terça-feira, outubro 26, 2010

Coronel Nascimento dá razão a Foucault em "Tropa de Elite 2"

PLÍNIO FRAGA
DO RIO

E o coronel Nascimento, quem diria, rendeu-se a Foucault e seus asseclas.

Ou aos "intelecutuaizinhos de merda", no linguajar que pontua seu sucesso como personagem do mais bem-sucedido filme nacional dos últimos anos, "Tropa de Elite 2", de José Padilha.

Cinematograficamente, a crítica de Inácio Araujo nesta Ilustrada ("'Tropa de Elite 2' se prende em discurso sem espessura", 7/10) já dimensionou o produto: "Tem o mérito de nos apresentar, com eficácia e um ótimo elenco (e apesar do falatório), a um mundo do qual o cinema brasileiro raramente se aproxima", mas "preso a um discurso sem espessura, uma espécie de niilismo a rigor tão ingênuo quanto as ideias de Nascimento no primeiro filme".

Mais do que discutir cinema, a proposta deste texto --por coincidência elaborado por um Fraga, assim como o anti-herói de "Tropa 2"-- é sugerir que o coronel Nascimento do segundo filme é resultado de uma derrota simbólica na discussão pública sobre o primeiro. Nada pessoal, gente.
"Tropa de Elite" chegou a ser definido como um filme em que espectador é subtraído do papel de vítima e associado ao lugar do algoz, na competente visão de outro crítico da Folha, Cássio Starling Carlos ("Em 'Tropa de Elite', Padilha transforma a plateia em algoz", 5/10/07).

Lembrava ele que a brutalidade do Bope é a realização de desejos sociais de extermínio. "Com um fuzil apontado para nossa cara, somos retirados da confortável posição de voyeurs e colocados na incômoda cadeira dos réus", concluiu brilhantemente.

Em "Tropa 2", não há vestígio da tese de que quem consome droga arma o tráfico ou de que o papel de organizações não governamentais em favelas se resume a hipocrisia interessada de usuários drogados _duas das bandeiras a que titãs do conservadorismo se apegaram para elevar o filme a símbolo da derrota das causas humanitárias. O desejo social de extermínio é sublimado pela revelação truística de que o mundo é político.

O SISTEMA
Há, em "Tropa de Elite 2", uma cena em que um oficial do Bope tortura com um saco plástico um traficante --reproduzindo o que ordenara o então capitão Nascimento no primeiro filme.
A história se repete como farsa. No primeiro filme, a tortura de Nascimento nada mais era do que a consumação prática de que os fins justificam os meios.

No segundo, o mesmo saco plástico simboliza a ingenuidade de um capitão do Bope a ser ludibriado por PMs menos bem formados, menos bravos, menos inteligentes e mais bandidos.
Onde havia celebração da força passa a haver subjugação desta à esperteza acética. Ou seja, o "pega geral" do cântico dos agentes supertreinados, máquinas de matar, é contornado por uma nova espécie macunaímica, o miliciano que dribla as leis, as instituições e os colegas mais inteligentes armado da destreza da falta de caráter, da falta de ética, da ganância econômica e política.

O novo saco plástico em que o coronel Nascimento tropeça é o que chama de "sistema" --uma máquina complexa, impessoal, a gerar dinheiro e votos.

Descobre que o tráfico não é seu maior inimigo, mas sim a estrutura política corrupta. O tal inimigo que havia demorado a identificar.

Se atirasse menos e pensasse mais, Nascimento economizaria cartuchos e entenderia o que é o processo político desde sempre.

Não se pode falar de moralidade como força política porque todos os discursos que a envolvem camuflam interesses de alguém.

Não se pode falar de progresso a menos que se entenda que ele é mais ou menos estimulado de acordo com o poder de diferentes grupos.

Não se pode falar de ideais que modificam o curso das coisas a menos que se entenda que eles representam outro grupo de interesses.

Não se pode falar de governantes, partidos, atores políticos e poderes constituídos, exceto que se perceba que são meios pelos quais operam os grupos de interesses.

Nascimento é alvejado por essa descoberta, uma bala perdida centenária, estruturada por gente como Arthur F. Bentley (1870-1957), em "O Processo do Governo", de 1908. Precisa se reciclar.
E, quando descobre esse inimigo, Nascimento o denuncia em CPI, por meio do discurso no qual o diretor do filme assume o papel de intelectual específico preconizado por Michel Foucault (1926-1984), desdenhado no primeiro filme, numa leitura rasa sobre o papel do Estado como agente opressor.

Disse Foucault que cada luta se desenvolve em torno de um foco particular de poder. Designar os focos, denunciá-los, falar deles publicamente, é uma primeira inversão de poder, é o primeiro passo para outras lutas contra o poder. E é assim que procede Padilha.

Em "Tropa de Elite 2", o coronel Nascimento vem humildemente dar razão a Foucault e pedir para sair.

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