Não sou um mecanismo, um conjunto de peças.
E não é porque o mecanismo está funcionando mal
que estou doente.
Estou doente por causa das feridas da alma, no profundo eu emocional.
E as feridas da alma precisam de muito, muito tempo;
só o tempo pode ajudar,
e a paciência, e um certo arrependimento difícil, longo,
um difícil arrependimento, percepção do erro da vida,
e a nossa própria libertação da interminável repetição do erro,
que a humanidade em geral prefere santificar.
D. H. Lawrence, A Cura
Naquele ponto exato onde tua alma se torna carnal;
naquele exato ponto a cidade de Deus é criada, sem início.
Dame Juliana of Norwich, Revelations of Divine Love
INTRODUÇÃO
A lenda da busca do Santo Graal encontra expressão literária pela primeira vez, no fim do
Século XII, com a obra, do poeta Chretien de Troyes, cujo título é Percival ou A História do
Graal. Foi um dos últimos romances palacianos tecidos em torno da antiga Matiere de Bretagne
(Questão da Grã-Bretanha), extensa tradição oral que relata as explorações do Rei Artur e dos
Cavaleiros da Ordem da Távola Redonda no reino mítico de Avalon.
O aparecimento da lenda do Graal e dos romances arturianos nessa particular conjuntura da
história não foi mero acaso. A sociedade era universalmente feudal, o que significa dizer que
todos pertenciam à pirâmide patriarcal composta pelo lorde, o cavaleiro e o vassalo. A Igreja
Cristã aprendeu na Era Romana a se adaptar a essa estrutura de poder, adotando o modelo
imperial na sua hierarquia: Sumo Pontífice, arcebispos, padres, monges, freiras. Com raras
exceções dinásticas, as mulheres (as freiras, por exemplo) estavam na mais baixa escala e eram
frequentemente consideradas meros objetos de posse. E, como a Igreja era predominantemente
masculina e tecnicamente celibatária, um clima de repressão sexual aguda prevalecia.
A consequência inevitável de tal repressão foi uma prática extensiva da homossexualidade
dentro da Igreja e uma sucessão de episódios de histeria coletiva que culminou com a posterior
caça às bruxas. Sex in Society, soberba obra de Gordon Rattray Taylor, assim resume: “Não é
exagero dizer que a Europa Medieval relembrava um grande manicômio”.
Quando a sociedade inteira está desequilibrada pela unilateralização ou pela repressão, torna-se
previsível uma reação compensatória do inconsciente coletivo. Se essa reação vai-se
manifestar sob a forma de uma revolução na política ou em outra arena qualquer depende,
naturalmente, do grau de repressão. Na cultura decididamente masculina da Idade Média, a
reação veio sob a forma da cultura romântica dos Trovadores e de movimentos espirituais
populares, como o dos Cátaros, por exemplo. Ambos davam destaque ao feminino e ofereciam
alternativas tanto espirituais como leigas à ortodoxia vigente. O aparecimento desses
movimentos em uma cena há muito dominada pelo poder masculino provocou uma crise na
consciência da época, comparável, como Jung sugere em sua obra Aion, à crise da meia-idade de
indivíduos unilateralizados. Na verdade, a sociedade como um todo experimentou quase que um
colapso absoluto, com sintomas neuróticos, sonhos visionários e tentativas violentas de
recuperar o controle com subseqüente repressão.
No ensaio que segue, tentarei demonstrar que os mitos e lendas dos Séculos XI e XII podem
ser interpretados como sonhos coletivos da crise medial da Era Cristã. Para ilustrar, aplicaremos
o método de C. G. Jung de interpretação de sonhos à versão de Chretien de Troyes da lenda do
Graal. O ensaio será fundamentado na importante obra da esposa de Jung, Emma Jung, e na
perspectiva de amor romântico estabelecida por Denis de Rougemont, em seu O Amor e
Ocidente, e por Rattray Taylor, em sua obra acima citada.
