segunda-feira, outubro 15, 2007

Os escritores de proveta

Mariana Filgueiras e Vivian Rangel

Carlos Drummond de Andrade não escondia que era mais transpiração. Conta-se que Flaubert reescrevia dezenas de vezes o mesmo capítulo, lendo em voz alta e consultando notas intermináveis. Otto Lara Resende era obsessivo a ponto de nunca dar um livro por terminado e fazer modificações na obra já impressa. Mesmo escavando com penas e canetas, noites inteiras em busca da mais harmônica combinação de palavras, a imagem do processo de escrita ainda hoje é associada à mera inspiração. Um dom orgânico e espontâneo raramente visto como trabalho árduo.

O maior reflexo desse equívoco conceitual é a escassez no Brasil de projetos públicos ou privados de apoio à criação. O debate, há anos discutido em encontros literários, ganhou as páginas dos jornais em 2004, com a divulgação do manifesto Literatura Urgente, capitaneado pelo poeta Ademir Assunção. O texto reivindicava incentivos a políticas públicas de criação literária, além de fomento à circulação de escritores em universidades - e entre países latino-americanos - e um sistema estatal de distribuição de livros, entre outros pedidos.

No fim do ano passado, uma resposta concreta: o Programa Petrobras Cultural abriu uma nova categoria de incentivo financeiro voltado à criação literária. O edital convocou autores que estavam no meio da elaboração de um livro (era preciso enviar 40% da obra) para um processo seletivo. Foram 423 projetos inscritos, de prosa e poesia. E 24 selecionados, cujos autores vão receber R$ 3 mil mensais, por um período de seis meses a um ano, para finalizar o texto. O melhor é que terão a garantia de publicação, já acertada em parceria com editoras.

- O projeto é o único existente no Brasil e dá um incentivo à produção literária, não um prêmio para um livro já publicado - detalha Arthur Nestrovski, integrante do Conselho do Programa Petrobras Cultural (PPC). - O programa já contemplava música, cinema, teatro e dança. Então, sugeri um edital para literatura, que de todas as áreas é a que tem menor custo.

Escrever um livro pode custar menos do que financiar artistas, cenário e direção para a montagem de uma peça teatral. O trabalho solitário, no entanto, muitas vezes é confundido com isolamento, como defende Rodrigo de Souza Leão, um dos selecionados.

- A classe dos escritores não é unida. Por isso, o teatro e o cinema recebem muito mais benefícios do que a literatura, onde a vaidade impera - acredita o escritor.

Além da falta de movimentação da classe, a ausência de financiamento para a concepção de livros é considerada reflexo cultural de uma sociedade que ainda pensa a literatura como atividade restrita a um grupo de privilegiados.

- Há uma concepção aristocrática da escrita literária. Parece que escrever é fácil como respirar, mas é uma atividade que demanda tempo, concentração e estabilidade financeira - opina Bruno Zeni, que participa do PPC com o romance Corpo a corpo com o concreto. - A não ser que você seja um abnegado ou um gênio, escrever é uma arte trabalhosa. Para mim, uma tarefa longa que significa luta interna.

O produto final, que na acepção mais simples é um mero objeto físico, ganha por vezes aura de hobby. O que, na opinião de outra escritora escolhida, Paula Glenadel, faz com que o livro seja visto como um passatempo pessoal do escritor.

- Não existe o hábito de encarar o ofício literário como uma produção no sentido estrito do termo, ou seja, como um processo de fabricação de um objeto da cultura - diz Paula.

Cintia Moscovith, também contemplada pelo PPC, acredita que o grupo é a "proveta da vez", pioneiro ao desfrutar de um incentivo direto em criação literária. A publicação das 24 obras financiadas pela Petrobras, no ano que vem, pode ser um indício da mudança de visão sobre a produção literária. E, quem sabe, até o apaziguamento da discussão sobre o papel do Estado em financiar cultura, que, se para alguns escritores é secundário, para Arthur Nestrovski é inquestionável.

- Não consigo imaginar um governo responsável que não zele pela sua produção cultural - opina o representante do conselho do PPC. - A cultura não pode ser deixada apenas nas mãos do mercado. A longo prazo, ela é a única coisa que fica da civilização. O que ficou das iniciativas políticas do governo alemão dos séculos 18 e 19? Ninguém se recorda. Mas escutamos A sétima sinfonia, de Beethoven, e lemos a poesia de Goethe.

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