terça-feira, junho 22, 2010

O SANTO GRAAL CURANDO A FERIDA NA PSIQUE OCIDENTAL

Roger J. Woolger

O Problema de Peixes

A consciência do Ocidente cristão permanece cindida, incapaz de resolver os opostos da Roma
(de Marte) e do Amor (de Vênus), apesar do surgimento de igrejas e movimentos espirituais
alternativos. Jung vê a cisão como refletida no simbolismo astrológico de Peixes que rege a Era
Cristã. Ele diz que esta é uma era na qual o problema dos opostos psíquicos está profundamente
acentuado. Jesus, como o conhecemos, logo foi assimilado na mente mística com o símbolo do
Peixe, não só como um pescador de homens, mas também como representante do arquétipo
dominante da era: os peixes gêmeos do signo de Peixes. O primeiro peixe parece ser Cristo, mas
então quem ou o que é o segundo? Acompanhando o pensamento de um grupo de autoridades
patrísticas antigas, incluindo o venerável Agostinho (um ex-Maniqueísta) Jung conclui que o
segundo peixe é o anti-Cristo, o lado sombrio de Cristo, cujo espírito virá dominar a segunda
metade da Era de Peixes, quando a energia de Cristo irá para o inconsciente. Jung vê que “um
abismo assustador abriu-se entre Cristo e anti-Cristo no século XI”, o que visionários como
Joachim de Flora compensaram com imagens apocalípticas de uma nova era do Espírito Santo.
Mas, infelizmente, o poder potencialmente revitalizante do espírito dispersou-se nos
movimentos coletivos que mencionamos e a Igreja enrijou-se em repressão e dogmatismo:
“A era do anti-Cristo merece censura pelo fato de que o espírito tornou-se não espiritual e o
arquétipo revitalizante gradualmente degenerou-se em racionalismo, intelectualismo, e
doutrinarismo, tudo o que resultou na tragédia dos tempos modernos”.

O próprio Jung tentou demonstrar em seus estudos de alquimia que, nessa disciplina arcana e
em grande parte subterrânea, a vida e os mistérios da transformação espiritual foram, entretanto, mantidos vivos. E, se os alquimistas eram os guardiões dos mistérios perdidos do espírito, os romances corteses e cultos do amor sobrevieram para manter vivos os mistérios da natureza e a Grande Mãe. Ao mesmo tempo, os Cátaros transmitiram o lumen naturae como sendo a emanação feminina do Espírito Santo (Sofia), pela imposição das mãos, um ritual equivalente à transmissão de barakah pelos Sufis ou do Shaktiput dos Yogis. Emma Jung esforçou-se para demonstrar que os romances do Graal são meditações coletivas sobre esse problema apresentado pelo inconsciente. Em todas essas correntes encontramos uma convergência de imagens de fontes celtas, orientais, cristãs e alquímicas, todas buscando um novo símbolo não apenas da transcendência espiritual, mas também da Divina Imanência na criação.


PARTE II: UMA INTERPRETAÇÃO DA LENDA DO GRAAL

Sinopse da Lenda

O romance Percival (1185), de Chretien de Troyes, a primeira de muitas versões da história
dos Graals, é de uma simplicidade e franqueza ausentes na versão posterior, uma trama mais
elaborada de cavalheirismo e Cruzadas, que encontramos no Parzifal (1212) alemão, de Wolfram
von Eschenbach. Especialistas notaram empréstimos óbvios das sagas galesas na primeira obra,
mas a lenda é essencialmente expressa na língua franca cavalheiresca conhecida em todas as
cortes, de Monmouth a Provença e de lá a Beirute. Diferentemente de Wolfram, não há
nenhuma tentativa de referência contemporânea; o cenário é in illo tempore, o “era uma vez” da
convenção do mito e das lendas folclóricas, em que a corte de Artur é tão remota no tempo e
espaço para o leitor medieval quanto Tróia o era para os gregos atenienses da Era Clássica.
Embora o mundo seja cristão, nenhuma explicação cristã do Graal é oferecida por Chretien – a
lenda de que o Graal é o cálice da Última Ceia trazida para a Bretanha por José de Arimatéia é
um acréscimo posterior. Portanto, o Graal aparece na primeira leitura com toda a
espontaneidade e mistério de uma poderosa imagem onírica.

