 usuários permanentes em nosso site e dois grupos de Facebook com 250.000 usuários cada. As coisas estão começando a mudar no meu país.

Spiegel: Por que isso só está começando agora?

ElBaradei: O país está sob as leis de Estado de emergência há 30 anos. Os serviços de segurança são onipotentes, a polícia age arbitrariamente. Isso criou uma cultura de medo. Se uma figura for necessária para representar esse despertar, farei tudo que puder para ser um catalisador dessa mudança.

Spiegel: Por um longo tempo, como diretor da Agência Internacional de Energia Atômica e vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 2005, o senhor foi motivo de orgulho do regime.

ElBaradei: Ah sim. Há quatro anos, o presidente Mubarak me homenageou com a mais elevada medalha do país e elogiou-me extensivamente como filho extraordinário do Egito, a um ponto que até fiquei embaraçado. Desde que me envolvi ativamente na oposição política egípcia, as autoridades passaram a controlar de forma sutil minha exposição pública, como aparições na televisão. Alguns de meus defensores foram presos, e hotéis que ofereceram salas de reunião foram pressionados a cancelarem a reserva.

Spiegel: Muitos egípcios se referem a Mubarak como “faraó” porque ele vem governando o país a partir de seu palácio há quase 30 anos. Como o senhor o considera?

ElBaradei: Mubarak é uma operação de um homem só, não tem a fiscalização dos três poderes, não tem contato real com as pessoas e permitiu que o Egito se tornasse um Estado policial. É o regente de um país que caiu profundamente e perdeu estatura e influência de forma dramática.

Spiegel: O Irã e a Turquia parecem dominar o Oriente Médio. O Egito foi relegado ao segundo plano?

ElBaradei: Cairo já foi o centro cultural e econômico irrefutável da região. Hoje cerca de um terço dos 80 milhões de egípcios são analfabetos, mais de uma em cada cinco pessoas é forçada a sobreviver com menos de US$ 1 por dia. De acordo com a Transparência Internacional, temos uma alta posição na lista dos Estados mais corruptos do mundo. O Egito está inclusive na lista dos países ameaçados de se tornar um Estado fracassado –isso mostra como as coisas foram longe.

Spiegel: É uma tarefa hercúlea para o próximo presidente.

ElBaradei: Sim, porque a política externa e interna não podem mais ser separadas. Um Estado que quer ter força internacional têm que ter uma sociedade civil aberta e viva –somente então será atrativo para os outros.

Spiegel: Ainda assim, o Ocidente ainda vê Mubarak como parceiro. Apesar de seu déficit em democracia, é visto como garantia de estabilidade. Nenhum outro país fora de Israel recebe tanta ajuda norte-americana.

ElBaradei: Você está tocando em um dilema para o Ocidente: Mubarak convenceu os EUA e a Europa que só existem duas opções: ou aceitam este regime autoritário ou o Egito cairá nas mãos de poderes como a Al Qaeda de Bin Laden. É claro que isso não é exatamente verdade. Mubarak usa o fantasma do terror islâmico para impedir um terceiro caminho: a democratização do país. Mas Washington precisa saber que o apoio a uma liderança repressiva somente cria a aparência de estabilidade. Na verdade, promove a radicalização do povo.

“Um peso e duas medidas”

Spiegel: Muitos egípcios dizem que o Ocidente se aliou demais a Mubarak, enquanto outros dizem que o presidente se tornou um lacaio dos poderes ocidentais. Quem está certo?

ElBaradei: Observe nosso papel no conflito de Gaza. A Faixa de Gaza é a maior prisão do mundo. E tem dois guardas: de um lado, Israel isola a região e, do outro, nós fechamos a fronteira. O governo do Egito invocou razões de segurança para isso –eles temem o Hamas, cujas posições radicais eu não compartilho, mas que subiram ao poder em uma eleição legítima.

Spiegel: O que o senhor faria de forma diferente no conflito de Gaza?

ElBaradei: Precisamos fazer todo o possível para aliviar o sofrimento do povo local. Abrir as fronteiras, suspender o bloqueio! E isso no longo prazo, não esse arremedo que acontece atualmente do nosso lado...

Spiegel: ...como os israelenses estão planejando, ao menos no que concerne a entrega de itens alimentícios.

ElBaradei: Não vejo uma abertura permanente como ameaça para nossa segurança nacional. Acredito, contudo, que o problema será grande se continuarmos cúmplices daqueles que humilham o povo palestino.

