segunda-feira, agosto 13, 2007

KALIFORNIA DRIM

All the leaves are brown and the sky is gray/ I’ve been for a walk on a winter’s day/ I’d be safe and warm if I was in L.A./ California dreamin’ on such a winters day. Assim começa “California Dream”. John e Michelle Phillips assinam a composição. A pequena Kalifornia Drim, 9 anos, não soube me dizer onde seu pai ouvira a música. Mas agora isso não é tão importante. Ele está morto. Foi assassinado. Depois do enterro, Kalifornia fugiu de casa.
Também não sei onde ela morava. Não me disse. Na verdade, estava mais concen-trada em matar a fome. E era uma senhora fome. “Ainda tava escuro quando saí de casa”, contou. No momento em que ela começou a devorar o frango do primeiro prato que apare-ceu em sua frente, eram quatro horas da tarde. Pouco mais de treze horas de viagem, consi-derando que pode ter saído por volta das cinco horas da manhã.
Meu nome é Daniel Mendes. Eu não sou ninguém. Nenhum cara famoso. Não. Não é verdade. Sou alguém, sim. Alguém que deu azar tanto no jogo quanto no amor. É, eu sou uma droga de um jogador compulsivo. Jogo apostado desde os onze anos. E minhas apostas sempre foram altas. Jogava comigo quem tinha grana. Não perdia meu tempo com trocados. Zé-Ninguém não tinha chance comigo. O “danadão” aqui não percebia que ele era o maior Zé-Ninguém de todos. Porque, como já disse antes, eu perdia mais do que ganhava. Bem mais, com certeza. Também demorei muito a perceber que, se eu não estava nem aí para as misérias alheias, da mesma forma ninguém não dava a mínima para as minhas.
Confirmei isso na rodoviária de São Bento. Eu estava arrasado. Detonado mesmo. Porque desta vez minhas apostas insanas custaram-me bem mais do que meras questões financeiras. Por causa da minha loucura, perdi minha família. Esposa e filhas. De uma vez. Derrotado, tudo o que me restou foi caminhar até o terminal rodoviário, a fim de esperar o ônibus que me levaria de volta para São Luís.
A cidade estava tranqüila, naquele começo de tarde. Por causa do sol forte, ninguém ocupava os bancos de mármore da praça em frente à rodoviária. Não demorou muito, apa-receu um ônibus, pelos lados do hotel principal. Não era o que eu aguardava. Esse chegaria duas horas depois. O ônibus entrou lentamente no terminal. Quando finalmente parou e o motorista abriu a porta, desceram uma sexagenária com excesso de lipídios e o próprio mo-torista – que segurava a mão da pequena Kalifornia Drim.
É claro que, nessa hora, eu não sabia que o nome dela era esse. Apenas acompanha-va atentamente o desenrolar da situação, para ver no que ia dar. O motorista levou-a ao gui-chê da empresa para a qual ele trabalhava. A jovem magricela e sem-graça com quem ele conversou abandonou seu posto. Em seguida, ajoelhou-se diante da menina e perguntou o nome dela.
“Kalifornia Drim”, disse a garotinha. A moça e o motorista riram. Ele mais do que a outra, porque o ouviu primeiro, antes de chegar a São Bento. Olhei para o itinerário indica-do no veículo. Havia acabado de chegar da região sul. Em seguida, esperei a reação da gu-ria às risadas. Fiquei impressionado com a seriedade dela. Era uma menina negra, cujo ves-tido verde-claro apresentava manchas de suor. Seu cabelo pixaim parecia à prova de pente. Mas na verdade não esqueço do olhar de Kalifornia. Um olhar sério e, ao mesmo tempo, muito triste, de quem já viu muitas tristezas ao longo de toda uma existência.
Também havia uma folha de papel branco, dobrada, que sua mão direita segurava firme. Os dois risadinhas não a perceberam. Antes de voltar ao trabalho, o motorista suge-riu à moça que telefonasse para a delegacia. “Deixa ela com o Osmar”, concluiu. No caso, o Osmar era o delegado da cidade. Em seguida, voltou ao trabalho. Fechou a porta do ônibus. Também muito devagar, o veículo saiu da rodoviária. A velocidade só aumentou depois que contornou a praça.