Os elementos essenciais da estória são os seguintes: Um nobre, mas simples, jovem
galês cresce isolado no campo. Sua mãe, uma viúva triste, o mantém afastado da corte,
porque seu pai e seus dois irmãos haviam morrido em combate quando o jovem ainda era
bebê. Percival nunca tinha visto um cavalheiro, mas, quando finalmente vê, determinase
a ser um deles. Sua mãe desmaia quando sabe de seu intento, mas permite que vá,
desde que prometa respeitar todas as donzelas, freqüentar diariamente a igreja e nunca
fazer perguntas.

Numa série de aventuras ingênuas, ele encontra primeiro uma donzela, depois o
esplêndido Cavalheiro Vermelho, a quem mata para ficar com sua armadura. Nesse feito
é encorajado pelo Rei Artur, que acredita no presságio de que um tolo simplório será o
maior dos cavaleiros.

Depois de acompanhar o treinamento de Lorde Gornamant nas artes do combate e na
filosofia cavalheiresca, o jovem segue sozinho, novamente com o conselho de ser
prudente e não falar muito. Ele encontra Lady Blanchflor, a quem compromete seus
serviços na defesa das terras da senhora que estão sitiadas. Triunfante na sua tarefa e
amado por Blanchflor, tem franca liberdade para pretender a sua mão, mas decide, antes,
tentar encontrar sua velha mãe. Em sua busca, depara-se com o misterioso castelo do Rei
Pescador, que está gravemente ferido nas coxas. O rei só consegue algum alívio para a
dor quando está pescando. Em uma marcha solene, Percival vê uma lança coberta de
sangue e uma taça que brilha com uma luz fulgurante, mas, em atenção aos conselhos de
sua mãe e de seu professor, nada pergunta sobre o rei. (Mais tarde uma jovem virgem
contou-lhe que ele poderia ter curado o rei, se lhe tivesse feito as perguntas certas).
Na manhã seguinte, o rei, o castelo e todos seus habitantes haviam desaparecido.

Percival participa de muitas aventuras, mas, gradualmente, esquece tudo que lhe haviam
ensinado, esquece sua mãe, seu professor, Blanchflor e o Graal. Depois de muitos anos,
um ermitão lhe lembra de sua fé e de sua busca original, insinuando que a perda do Graal
teria a ver com o fato de que abandonara sua mãe, que depois morrera. O ermitão
também lhe conta sobre o pai do Rei Pescador, a quem o Graal é destinado e que mora
num aposento na parte interior do castelo alimentando-se apenas de hóstias. Aqui a
história (incompleta) é interrompida.

Percival, o Herói

Iniciemos pelo herói, Percival, cuja principal proeza na história de Chretien é descobrir o Graal
e curar, ou seja, aliviar, o sofrimento do Rei Pescador. Percival é a típica criança órfã de pai, um
arquétipo que comumente caracteriza o herói, onde frequentemente se infere que o pai
verdadeiro é um homem de alta posição social, ou até mesmo, em muitos mitos, um deus. Essa
falta de um pai tem muitas consequências no plano imediato; o pai sempre estabelece limites, os
limites do mundo, que podem ser limites de dinheiro, poder ou lei. A criança criada sem pai não
conhece as limitações imediatas (a mãe não pode contê-lo e secretamente o “endeusa”) e,
portanto, pode carregar uma energia e uma intrepidez que literalmente não conhecem
fronteiras. Os feitos de heróis crianças como Hércules exibem essa superabundância de vida
como poder físico; ou, como no caso de Jesus ainda criança no templo, há uma superabundância
de sabedoria, sem limites, não contaminada pelo cânone patriarcal.