Spiegel: O senhor ainda acredita em um Estado Palestino que possa coexistir com Israel?

ElBaradei: Essa é a única solução. Mas para isso acontecer, é preciso haver um governo em Israel que respeite as fronteiras de 1967 e que entenda que repressão não é solução.

Spiegel: E os palestinos precisam reconhecer o direito de Israel existir e garantir que não sejam mais lançados morteiros da Faixa de Gaza para Israel. Os dois lados ainda têm algum trabalho a fazer antes das condições serem cumpridas para maiores negociações.

ElBaradei: Exatamente. Mas o povo no Oriente Médio tem a impressão que está havendo um peso e duas medidas, que as coisas só são exigidas dos palestinos. Tal comportamento gera ressentimento no egípcios.

Spiegel: Como o senhor pode satisfazer os árabes por um lado e, do outro, cooperar com o Ocidente e negociar com Israel.

ElBaradei: A Turquia é membro da Otan e parceira do Ocidente e Israel. Ainda assim, o primeiro-ministro Erdogan não teve problemas em apoiar uma flotilha de ajuda para Gaza que supostamente furaria o bloqueio de Israel. O povo do mundo árabe o adora, e a foto de Erdogan está em toda parte.

Spiegel: O populismo político não ajuda país algum –veja o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad.

ElBaradei: Concordo. Mas os regimes considerados moderados do Oriente Médio não cumpriram suas promessas. As pessoas foram traídas por seus governantes. E a Liga Árabe, fundada pelo Egito com a sede em Cairo, há muito se tornou irrelevante por sua hesitação. O que sobrou é uma piada. É por isso que Ahmadinejad, com suas posições radicais, é tão celebrado pelas massas.

Spiegel: E temido pelos líderes no Oriente Médio. Ele é fortemente suspeito de tentar produzir armas nucleares. O senhor sabe melhor do que ninguém como é grande a ameaça. Seus inspetores coletaram as evidências contra Teerã. A CIA agora diz que o Irã pode ter uma bomba nos próximos dois anos.

ElBaradei: A situação do Irã tem muitas facetas. Teerã está trabalhando com tecnologias que tornam possível a fabricação de um artefato e está a caminho de se tornar uma potência nuclear. Mas eu não acredito que os iranianos estejam de fato produzindo bombas atômicas.

Spiegel: Mas o controle sobre o ciclo do combustível nuclear coloca o Irã em uma posição mais poderosa e exerce pressão sobre os países vizinhos.

ElBaradei: Essa questão de status é superestimada pelo Ocidente. É uma questão de prestígio. Os iranianos estão mostrando ao mundo árabe que, tecnologicamente, eles se equipararam às principais nações mundiais.

Spiegel: Há quem diga que a Arábia Saudita e o Egito também têm planos de desenvolver artefatos nucleares. Isso é tudo boato?

ElBaradei: Para mim, não faz sentido. É claro que sou a favor do Oriente Médio livre de armas nucleares, sem armas atômicas iranianas ou israelenses. Mas em geral, o perigo de um Irã armado de armas nucleares é hiper-estimado, às vezes até propositalmente. Na competição pela influência regional, não é o aparato militar que é decisivo, mas o poder sutil. É uma competição centrada em quem tem as melhores ideias, as instituições mais funcionais, a sociedade mais moderna. No Egito, de qualquer forma, as pessoas não se identificam com o Estado.

“Tenho medo de um surto de violência”

Spiegel: Como o senhor planeja tirar seu país dessa frustração?

ElBaradei: Para quem tem que se preocupar com a próxima refeição, “democracia” continua sendo uma palavra sem significado. Primeiro e acima de tudo, o padrão de vida precisa melhorar. Os egípcios sofrem com o apadrinhamento e a corrupção. Eles sabem que competência e realização não são compensados. O vão entre ricos e pobres se amplia a cada dia. As pessoas querem liberdade e dignidade, e isso só pode ser alcançado se o termo “democracia” estiver cheio de vida.

Spiegel: Como assim?

ElBaradei: O presidente não pode mais ser onipotente. Deve ser possível votar pela saída de um governo quando este fracassar. Precisamos de um sistema de justiça independente e uma imprensa livre. Os cidadãos egípcios devem poder eleger seus representantes em um ambiente livre de pressão do Estado, independentemente da religião e gênero. Por que não ter uma mulher como chefe de governo? Por que não um cristão copta?