“Menina, fica ali naquele banco, tá?”, disse a jovem sem-graça. Ela não devia ter mais de 20 anos. Seu cabelo tinha cor de ferrugem. “Vou terminar um serviço e depois ligo pra delegacia. Daí, voltou para o guichê, concentrou-se na leitura de uma pequena pilha de documentos... e apagou da lembrança a pequena Kalifornia.
A guria deu sinal de esperteza. Olhou para mim e caminhou na minha direção. “Moço, o senhor pode comprar um lanche pra mim?”, perguntou. E assim começou esta história. Levei Kalifornia para um restaurante próximo à rodoviária. Nem pedi o cardápio à garçonete. “Traz o prato principal e uma cerveja pra mim”, falei. Enquanto não éramos atendidos, pedi a ela para me mostrar o papel que estava em sua mão. Era a certidão de nas-cimento dela. Li o nome duas vezes. Kalifornia Drim de Sousa Vieira. Pensei logo na músi-ca. Depois, perguntei a ela se sabia quem foi que decidiu esse nome. “Foi meu pai”, res-pondeu. Seus olhos brilharam. Pensei que fosse chorar. Isso não aconteceu. “Ele morreu”, acrescentou. Nisso, a garçonete colocou na mesa o primeiro prato – o de frango.
“Ele morreu de quê?”, perguntei. Ao mesmo tempo, despejei cerveja em um copo de vidro. “Mataram ele”, disse. De boca cheia, saiu mais ou menos assim: “Motaram elhi”. Achei graça. A garçonete também. A garçonete também era sem-graça – uma ruiva de um metro e setenta. Kalifornia Drim engoliu o que mastigava. “Meu tio deu uma facada nele”.
“Irmão dele ou da tua mãe?”, perguntei. “Dele”, a menina respondeu. E comia a uma velocidade impressionante. Estava mesmo faminta. “Minha mãe morreu também. Eu era bebezinha quando ela morreu”. Continuou comendo, até não sobrar um pedaço de fran-co e um grão de arroz. Mandei vir outro prato. Depois de algum tempo, a garçonete deixou na mesa um prato no qual fumegavam pedaços de carne de porco. Ela não pensou duas ve-zes. Atacou sua segunda refeição, sem nem tocar o refrigerante que também pedi. Imaginei que ela não fosse gostar da indigestão que provavelmente teria, mais tarde.
“O que você fazia naquele ônibus?”, perguntei. Ela não gostou. Eu claramente atra-palhava seu almoço. Mas não deixou de responder: “Eu fugi. Não queria ficar com minha tia. Toda vez ela me batia, quando meu pai não tava olhando. Ela e o marido dela”. Imagi-nei a guria saindo de casa de madrugada, sem ninguém perceber. Deve ter caminhado até um trecho de estrada e pediu carona. O primeiro motorista, ao invés de devolvê-la à família, ajudou a menina a continuar sua aventura. E assim foi, de carro em carro, ônibus em ôni-bus, até chegar à cidade de São Bento – onde encontrou um pobre-coitado moralmente fali-do. Acredito que não definição melhor do que esta, a meu respeito.
Após o terceiro prato (o peixe cozido), ela deu-se por satisfeita. Contrariou as mi-nhas expectativas: não passou mal, de tanto comer. “Obrigado, viu, moço”, disse. Perguntei se não gostaria de tomar um banho. Ou que comprasse para ela um vestido novo. Eu a teria ajudado. Mas queria fazer isso porque achava que assim me sentiria menos verme desprezí-vel. Menos canalha. Menos pusilânime. Ainda bem que Kalifornia recusou essa “ajuda condicionada”. Tudo o que queria era apenas continuar sua volta ao mundo em sei lá quan-tos dias. Nisso ajudei. Viajamos juntos até a cidade de Arari. Na rodoviária, ela agradeceu mais uma vez e desceu do ônibus.
A pequena Kalifornia Drim. Não sei onde deve estar, agora. Só espero que Deus a proteja dos lobos maus que aterrorizam este mundo.

EM SÃO LUÍS, 12 E 13 DE AGOSTO DE 2007.

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