Percival passa por um grande número de enfrentamentos cavalheirescos e logo prova sua
intrepidez física, mas é reconhecido menos por sua bravura e mais por sua simplicidade e por
uma negligência, um insouciance, particularmente em relação às mulheres. Ele se esquece de sua
mãe e se esquece de perguntar sobre o Graal, e esse seu descuido é uma imagem da tendência
que nós todos temos de permitir que o reconhecimento do fundamento feminino do nosso ser
caia no inconsciente.

No começo da história, Percival mora com a mãe e é chamado “o filhinho da viúva”. Pode não
ser coincidência o fato de que Mani, que deu origem ao Maniqueísmo, fora também chamado
“o filho da viúva”, assim como também o era Horus nos mistérios de Ísis. Tanto o profeta Mani
quanto o deus criança Horus são arautos do embate com as forças do bem e do mal a serviço da
suprema deusa, a Virgem do Mundo. Na história de Chretien, a mãe chora a morte do pai de
Percival “ferido nas coxas” (como o Rei Pescador) e dos seus dois outros filhos, todos mortos em
combate. Seu refúgio na floresta é como um regresso do arquétipo da mãe à natureza, indefesa
num mundo onde a força das armas ou de Marte é toda poderosa.

Isso também significa que o nosso herói está próximo da natureza, do self natural, instintivo e
espontâneo. E é essa parte de sua ingenuidade que o equipa para a tarefa de buscar os mistérios
do feminino; ele não tem medo dos poderes negros da deusa mãe que são tão aterrorizantes para
o filho do pai (é Gawain, o filho do pai, simbolizado por sua busca pela lança – o emblema fálico
– quem deve lidar com “a noiva abominável” ou com a figura da “bruxa horrenda”, e não
Percival).

Na verdade, todos os encontros de Percival com as donzelas na história são espontâneos,
calorosos e naturalmente sensuais. No seu encontro com a “donzela triste”, a história conta que
“ele a beijou e suavemente a puxou para debaixo de suas cobertas, e ela não resistiu a seus beijos
– os quais eu não acho que lhe foram desagradáveis. Assim ficaram deitados aquela noite lado a
lado, boca a boca, até que amanhecesse”.

Deve-se ressaltar que, embora eles tenham se beijado e se deitado juntos sob as cobertas, nada
é dito sobre fazer amor; o ato é uma expressão natural de sua atração mútua; não é nem
puramente sensual nem, como nas outras versões, uma negação deliberada do aspecto sensual.

Para Chretien, como para todos os Trovadores, a beleza da mulher é o reflexo da beleza de
Deus; o que no Judaísmo místico é chamado de Shekinah, a beleza da criação, que é a Noiva de
Deus. Essa concepção profunda e abrangente perdeu-se no Cristianismo Ocidental, porque, a
partir dos Pais do Deserto, ensinou-se que os bons Cristãos de ambos os sexos deveriam
desprezar o corpo, mortificar a carne e condená-la a austeridades extremas.

A doutrina de Shekinah não ficou perdida para o Islamismo, entretanto. Apesar de uma
superfície de puritanismo, alimentava-se, contudo, entre os Sufis, um erotismo místico de muitas
facetas. Por um lado, o Sufismo absorveu os ensinamentos não somente gnósticos, mas também
os neoplatônicos, que enfatizavam a correspondência entre a beleza transcendente e a imanente.
O falecido Henry Corbin, um dos grandes estudiosos ocidentais do Sufismo, escreve, a partir
dessa perspectiva, que “a beleza feminina é a teofania por excelência”, numa menção às palavras
do Profeta: “Eu vi Deus sob a mais bonita das formas”.