Em conformidade com o método geral de Jung, a Parte I da interpretação “estabelece o
contexto” da lenda em termos sócio-históricos. No trabalho de sonhos, para estabelecer o
contexto “sócio-histórico”, pergunta-se o que um determinado sonho tem a ver com a vida atual
do sonhador e como o material simbólico pode ser relevante para a situação existencial no
momento do sonho.
Com raras exceções, não se fazem perguntas contextuais com relação a mitos. A tendência é
considerar, antes, seu significado universal e espiritual. No presente trabalho, no entanto, o
núcleo do mito vai ser interpretado especificamente para elucidar a psicopatologia da era na qual
ele surgiu, porque acredito assim poder lançar luz sobre problemas extremamente difíceis com
os quais ainda hoje pelejamos. Do mesmo modo que The Glory of Hera, de Philip Slater,
demonstra com sucesso – na minha opinião, pelo menos – como o mito e o drama grego refletem
as tensões patriarco-matriarcais da família grega, assim também acredito que se pode demonstrar que as lendas arturianas espelham crises recentes da identidade masculina e a distorção e alienação da parte feminina na psique do Ocidente.
Leitores que prefiram omitir a contextualização histórica, que certamente é remota e não tão
envolvente, podem tranquilamente proceder diretamente para a Parte II, onde lidamos com as
principais imagens simbólicas da lenda propriamente dita.
PARTE I: O CONTEXTO HISTÓRICO DA LENDA DO GRAAL
O Tumultuado Século XII: Uma Sociedade Aberta
O período em que Chretien escreveu foi um dos mais complexos e dinâmicos da história
medieval; foi uma era que testemunhou importante inquietação política, religiosa e social.
Em Aion, Jung a viu como um divisor de águas espiritual, surgido a meio caminho entre a Era de
Peixes e a Era Cristã – assim denominadas pelo mito astrológico da história. Embora a Espanha
Moura abrangesse também os árabes, a Primeira Cruzada, de 1096, re-despertou no Ocidente
um rápido interesse por Jerusalém.
Antes da Segunda Cruzada, de 1146, Jerusalém estava de novo esquecida; e perpetuado estava o
conflito entre a Igreja Romana e os vários califados e reinos islâmicos que se opunham ao recémnascido imperialismo religioso. Apesar dos elevados motivos religiosos que inspiraram os
primeiros cruzados, as Cruzadas logo degeneraram em feudos de ambição pessoal e ganância,
marcados por atrocidades e massacres de extrema crueldade. Mas, como ocorre com todas as
guerras de expansão contra um inimigo comum, as Cruzadas trouxeram um novo espírito de
unidade que beneficiou a Cristandade e reabriu uma vasta via de acesso para o Oriente.
Por essa via fluiu uma corrente regular de professores, médicos, alquimistas, animadores e
músicos, que trouxeram o conhecimento grego e a ciência árabe, que estavam esquecidos, de
volta para o Ocidente, modificando a face da Cristandade, que ainda lutava para sair do
feudalismo do período chamado Dark Ages. Os professores e médicos fundaram as primeiras
universidades da Espanha e da Itália (o uso da beca preta da academia é uma herança dos
professores árabes); os poucos alquimistas árabes propagaram as sementes da ciência Ocidental;
as canções de amor lírico dos árabes inspiraram um tipo de cantor nômade completamente novo
e sofisticado, o Trovador, um animador e satírico social cuja voz sobreviveria nas várias gerações
seguintes de livres-pensadores jovens e aventureiros inebriados diante do novo conhecimento e
impacientes com a hipocrisia da Igreja.
Os Trovadores não eram absolutamente os únicos a se impacientarem com a enfadonha e
muitas vezes corrupta hierarquia da Igreja de Roma. Numerosos movimentos religiosos
nasceram espontaneamente no que chamamos de âmbito popular – os Waldenses, os Patarenes,
os Homens Pobres de Lião, os Irmãos do Espírito Livre, os Cátaros ou Albigenses – inspirados
por jovens líderes carismáticos como Peter Waldo e Francisco de Assis.
