segunda-feira, outubro 22, 2007

Que Brasil é este?

Rodrigo Camarão

Qual a semelhança entre um office-boy assassinado numa favela de Vila Isabel e a elevação do Brasil no índice de confiabilidade para o investidor estrangeiro? Nenhuma. Justamente por isso, os dois fatos publicados entre 14 e 15 de abril servem de paradigma para demonstrar o "monumento de injustiça social" que se tornou o país, na expressão de Eric Hobsbawm. A carga tributária brasileira chegou a 34,23% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2006. O número é muito parecido com o da Suíça (35,7%). Mas o Brasil não é, nem de perto, uma Suíça.
Apesar de pagar impostos como um país de Primeiro Mundo, a população brasileira amarga as maiores desigualdades de renda do planeta, sem direito mínimo a nenhum bem público como educação de qualidade, saúde, justiça rápida e universal e, muito menos, segurança pública. Diante desse quadro assustador, Arthur Ituassu e Rodrigo de Almeida buscaram especialistas nessas quatro metas fundamentais de um ser humano para perguntar: o Brasil tem jeito? O enorme ponto de interrogação é replicado por diversos pontos de exclamação de Adib Jatene, Dalmo Dallari, Luiz Eduardo Soares, Miriam Guindani, Maria Helena Guimarães de Castro, Roberto Pompeu de Toledo e Villas-Bôas Corrêa. Todos com notório saber em suas respectivas áreas.
Ituassu e Almeida, eles mesmos competentes jornalistas e pesquisadores, chegam à conclusão de que um dos maiores problemas do Brasil é a má aplicação dos recursos públicos que, apesar de volumosos, não chegam aonde deveriam. Param no meio do caminho, entre a corrupção e a leniência, a impunidade e o desrespeito às leis.
Sobre a sufocante carga tributária, os organizadores de O Brasil tem jeito? bradam: "O que prioritariamente não pode é que esta seja consumida sem a geração de qualquer benefício universal e igualitário à sociedade". Aí está o grande gargalo que impede o desenvolvimento do país. Vejamos o exemplo da educação, ministrado por Maria Helena Guimarães de Castro, professora da Universidade Estadual de Campinas e secretária estadual de Educação de São Paulo. Mais de 4% do PIB brasileiro são aplicados na área. O número está na média da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e é superior ao investido por Uruguai, Chile e Argentina. Só que os três vizinhos têm sistemas de educação melhores que os nossos. Basta acrescentar que o Brasil ignorou educadores como Paulo Freire. O Chile, não.
Na farta pesquisa para o desenvolvimento do livro, Ituassu e Almeida usam um relatório com dados de 1995 a 2004. Os números mostram que o governo federal gastou R$ 725 bilhões com o pagamento de juros, R$ 2,78 trilhões com o funcionamento da máquina pública, R$ 1,07 trilhão com os salários da burocracia e R$ 1,2 trilhão com a Previdência Social. São cifras demasiadamente grandes para um resultado tão ínfimo. "O gasto total com as quatro contas somou, entre 1995 e 2004, R$ 5,78 trilhões. Ou seja, seis vezes mais que o total (R$ 884 bilhões) executado no mesmo período com educação, saúde, segurança e infra-estrutura", atestam os autores. Haja desigualdade.
O Brasil tem jeito?, antes de um livro, é um importante documento. Trata-se de um registro de quão grandes são os desafios que o país precisa enfrentar para conseguir o básico. Apenas o mínimo, ironicamente garantido pela Constituição.
Arthur Ituassu, jornalista, mestre em relações internacionais, e Rodrigo de Almeida, também jornalista, mestre em ciência política, têm uma teoria para explicar o descalabro brasileiro: "Suspeitamos que tamanha injustiça social advém exatamente de uma distribuição não-pública da alta parcela da renda absorvida pela autoridade", escrevem, diplomaticamente. Poderiam ir além. Atribuir à corrupção ou à total falta de espírito público dos políticos o malfadado desenvolvimento do nosso país.
A obra realça quatro principais metas que, à primeira vista, parecem óbvias para qualquer suíço, mas não para um brasileiro: 1) a consolidação de um sistema de ensino básico universal, gratuito e de qualidade; 2) o estabelecimento de uma rede de saúde pública gratuita de qualidade; 3) a geração de um ordenamento jurídico rápido e eficiente; 4) a implementação de um corpo de segurança pública eficiente.
A professora Maria Helena Guimarães de Castro constata que, há muito, a educação básica deixou de ser prioridade. Sem isso, é impossível promover as mudanças desejáveis. A secretária de Educação de São Paulo mostra que é necessário investimento, incentivo ao professor, reorganização dos sistemas de ensino, metas de aprendizagem e alfabetização. "É preciso ter metas e padrões ambiciosos", ensina.
Adib Jatene, ex-ministro da Saúde nos governos Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, disseca a saúde brasileira. Percebe que, enquanto as técnicas da medicina foram aprimoradas, as melhorias permaneceram inacessíveis à grande maioria da população, não só brasileira como mundial. No Brasil, a transição demográfica fez com que a população envelhecesse, o que acarretou maior necessidade de atendimentos tanto na saúde como na previdência social.
"O setor privado gasta ao redor de R$ 80 bilhões por ano, aproximadamente o mesmo valor gasto pelos três níveis de governo", compara Jatene. Só que o guarda-chuva do setor privado cuida de menos de 40 milhões de pessoas e gasta aproximadamente R$ 2 mil por paciente. O setor público tem de prestar serviços a toda a população, de acordo com a Constituição, sem contar com o combate a endemias, vigilância epidemiológica e sanitária.
O professor Dalmo Dallari remonta às origens do Poder Judiciário brasileiro para julgar a ineficiência do nosso sistema legal. Mostra que a Justiça do Brasil foi marcada, desde o início, pela submissão, pelo controle exercido pelo imperador, pela discussão orçamentária no Executivo e Legislativo e pelo monopólio dos parlamentares na criação das leis processuais. Daí, prova Dallari, resultam as infinidades de recursos e as infindáveis delongas. Os mais pobres, sem acesso a melhores advogados e, conseqüentemente, às brechas na legislação, não conseguem embrenhar-se no emaranhado jurídico, onde repousa a impunidade.
Sobre a segurança pública, Luiz Eduardo Soares - um dos autores do livro que deu origem ao filme Tropa de elite - e Miriam Guindani colocam, novamente, o problema do tráfico entre os dilemas estruturais do Brasil. Citam as constantes violações dos direitos humanos dentro e fora das cadeias. Não passa despercebido aos autores o grave problema da corrupção policial e o estado deprimente das prisões brasileiras. Uma das soluções apresentadas até parece simples. É o investimento em políticas de prevenção ao crime, principalmente no âmbito municipal. Bem que doutor Jatene poderia dizer: "Melhor prevenir que remediar".
Fecham o livro com chave de ouro os jornalistas Villas-Bôas Corrêa, repórter político deste Jornal do Brasil, e Roberto Pompeu de Toledo, colunista da Veja. Ambos analisam a pergunta que dá nome ao livro. Invariavelmente, eles e todos os outros chegam à mesma resposta: sim.

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