sábado, outubro 06, 2007

A infância de Jesus

Relatos dos séculos I a III revelam que o filho de Deus, ainda criança, fazia milagres e era travesso. Agora, novos estudos procuram detalhar essa fase da vida de Jesus

Por CARINA RABELO, JONAS FURTADO E LENA CASTELLÓN

Quem um dia recorreu à Bíblia para conhecer melhor a história de Jesus, o homem que deu origem ao cristianismo, certamente terá notado a falta de informações a respeito da infância do filho de Deus. Dos quatro evangelhos que contam o surgimento do chamado Messias, somente dois – os de Mateus e Lucas – trazem episódios da primeira fase de sua biografia. As menções são escassas e frustram quem gostaria de saber mais da vida do menino. Mas agora estão se tornando populares certas narrativas que descrevem momentos reveladores da relação do jovem Jesus com sua família e com as outras crianças. De acordo com esses textos, ele foi um garoto consciente de seu poder divino e fazia milagres desde pequeno. Ainda assim, não deixou de cometer travessuras que lhe valeram reprimendas da mãe, Maria. Inteligente ao extremo, chegava a desafiar seus mestres. Um professor, Zaqueu, teria procurado José para se queixar de Jesus, que recebera para aulas quando este tinha cinco anos. “Ai de mim, não sei o que fazer. (...) Não posso suportar a agudeza de seu olhar, nem chego a entender suas explanações. (...) Queria um aluno e encontrei um mestre. (...) José, leve-o para casa.”

Apesar de não receberem a chancela do Vaticano, relatos como esses, produzidos entre os séculos I e III, têm sido analisados por teólogos, historiadores e até mesmo por religiosos católicos. São os evangelhos apócrifos ou pseudoevangelhos, elaborados como complemento dos textos bíblicos. O termo apócrifo é empregado para designar relatos cuja autenticidade não é reconhecida pelo Vaticano. Ao todo, são 60, de diversas autorias. Citações sobre os primeiros anos do filho de Deus estão em alguns desses textos, entre eles o evangelho chamado de Armênio da infância e nos livros atribuídos a Tiago e Tomé, dois apóstolos de Cristo. Tomé detalha fatos ligados propriamente à infância, enquanto Tiago (tido como irmão de Jesus em narrativas não-oficiais) aborda mais a vida da família nos primeiros anos do futuro Salvador. Durante muito tempo, relatos desse gênero ficaram relegados a segundo plano, conhecidos basicamente apenas por quem se dedicava a estudar religião. Essas histórias, no entanto, começam a se espalhar inclusive entre os não-católicos, principalmente por ação de escritores que enxergam na força do mito Jesus um belo caminho rumo ao estrelato. Que o diga Dan Brown, o autor de O Código Da Vinci.

Uma das novidades nesse sentido é o livro Cristo Senhor, da americana Anne Rice, que chega nesta semana às prateleiras brasileiras. Autora do best seller Entrevista com o vampiro – que gerou um filme, possível passo do atual livro –, Anne nasceu em família católica, mas abandonou a religião aos 18 anos. E só a retomou em 1998, quando se recuperou de um coma provocado pela diabete. Em 2002, mergulhou nos textos apócrifos para elaborar a sua versão do menino Jesus. Em Cristo Senhor, que ficou três meses na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times, o narrador é o filho de Maria, com a idade de sete anos. É uma ficção reforçada pelos textos não sacramentados pela Igreja. Ela assegura, porém, ter se disciplinado para não contradizer o que está na Bíblia. “Há bastante informação para que possamos imaginar como pode ter sido a vida de toda a família”, disse a ISTOÉ. E completa: “Coloquei na minha cabeça que faria uma história muito realista, absolutamente conectada com as escrituras. Usei o que pude.”

CURIOSIDADE POPULAR
A vida de Jesus e sua relação com a família sempre atraiu interesse dos cristãos. Os textos não-oficiais, chamados apócrifos, preenchem a lacuna deixada pelas escritas canônicas, que pouco contam a respeito dos primeiros anos
VIDA A PÁSSAROS DE BARRO
Pode ser, mas um dos episódios que abrem o livro é um milagre narrado por Tomé. Trecho que demonstra o aspecto divino de Cristo na infância. Naquele período, Jesus, claro, não era considerado o Messias. Seus feitos, no entanto, não passavam despercebidos. Por isso, as crianças o temiam e seus pais proibiam os filhos de brincar com ele. Segundo a narrativa de Tomé, Jesus estava com sete anos quando um menino caiu do telhado de uma casa e morreu. Imediatamente, seus pais o apontaram como responsável pela morte. Diante da acusação, Jesus chamou com voz forte o garoto de volta à vida para que contasse que não era ele o culpado. No livro de Anne Rice, Jesus se inclina sobre o menino e diz: “Acorda, Eleazar. Desperta agora.” O filho de Maria também faz viver passarinhos de barro. No evangelho apócrifo intitulado Infância do Salvador, ele os pega na mão e ordena: “Ide.” E os passarinhos saem voando e gorjeando.
RESSURREIÇÃO
Um menino caiu do telhado de uma casa e morreu. Jesus, aos sete anos, o chamou e ele voltou a viver
Diversos relatos ressaltam o lado generoso, curativo e benevolente do jovem Jesus. Entretanto outros episódios contidos nos textos sugerem que ele era sapeca. Em um final de tarde, brincava com um grupo de crianças em seu quarto. Segundo o evangelho Armênio da infância, um raio de sol entrou pela janela. Gaiato, perguntou aos colegas se eles conseguiriam subir pelo raio. Os meninos nem se aventuraram. Jesus subiu. Uma travessura é aceitável. Mas como as narrativas apócrifas salientam, ele não era um menino comum. Também no escrito de Tomé, revela-se um lado negativo de seu poder. Com a desistência de Zaqueu em tomar o pequeno como aluno, José procurou um novo mestre para o filho. Encontrou um homem que, apesar de conhecer a fama do esperto Jesus, aceitou o convite. O garoto o desafiou logo na segunda aula. Posto à prova em seus conhecimentos, o professor se enraiveceu e bateu na cabeça de Jesus. Sentindo dor, ele o amaldiçoou e o mestre caiu por terra, sem sentidos.
MILAGRES MAIS SÉRIOS
Não há como negar que passagens como essas soam fantasiosas demais. Para alguns teólogos são episódios que mais se assemelham a histórias de super-heróis. Mas os textos nãooficiais, afinal, podem ser levados em conta? Sim, responde o frei Jacir de Freitas Farias, um franciscano de Belo Horizonte que estuda esses escritos. Desde que sejam tomados certos cuidados. Primeiro, explica ele, é preciso distinguir os tipos de relatos. Em sua opinião, os textos podem ser divididos em três categorias: os complementares (que trariam acréscimos às narrativas bíblicas, caso dos relativos a Maria), os alternativos (com episódios não aceitos pelo Vaticano, entre eles, os que colocam Maria Madalena como líder feminista) e os aberrantes. Nessa última classificação estão os livros que tratam do Jesus menino. Segundo o frei, eles exageram na explicação para mostrar o poder do filho de Deus. Por outro lado, representam o pensamento popular do período. “Os evangelhos canônicos não têm preocupação em mostrar a infância. E a humanidade ficou curiosa a esse respeito”, diz. Essa curiosidade perdura até hoje. Para atendê-la, frei Jacir, autor de quatro livros sobre os evangelhos não reconhecidos pela Igreja, está preparando material para o próximo título, A infância de Jesus nos apócrifos.

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