Corbin prossegue dizendo:

A beleza é um atributo essencial de Deus e não pode ser percebida, a não ser nas suas
criaturas; e, além disso, o amor pelo ser criado belo é a única experiência que pode
despertar um genuíno amor a Deus. E é por isso que o próprio Deus é a fonte e a
realidade de Eros e proíbe sua dupla dessacralização: dessacralização por libertinagem,
que é sua profanação; e dessacralização por meio de um ascetismo que é deliberado ou
que, por outro lado, inerentemente procura o sofrimento, o que acaba por equivaler a sua
negação.

Então, de alguma forma, Corbin e os Sufis sugerem que há um caminho do meio entre a Scylla
da libertinagem e a Caribde da autossuplício asceta. O caminho do meio dos Sufis que os
Trovadores, e depois Dante, claramente adotaram era precisamente o caminho da contemplação da beleza em sua encarnação feminina. Afirma-se em Eric, outra obra de Chretien:

O que posso dizer sobre a beleza dela? Na verdade, foi feita para ser admirada: pois nela
qualquer um pode ver a si próprio como se em um espelho.


Admirar um belo rosto ou um belo corpo é ver refletido nele o atributo divino da beleza
transcendente. O olho que vê torna-se o olho de Deus admirando sua criação. E esse olhar,
contemplando, é a ponte do encarnado para a alma. Ao fixar nossa atenção, vamos além do
simples desejo, além até da imaginação, pois não há mais nada a imaginar na presença da beleza.

A disciplina espiritual implícita nisso foi soberbamente expressa por Simone Weil:

O belo é uma atração carnal que nos mantém à distância e implica renúncia. E isso inclui
a renúncia daquilo que é o que há de mais profundamente assentado: a imaginação.
Queremos comer todos os outros objetos de desejo. O belo é aquilo que desejamos sem
pretender comer. Nós desejamos que seja... O belo é a presença real de Deus na
matéria...O encontro com o belo é um sacramento.

No Yoga Tântrico indiano, aquela ramificação secreta do Yoga que é dedicado à Grande
Deusa, há uma prática chamada Maithuna, que, segundo Mircea Eliade, é onde “a união sexual é
transformada num ritual por meio do qual o casal humano torna-se um casal divino”.
Uma jovem Yogini, escolhida por sua beleza, vive com um jovem Yogi treinado; e,
gradualmente, o casal, passando por vários estágios juntos, prepara-se para um intercurso
ritualístico. Fitar um ao outro, em estado de excitação, é um estágio previsto no processo
destinado ao despertar místico.

Assim escreve Eliade:

Toda mulher nua encarna prakrti (i.e. substância compreendida como
“material” feminino). Portanto, ela deve ser olhada com a mesma
adoração e o mesmo desapego com que uma pessoa exercita uma
reflexão sobre o insondável segredo da natureza, sua ilimitada
capacidade de criar. A nudez ritualística da yogini tem um valor
místico intrínseco; se, na presença da mulher nua, a pessoa não
encontra em seu ser interior mais profundo a mesma emoção
aterrorizante que sente diante da revelação do mistério cósmico, não
há rito, mas apenas um ato mundano com todas as conseqüências conhecidas
(fortalecimento da corrente kármica etc).

Se essas práticas foram importadas do Oriente durante as aberturas interativas dos Séculos XI
e XII, provavelmente nunca saberemos, devido à ameaça que representavam para o ascetismo
Cristão e para uma cultura que renegava o corpo e a terra. Fortes indícios da existência de tais
práticas, ou pelo menos do princípio da contemplação da beleza, são encontrados em Chretien e
nos Trovadores contemporâneos. Apesar de todo vigor e júbilo ostentado nas cortes de Anjou e
Languedoc, a cultura do l’amour courtois permaneceu restrita a uma minoria, destinada a
prosperar, mas apenas brevemente, deixando para trás somente esses vestígios literários.

