Desde 1998, o governo não consegue receber
das operadoras privadas de saúde o ressarcimento do SUS
ELIO GASPARI
O CERIMONIAL DAS campanhas eleitorais determina que a oposição prometa rios de mel, os governistas digam que eles já existem e ambos joguem os problemas sobre as costas dos outros.
Dilma Rousseff e José Serra formam uma dupla rara. Compartilham em silêncio pelo menos um desastre e poderiam explicar à patuleia o que pretendem fazer para consertá-lo. Trata-se de discutir a ruína do ressarcimento ao SUS dos custos que caem sobre a rede pública de saúde pelo atendimento dos clientes dos planos privados.
Essa questão está aí desde 1995, no início da gestão tucana, e é lei desde 1998.
O fracasso prosseguiu durante os oito anos petistas. Segundo o Tribunal de Contas, entre 2003 e 2007 a Viúva deixou de coletar pelo menos R$ 2,6 bilhões das operadoras de planos de saúde cujos clientes são atendidos na rede pública. A conta pode ter chegado a R$ 5 bilhões.
O governo entendeu que, se um cidadão paga um plano privado, a operadora ganha dinheiro bancando custos de sua saúde.
Caso um cliente do melhor plano do país sofra um grave traumatismo craniano num acidente de automóvel, deve ser levado para a emergência de um pronto-socorro público. (Se for para o melhor hospital privado da cidade, arrisca morrer antes da chegada da equipe de neurocirurgia, pois só há esse plantão em alguns pontos na rede do SUS.)
A vida desse paciente será decidida nas primeiras 24 horas, a um custo de pelo menos R$ 20 mil. Noutro exemplo, um cidadão precisa fazer hemodiálise, vai para a rede pública e, novamente, nada de reembolso.
As operadoras surram a Viúva há 12 anos. Marcando em cima no Congresso, na nobiliarquia médica e na Agência Nacional de Saúde Complementar, desossaram todas as iniciativas dos governos. Quatro mil cobranças estão travadas na Justiça.
Teatralmente, o ministro José Gomes Temporão enganou quem lhe dava crédito, inaugurando um novo sistema de cobrança que simplesmente não existia.
A ANSS tem agora cerca de 200 funcionários trabalhando na cobrança do ressarcimento. Estimando-se em R$ 4.000 o salário de cada um, custarão R$ 10 milhões anuais. Em 2008, no auge da ruína, a agência coletou R$ 2,6 milhões.
Dilma e Serra podem responder: noves fora platitudes, o que tenho a propor? Recomeçar do zero, mobilizando a opinião pública, como fez o companheiro Obama, pode ser uma boa ideia.
RECORDAR É VIVER
O poderoso banco de investimentos Goldman Sachs está lutando bravamente para entrar na engenharia financeira da capitalização da Petrobras. Dos grandes, é o único que está fora do negócio.
Deveria ser chamado a participar, desde que seu principal executivo, o doutor Lloyd Blankfein, peça desculpas públicas por uma molecagem e por um mau conselho que seu banco deu aos brasileiros.
A molecagem: No início da campanha presidencial de 2002, quando o dólar começou a subir, o Goldman Sachs criou o Lulômetro. Era uma elegante equação onde cada interessado podia prever o preço do dólar depois da eleição, mudando as variáveis de acordo com suas expectativas políticas. Num resultado otimista, a vitória de Lula levaria a moeda americana de R$ 2,70 para R$ 3,04. Caso José Serra fosse eleito, ela cairia para R$ 2,52. Terrorismo eleitoral, do bom.
O mau conselho: Em janeiro de 1999, quando o governo de Fernando Henrique Cardoso estava afogado numa crise cambial, o Goldman Sachs recomendou uma "medida de grande impacto", a privatização da Petrobras, da Caixa Econômica e do Banco do Brasil. Paulo Leme, diretor de mercados emergentes do banco, acreditava que o bota-fora aumentaria a credibilidade do país, e a Petrobras renderia até US$ 60 bilhões. O valor de mercado da empresa estava em US$ 15,4 bilhões. Hoje está em US$ 165 bilhões. Leme era um queridinho da ekipekonômica tucana, que desejava colocá-lo numa diretoria do Banco Central. Foi abatido em voo pelo então ministro José Serra.
CONVERSÃO DO CRENTE
O resultado da pesquisa CNI/ Ibope levanta a suspeita de que o tucanato esteja com a febre dos candidatos mordidos pelo mosquito que os leva a fazer campanhas com o objetivo de converter os convertidos. Essa prática ajudou a derrotar Lula em três eleições presidenciais.
Pregando para os convertidos, José Serra consegue que seus eleitores multipliquem a raiva que têm de Nosso Guia. O problema é que uma pessoa com cinco vezes mais raiva do PT continua valendo um só voto.
RETRANCA
O comissariado de Dilma Rousseff decidiu radicalizar a blindagem da candidata. E só deve se expor a diálogos, entrevistas ou sabatinas de risco zero. Se puder, ficará no "Bom dia, boa tarde".
OFF DEMAIS
A novela da indisciplina militar americana no Afeganistão está longe de terminar. O general Stanley McChrystal ficou no papel de paspalho por conta de seu exibicionismo pueril e cinematográfico, mas seu papel era secundário.
Desde que entrou na Casa Branca o companheiro Obama percebeu que os generais tentavam emparedá-lo, impondo-lhe a expansão da guerra. Nesse jogo, McChrystal sempre foi um peão de seu colega David Petraeus, muito mais esperto, ambicioso e hábil na manipulação de políticos e jornalistas. Petraeus foi para o lugar de McChrystal.
Quando se vê que McChrystal e seus Rambos foram apanhados dizendo bobagens para um jovem free-lancer que conheceram em Paris, percebe-se que os craques da grande imprensa que trabalham em Washington e Kabul estão ouvindo demais e publicando de menos.
O EMBAIXADOR INGLÊS CONTOU TUDO
Há um bom livro na praça. É "Diplomacia Suja", de Craig Murray, embaixador da Inglaterra no Uzbequistão de 2002 a 2004, quando foi posto para fora do serviço diplomático. Seu subtítulo diz tudo: "As conturbadas aventuras de um embaixador beberrão, mulherengo e caçador de ditadores, sem um pingo de arrependimento".
São três as qualidades do livro. Primeiro, dá uma ideia do que é a vida nas tiranias da Ásia Central pós-soviética. Islam Karimov, o cleptocrata uzbeque, ferve opositores.
Depois, Murray expõe a hipocrisia das chamadas "potências" ao lidar com essas ditaduras. Para os Estados Unidos, Karimov é um santo porque abriga uma base militar e torra as riquezas minerais do país.
Quando o ex-embaixador narra a maquinação que fraudou um relatório do FMI, entende-se o que foi a festa da globalização do século passado. Finalmente, o livro retrata o mundo mesquinho e covarde de uma burocracia diplomática. Nesse sentido, é uma leitura útil para quem vive ou pretende viver nesse meio. Para quem fantasia um serviço diplomático chique e inteligente, é um instrutivo choque de realidade.
Murray soa vulgar e machista, mas fica um registro: ele e Nadira, a stripper que conheceu em Tashkent, vivem juntos e felizes em Londres.
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