sábado, junho 19, 2010

Leia última entrevista concedida por José Saramago à Folha

Em outubro de 2008, José Saramago conversou com a Folha durante pré-estreia do filme "Ensaio Sobre a Cegueira", no vilarejo de Alcochete. Em sua última entrevista à Folha, o escritor estava fragilizado, recuperando-se de uma pneumonia.

Na ocasião, Saramago falou à jornalista Sylvia Colombo sobre o lançamento de seu novo livro, "A Viagem do Elefante".

Confira abaixo a reportagem

Um vento frio batia no vilarejo de Alcochete, que fica à beira do rio Tejo, a poucos quilômetros de Lisboa, na noite da última terça-feira. Ali, num shopping moderninho a céu aberto, "Ensaio Sobre a Cegueira" teve uma acanhada pré-estréia, na terra do criador de sua trama, o escritor e Prêmio Nobel português José Saramago, 85.

Ao lado do diretor do filme, Fernando Meirelles, Saramago fez um curioso comentário. "A última vez em que estive em Alcochete, aqui só havia burros." Sentiu-se, então, um silêncio constrangedor na plateia.

Mas ele logo explicou o que queria dizer. No passado, a região era conhecida por ser um lugar onde burros de carga vinham tomar água e se alimentar. Mas, agora, parecia ter se tornado apenas mais um lugar a sucumbir ao capitalismo.

Logo ouviram-se risadinhas. Em parte deviam ser de alívio, dos reais moradores de Alcochete, que percebiam que não, não estavam sendo xingados.

Mas, no geral, o que elas mostravam mesmo era que os presentes reconheciam naquelas palavras o bom e velho Saramago. Sempre disposto a, a partir de uma situação comezinha qualquer do dia-a-dia, buscar analogias para lançar torpedos contra as crueldades do capital e da globalização.

No dia seguinte, na sede da Fundação José Saramago, em Lisboa, pergunto ao autor se, afinal, não era melhor para a pobre Alcochete, nos dias de hoje, ser a sede de um shopping center do que uma aldeia freqüentada por burros de carga.

"É óbvio que os que ali vivem assim pensam, mas alguém precisa surgir para avivar lembranças. Conservar a memória de um outro tempo ajuda a relativizar o atual."

No Brasil

Para o métier intelectual, Saramago é um esquerdista cabeça-dura incorrigível, mas ele parece não se importar com isso, e o fato é que seus livros caíram no gosto comum geral. Principalmente por parte do público brasileiro.

Os números de vendas ilustram isso. Atacado em Portugal pela Igreja Católica, "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" vendeu na ex-colônia mais de 200 mil exemplares. Já "Ensaio Sobre a Cegueira", 300 mil, número impulsionado agora pelo filme de Meirelles.

Esse vasto mercado e uma relação afetiva crescente com o país levaram Saramago a escolher o Brasil para receber sua nova obra, o romance "A Viagem do Elefante". No dia 27 de novembro, em evento no Sesc Pinheiros, ela terá seu lançamento mundial.

Na mesma semana, o Nobel será também homenageado pela Academia Brasileira de Letras, no Rio, e terá aberta no Instituto Tomie Ohtake, em SP, uma exposição com objetos pessoais e manuscritos.

Em entrevista à Folha, Saramago explicou que seu novo romance foi concebido há muito tempo, em 1999, mas que, apenas no último ano, quando esteve entre a vida e a morte, ele recebeu seu ponto final.

Fragilizado


Saramago ainda se recupera de uma grave doença respiratória, que quase o levou embora no ano passado. Na dedicatória de "A Viagem do Elefante", ele homenageia quem parece tê-lo salvo do pior: "A Pilar, que não deixou que eu morresse".

Pilar é a jornalista espanhola com quem está casado há mais de duas décadas. Mais jovem do que ele 28 anos, é ela quem organiza seus dias, vigia o que sai na imprensa e cada passo de lançamentos e entrevistas do marido mundo afora.

Mesmo fragilizado, ele continua com a agenda cheia. Fala, viaja e mantém um blog (caderno.josesaramago.org). O casal passa temporadas em Lisboa, mas mora mesmo na ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias, na Espanha.

"A Viagem do Elefante" parte de um episódio verídico e inusitado. Em 1551, o rei português dom João 3º deu de presente ao arquiduque da Áustria um elefante indiano.

Uma caravana, que literalmente caminhava a passo de elefante, atravessou então boa parte da Europa para entregar o animal a seu destino, causando sensação nos povoados ao longo do caminho.

Afinal, tratava-se de um animal que as pessoas, na época, sequer sabiam como era.

Na comitiva, iam um comandante, um tratador de elefantes, soldados e bois. Homens e animais se observam o tempo todo ao longo da narrativa. "Quis usar o elefante como metáfora da vida humana. Os homens não entendiam bem as reações e os sentimentos do animal, mas também talvez porque não entendessem os seus mesmos", diz o escritor.

Partindo de um exemplo da realidade histórica, Saramago aproxima-se do tipo de romances que escreveu nos anos 80, como "O Ano da Morte de Ricardo Reis" ou "História do Cerco de Lisboa".

Por outro lado, o livro é também uma grande fábula, como os que vieram a partir da década seguinte, como "As Intermitências da Morte", "A Caverna" ou o já citado "Ensaio sobre a Cegueira".

Igreja e capital


A obra traz provocações a seus inimigos de costume. Entre eles, a igreja. Num dado momento, a população de uma aldeia alerta o cura local de que algumas pessoas andavam dizendo que o elefante que por ali passava era uma representação de Deus, segundo os indianos. O padre resolve, então, exorcizar o elefante.

"A igreja, que, para efeitos propagandísticos, cultiva a modéstia e a humildade, nos comportamentos age com um orgulho sem limite. Por isso criei esse padre, que quer exorcizar um elefante, como se fosse possível imaginar o que vai ali pela cabeça do bicho e, por analogia, o que vai pela cabeça de um homem comum."

Já contra o capital, Saramago hoje posa com segurança devido ao cenário de crise global. "Algumas pessoas, entre as quais me incluo, já vínhamos avisando que algo assim ia acontecer. E agora o que vemos? Que aconteceu mesmo!"

A esquerda, porém, para ele, não tem como dar respostas à tragédia. "Não dá nem para dizer que há em processo a elaboração de uma alternativa."

Ortografia

Apesar de não querer saber de mudar seu modo de escrever, Saramago é um defensor do acordo ortográfico firmado entre países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e que começará a entrar em vigor no Brasil em janeiro do ano que vem.

"Ele é necessário, mais para nós do que para vocês. O Brasil é quem lidera o ensino e a divulgação da língua pelo mundo. Temos de nos adaptar, para o nosso próprio bem, para a sobrevivência da nossa cultura."

As novas regras vão afetar principalmente o uso dos acentos agudo e circunflexo, do trema e do hífen. Em Portugal, onde haverá mudanças maiores, houve resistência por parte de intelectuais. "Tenho certeza de que com o tempo verão que a mudança terá sido benéfica."

Ele mesmo, porém, diz que não vai mudar sua escrita. "Os que forem revisar meus textos que o façam. Podem republicar meus livros dentro das novas regras, mas não serei eu a aprender, a essa altura da vida, um outro jeito de escrever."


A esquerda, porém, para ele, não tem como dar respostas à tragédia. "Não dá nem para dizer que há em processo a elaboração de uma alternativa."

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