Impossível não notar a diferença entre a atitude de Percival para com a donzela e o posterior
relevo dado à castidade e à pureza que encontramos na Morte D’Arthur (1845), de Malory.
Aqui somente Sir Galahad, o mais puro cavaleiro, é digno de buscar o Graal. Malory escreveu ao
final de um período que assistiu à intensa Cristianização da lenda do Graal e a sua posterior
espiritualização. Chretien de Troyes escreveu em meio à cultura insolentemente herege dos
Cátaros que estava associada a Eleanor de Aquitânia, neta de Guilleme IX, o primeiro Trovador
o qual citamos. Uma cultura que trouxe à vida mais uma vez “o antigo prazer em Eros e a
liberdade do espírito” (Heer), mas, de igual modo, uma cultura que foi, por essa mesma razão,
execrada por São Bernardo de Claraval que, como paradigma da ortodoxia espiritual, chamava-a
de “o demônio do Sul”. É bom lembrar que, entre os grandes sermões de São Bernardo, estão os
sobre o Cântico dos Cânticos, o mais sensual dos documentos do Velho Testamento e que
celebram o amor de Salomão por sua noiva negra Sulamita. Em comum com a tradição Patrística
e também Judaica, São Bernardo viu essa paixão como uma descrição totalmente alegórica da
união da alma com Deus!

O Rei Pescador

Nesse ponto – minha imagem da apaixonada, mas sensual, Eleanor de Aquitânia fitando,
através do abismo cultural do ardente Sudoeste, a face de um igualmente apaixonado, mas
místico, São Bernardo, na frieza e imponência de sua Abadia de Cluny, no Nordeste – nesse
ponto, antes que a terrível Cruzada Albigense que se precipitou em direção a Rhone e suprimiu
a fogo e espada “o demônio do Sul”, para vitória eterna e vergonha eterna dos líderes da Igreja,
vamos nos voltar para o que Wagner, Jung e T. S. Elliot consideraram como a imagem mais
intrigante do Conte Del Graal, de Chretien, aquela do Rei Pescador ferido em meio a le pay
gaste
– a terra devastada.

A Terra Devastada

Em quase todas as versões da lenda, como foi sintetizado por Jessie Weston em From Ritual to
Romance
, a ferida do Rei Pescador, ou Rei Graal (os quais às vezes são duas entidades) está
diretamente associada à seca prolongada que reduziu o campo a um terreno inculto. A tarefa do
herói, ao fazer a pergunta certa, seria tanto curar o rei como “liberar as águas”, para assim
restaurar a vida no reino.

Nas várias versões, três diferentes perguntas são formuladas, dependendo do tipo de texto que a
acompanha. No texto de Chretien, que, acredita-se, tenha sido o primeiro, a pergunta que
Percival deve formular é: ”A quem o Graal serve?”. Uma prosa quase contemporânea de Percival faz o herói perguntar: “O que é o Graal?”. No Parzifal, de Wolfram, entretanto, muito mais tarde, a terra devastada desaparece fazendo com que toda ênfase recaia sobre a ferida do Rei Amfortas e, para der reine Thor, o tolo puro, a pergunta é: “O que te dói, meu tio?”. Iniciarei
com a última, que se refere à ferida do Rei Pescador, pois ela nos leva diretamente ao cerne do
nosso problema e, além, para o mistério do Graal.

Na versão de Chretien, o pai de Percival foi ferido por uma azagaia nas coxas, como o foi o Rei
Pescador. Em outras versões era o tio de Percival, mas neste caso parece ser mesmo o pai, em
função do tipo de ferimento. Isso torna evidente que as terras do Rei Pescador e as águas que
Percival deve atravessar são miticamente a Terra dos Mortos, ou as trevas.

Podemos dizer que o Rei Pescador é o princípio paterno ferido – o enfraquecido, improdutivo
e espiritualmente abandonado mundo paterno do tempo de Chretien. Em virtude da analogia
com Cristo como Ichthys, o Pescador de Homens, Emma Jung escreve:

O Rei Graal como tal é como se fosse a imagem arquetípica do homem Cristão como
ele é visto da perspectiva do inconsciente. Visto assim, ele dissemina uma sombra
extraordinária.