Spiegel: E o senhor quer desenvolver esse programa com a ajuda de islâmicos da Fraternidade Muçulmana?

ElBaradei: É verdade que conversei com representantes da Fraternidade Muçulmana e que discutimos a luta contra Mubarak.

Spiegel: Há uma conversa sobre “parceria estratégica”.

ElBaradei: Eu falo com todos os representantes da oposição. A Fraternidade Muçulmana não tem permissão de formar um partido, mas seus candidatos individuais compreendem 20% dos assentos no parlamento. Eles são respeitados porque são socialmente ativos. Eles foram acusados de serem aliados de Bin Laden, o que é um absurdo total. Mesmo que não concordemos com suas ideias religiosas conservadoras, eles fazem parte de nossa sociedade e têm todo o direito de participar do desenvolvimento desta sociedade, se perseguirem seu caminho de forma democrática, livre de violência.

Spiegel: Mas isso é exatamente o que os observadores duvidam. E acreditam que os islâmicos estão usando o senhor para chegar ao poder.

ElBaradei: Isso não vai acontecer. Eu aceito a palavra da Fraternidade Muçulmana. O Egito é um país formado pelo islã. Somente vou me disponibilizar como agente da mudança democrática.

Spiegel: A democracia e o islã são realmente compatíveis?

ElBaradei: Um verso no Alcorão diz que um governante deve consultar seu povo para reinar com justiça. Pode-se começar por aí. No final das contas, o islã, como qualquer religião, é o que você faz dele.

Spiegel: Em outubro, haverá eleições parlamentares no Egito...

ElBaradei: ...e devem ser monitoradas por observadores internacionais, assim como as eleições presidenciais do ano que vem.

Spiegel: O Egito todo está se perguntando: o senhor vai concorrer à presidência?

ElBaradei: Na minha idade?

Spiegel: Na data das eleições o senhor terá 69 anos, e Mubarak 83. Não se pode falar em um movimento jovem a não ser que Mubarak envie seu filho, o banqueiro Gamal Mubarak, para a disputa.

ElBaradei: Encontrei-me com Gamal algumas vezes. Não posso dizer que o acho desagradável. Nada, contudo, indica que ele seria uma melhora sobre seu pai.

Spiegel: Em outras palavras, o senhor está se colocando no círculo.

ElBaradei: Seria necessária uma mudança nas leis governando os partidos políticos e registros eleitorais. O acesso justo à mídia tem que ser garantido. E, é claro, eu teria que ter permissão de inscrever meu movimento como um partido. Teríamos que coletar dinheiro para fazer a campanha. Mas deixe-me ser claro: se as condições forem cumpridas e se o povo realmente pedir que eu concorra, não vou deixá-lo na mão.

Spiegel: De outra forma, o “momento histórico” simplesmente vai passar?

ElBaradei: Não. Não é preciso que a pessoa esteja em um cargo para ser agente de mudança. Em uma das minhas contribuições na Internet, escrevi que vamos superar nossos temores, que a sociedade civil vai agir e vamos derrubar muros, como os alemães.

Spiegel: Se o senhor não obtiver permissão para concorrer nas eleições, o que recomendará aos eleitores?

ElBaradei: Se as regras não forem mudadas, se não houver chance de uma campanha justa, então vou pedir um boicote.

Spiegel: E também pediria aos egípcios para fazerem manifestações públicas –apesar disso poder terminar em banho de sangue?

ElBaradei: De fato estou preocupado que o regime possa desperdiçar a oportunidade de uma transição pacífica. Tenho medo de um surto de violência. Por essa razão exatamente ainda não estimulei demonstrações em massa ou desobediência civil. O regime deve saber: é possível prender muitos manifestantes, mas não se pode prender o povo todo.

Spiegel: Em sua opinião, o que é mais difícil: impedir o Irã de fabricar uma bomba atômica ou levar a democracia ao Egito?

ElBaradei: Os dois são difíceis. Os dois são possíveis.

Spiegel: Vamos vê-lo no palácio presidencial no Cairo, no outono de 2011?

ElBaradei: Como disse André Malraux, aquilo que é menos esperado normalmente é o que acontece.

Senhor Elbaradei, agradecemos por esta entrevista.

Tradução: Deborah Weinberg

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