quinta-feira, julho 09, 2009

"Como se fora brincadeira de roda..."

PASQUALE CIPRO NETO

Ademir não era ponteiro. Quando caía pela ponta, lá vinha Fiori: "Lá vai Ademir, como se fora ponteiro"

OS LOCUTORES esportivos de antigamente (como o inesquecível Fiori Giglioti) empregavam assim a forma verbal "fora": "Lá vai Ademir, como se fora ponteiro...". O Ademir em questão é o da Guia, um dos maiores poetas que a bola já conheceu. Verdadeiro polivalente (muito antes de Rinus Michels inventar o carrossel holandês), Ademir estava em todas as partes do campo, de onde saía limpinho, mesmo sob temporal (ninguém derrubava o Divino, sempre hirto, como um espartano).

Ademir não era ponteiro. O filho de Domingos da Guia era meio-campista. Quando caía pela ponta, lá vinha Fiori: "...como se fora...". De que verbo é "fora"? "Ser" ou "ir"? Pode ser dos dois, mas, no caso, é de "ser". Trata-se da terceira do singular do mais-que-perfeito, tempo que, como bem sabe o leitor habitual desta coluna, tem esse nome justamente porque designa fato passado anterior a outro (mais-que-perfeito = mais velho que o perfeito).

Os tempos verbais não são usados só com seu valor específico. Quando se diz "Não furtarás", não se quer dizer que se deve esperar o futuro para não furtar. Nesse caso, o verbo está no futuro, mas tem valor de imperativo ("não furtarás" = "não furtes"). Com o mais-que-perfeito, a coisa não é diferente. Vejamos este passo, de "Leite Derramado" (de Chico Buarque): "...ignorava que o pai de Matilde, cuja carreira medrara à sombra do meu pai, se bandeara gostosamente para a oposição".

As duas formas do mais-que-perfeito ("medrara" e "bandeara") foram empregadas com seu valor específico. A primeira, por sinal, tem no texto um sentido que nem todos conhecem, já que no dia a dia se emprega "medrar" com o sentido de "ter medo". No texto de Chico, significa "prosperar", "desenvolver-se". A forma simples do mais-que-perfeito tem uma correspondente composta (no texto de Chico, "tinha/havia medrado" e "tinha/havia bandeado", respectivamente). No "texto" de Fiori, "fora" equivale a "fosse", do imperfeito do subjuntivo: "Lá vai Ademir, como se fosse...".

Posto isso, vejamos uma questão do recém-realizado vestibular da Unesp. Baseada em "A Nova Califórnia", de Lima Barreto, a banca propôs isto: "Os verbos, quando flexionados no pretérito mais-que-perfeito, indicam uma ação que ocorreu antes de outra, também já passada. No fragmento de Lima Barreto, observam-se algumas formas no pretérito mais-que-perfeito: viera, pudera, fora, fizera.

Entretanto, uma dessas formas foi usada em lugar de outro tempo verbal. Indique qual é essa forma e qual o tempo que substitui, no contexto".

Eis as frases com as quatro formas: "Ninguém sabia donde viera aquele homem"; "O agente do correio pudera apenas..."; "...não fora a intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria..."; "...e se fizera sócio da farmácia para...". A resposta é a terceira, certo? Em "não fora a intervenção do farmacêutico", "fora" equivale a "fosse", do pretérito imperfeito do subjuntivo: "(Se) ...não fosse a intervenção do farmacêutico...". A questão me lembra uma bela canção de Luiz Gonzaga Jr ("Redescobrir"), imortalizada por Elis Regina: "Como se fora brincadeira de roda...".

E pensar que há algum tempo meu querido Jorge Portugal (irmão de fé e de alma, dos maiores letristas deste país) me mostrou um livro de teoria linguística em que dois gênios da pós-modernidade apregoam aos quatro ventos a tese de que a escola deve simplesmente banir do ensino de língua o pretérito mais-que-perfeito, por ser coisa do passado, desusada etc. É verdade. Chico Buarque é uma múmia. E eu adoro múmias. É isso.

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