Ele está ferido nas coxas, o lugar da geratividade. Se esse simbolismo não fosse por si claro, no
Parzifal, de Wolfram, ele se torna ainda mais explicito, pois o Rei Graal, o Rei Amfortas, foi
ferido nos testículos.

É esta, então, a imagem do homem Cristão que emergiu nas fantasias inconscientes dos
Trovadores do Século XII: um Pescador Real rico, mas, do ponto de vista sexual, horrivelmente
ferido, governando sobre uma terra que está desolada, infértil, improdutiva. A terra, na verdade,
reflete sua impotência; as águas da vida secaram por dentro e por fora.

Cabe ao inocente tolo perguntar àquela parte da nossa consciência Ocidental: Por que estamos
sexualmente mortos? Por que a nossa comunhão com a fecunda terra não é mais frutífera? O que há de podre ou de tão terrivelmente errado com a sexualidade do homem Cristão ocidental?

Em outras versões da história, a única coisa que pode aliviar o sofrimento do rei é a hóstia da
comunhão, que é depositada no Graal (de cima para baixo) no Domingo de Páscoa. Wolfram e
Wagner assim elaboram o mistério do poder curador da Eucaristia: é alívio e não cura real. E eu
creio que fracassa (como o fazem todas as posteriores versões mais Cristãs e de certo modo mais
sentimentais da história) como cura real, porque vem de cima; é uma solução apenas
transcendente ou espiritual. Os símbolos ou sacramentos Cristãos não podem mais ajudar,
porque o Cristianismo do Século XII está ele mesmo doente.

O antídoto não pode vir de cima, ele deve vir de onde a ferida está: de baixo. E é daí que vem
o problema mais profundo do Cristianismo cindido: abaixo está tudo que pertence ao diabo, ao
anti-Cristo. Eu proponho que seja essa a razão pela qual o Rei Pescador queima seus dedos no
salmão, que é o que ocorre em uma das versões: ele não é capaz de manusear o segundo peixe da
Era de Peixes. É muito quente. Queima suas mãos. A sexualidade, especialmente a sexualidade
sepultada, é fogo impossível de controlar, pois é fogo do inferno.

Mas há algo que está ainda mais abaixo, que é o Graal, a fonte da vida, da geratividade, do
Eros primordial. O Graal pertence a tudo que é macio, dócil, yin, no corpo, na terra, na Mãe:
pleno, rico, suave, gentil, e infinitamente abundante.

A sexualidade impotente é a degradação final de Marte, o espírito imperialista impositivo.
Marte era originalmente para os romanos um deus “Dionisíaco”, da fertilidade, cujo falo era a
charrua que engravidava Venus, a Mãe Terra, mas que também, com sua espada, protegia a terrados invasores. Devido à insegurança e a ânsia por poder, primeiro da Grécia colonial e depois da Roma Imperial, a relha transformou-se permanentemente na espada, e a ígnea semente da criação transformou-se em chamas da destruição. Isso porque Marte, quando é unicamente deus da guerra (como o Ares grego), perde sua conexão com a terra e se torna o bruto e voraz agressor sexual que não conhece limites, a não ser que seja refreado pelas leis rigorosas de uma autoridade maior. O Cristianismo romano freou essa libido selvagem, a serviço primeiro de uma religião imperial, depois da Inquisição e das Cruzadas, e finalmente do espírito Conquistador em sua insaciável ganância por mais conquistas ou “influências“ – que inicialmente buscou um ideal ascético ou puritano que contrabalançasse seu medo de resvalar para dentro da sombra pagã da libertinagem – e sua perda da corporificação sensual de Venus.

“O medo Cristão da perspectiva pagã danificou toda consciência do Homem”. Assim escreveu
D. H. Lawrence na sua última obra, Apocalipse. A ferida do Rei Pescador é a imagem medieval
daquela consciência danificada e da terrível alienação da Mãe Terra que ela forjou.

Emma Jung cita uma versão diversa, mas também dos primeiros anos, da lenda do Graal sobre
“a destruição do país de Logres”, um tipo de lembrança de uma Idade Arturiana distante anterior à Queda. Conforme segue, o poder terrível de Marte é claramente responsável pela perda do Graal e desolação da terra:

Uma vez viviam naquela região, numa certa puis, i.e. sepulturas ou grutas que abrigavam
nascentes, jovens virgens que costumavam revigorar, caçadores e peregrinos cansados
que por ali passavam, com comida e bebida. Bastava ir a um desses puis e expressar seus
desejos e imediatamente uma linda donzela apareceria, carregando uma tigela dourada
contendo todo tipo de alimento (também um tipo de graal). À primeira, se seguiria uma
segunda jovem portando uma alva toalha de mão e uma segunda tigela contendo o que
quer que o visitante desejasse. As donzelas serviam todos os viajantes dessa maneira, até
que um dia um rei chamado Amagons raptou uma delas e roubou sua tigela dourada. Seu
povo seguiu seu mau exemplo e as virgens nunca mais saíram da gruta para revigorar
peregrinos. Daquele tempo em diante, a região começou a se tornar árida. As árvores
perderam suas folhas, a grama e as flores murcharam, e a água faltou mais e mais.
“E daí em diante a corte do Pescador Rico que fazia o solo reluzir com ouro e prata, com
peles e coisas preciosas, com alimentos de toda sorte, com falcões, gaviões e gaviões
pardais, não seria mais vista. Naqueles dias quando a corte ainda podia ser vista, havia
riquezas e abundância por toda parte. Mas agora tudo isso está perdido para a terra de
Logres.

É lugar-comum no trabalho junguiano de sonhos que, quando uma imagem não pode ser
entendida ou assimilada pela consciência, ela retorne de formas ligeiramente diferentes outra
vez e outra vez, até que a consciência esteja mais apta a receber o seu significado. Wagner
batalhou com a ferida de Amfortas em Parsifal, e T. S. Eliot explorou a terra devastada como
uma paisagem contemporânea de sonhos, mas nenhum dos dois viu o problema como sexual.
Coube a D. H. Lawrence, que trabalhou mais próximo dos problemas do Cristianismo e do
paganismo, apresentar uma versão totalmente renovada do arquétipo nos seu último romance,
O Amante de Lady Chatterly. Na obra intencionalmente mal interpretada de Lawrence, a razão
pela qual Constance Chatterly procura um amante é porque seu marido está paralisado da
cintura para baixo devido a um ferimento sofrido na Grande Guerra. No caso do Rei Pescador
foi uma azagaia, no de Lord Chatterly foi um fragmento de granada, mas para ambos a
impotência sexual é a mesma. Ambos são governantes e membros de uma elite militar,
simbolizando arquetipicamente um dominante na consciência que está ferido de morte e que
não pode mais suster a cultura que governa deixando tudo que é feminino descontente e
improfícuo.
Assim como com os Romanos, assim com os Britânicos. A expansão incontida do imperialismo de Marte (sem levar em conta aqui o “bom” verniz da instrução e da civilização) leva inevitavelmente à dispersão completa da libido da terra mãe – uma total perda da conexão com o solo pátrio causada por séculos de adulteração que a mistura com culturas estrangeiras provoca, tudo a serviço de uma idéia grandiosa, mas lunática, chamada Império Britânico.

Do mesmíssimo modo com que os bárbaros inundaram Roma, assim também hoje Londres
está à mercê da onda de imigrantes de todas as raças, mal instruídos, desarraigados e
desnorteados, provindos das antigas colônias. É o retorno do reprimido: é a sombra Dionisíaca
pagã que volta para reivindicar o centro cada vez mais decadente da metrópole (literalmente:
“Cidade Mãe”), aquela espiritual terra devastada que foi tudo o que sobrou quando o dardo
imperialista foi de fato disparado.

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