A Europa dessa época era, como propôs Friedrich Heer, “uma sociedade aberta” na qual se
fomentavam o livre experimento e a investigação nas artes, nas ciências, na filosofia, pelo
influxo recente da cultura oriental e árabe. Esse fermento cultural também estimulou uma
revitalização do interesse nas tradições nativas, como a “Questão de Grã-Bretanha” mencionada
acima. Fora isso, surgiu no sul da França uma civilização extraordinariamente rica e
multifacetada que foi chamada de Civilização Provençal. Essa cultura contava com poetas
próprios – os Trovadores – sua própria epopéia, sua própria língua – a langue d’oc – e, acima de
tudo, cortes vibrantes, onde se desenvolveram as novas maneiras aristocráticas e os novos
códigos de honra do cavalheirismo, que posicionavam a dama, la donna, no coração de seu
universo social e de seu universo espiritual. Das exageradas fantasias dos Trovadores nasceu a
courtezia, o culto ao amor cortês, do qual o conceito (unicamente ocidental) de amor romântico
derivou.
Como resultado da maneira compartimentalizada como a história é escrita – arte, padrões
sociais, filosofia, política, todos tratados isoladamente – raramente considera-se que tenham sido
hereges somente as crenças religiosas da civilização de Languedoc, Provença e Poitou, porque
também sua própria cultura contestou todas as suposições dos mil anos de Cristianismo.
O Mundo Medieval, de Friedrich Heer, é um dos raros livros que tenta nos informar, na íntegra,
sobre as correntes e encadeamentos que alternadamente atuaram no processo: Celtas, Mouros
(considera-se islâmica a cosmologia de Dante), Espanhóis, Orientais, Maniqueístas, Gnósticos.
A Kabbala apareceu primeiramente no sul da França, por intermédio das comunidades
espanholas de judeus; diz-se que as cartas do Tarô entraram na Europa nesse período a partir de
uma fonte Sufi; a dança Morris inglesa era originalmente chamada de dança “Mourisca” e veio a
partir do casamento de Eleanor da Aquitânia com Henrique II, da Inglaterra. Numa época
posterior relatou-se que os Cavaleiros Templários teriam transmitido uma tradição secreta pela
Ordem Sufi Islamita localizada em Jerusalém e estabelecido centros de iniciação nos Pirineus.
Sabemos, por exemplo, que Wolfram Von Eschenbach, autor de Parzifal, foi um templário e,
conforme ele conta, baseou sua história em um certo Kyot, ou Guyot, de Provença.
Os Trovadores
Os Trovadores provinham da aristocracia. Guillaume IX (1071-1127) é normalmente tido em
conta como o primeiro Trovador. Ele foi Conde de Poitiers e Duque de Aquitânia, avô da famosa
Eleanor. Rebelde na juventude, Guillaume nutria pouco respeito pela devassa Igreja dos seus
dias; suas canzones (canções) eram repletas de sátiras e paródias do clero. Sua visão juvenil da
Dama está muito distante dos estereótipos elevados dos Trovadores posteriores; ele estava mais
para um Henry Miller medieval, absolutamente obsceno e licencioso, ecoando a turbulência da
Carmina Burana, uma coleção de potáveis canções monásticas. Em uma de suas canções, ele
proclama: dirai vos de con, cals es as leis, o que livremente traduzido significa: “Eu te direi tudo
sobre a boceta e suas leis”. Sua imagem da mulher certamente amadurece, mas, em sua paixão
selvagem, elas continuam sendo criaturas de carne e sangue. Guillaume estabeleceu o tom para o
desenvolvimento do que podemos chamar de contracultura do Século XII.
No tempo da carreira ascendente e tempestuosa de sua neta, Eleanor de Aquitânia, o culto
trovador já tinha desenvolvido um código comum de humildade, cortesia e devoção à dama,
tornando-o um culto refinado ao amor. Todo Trovador – nem todos agora nascidos na nobreza –
aspiravam ao amor de uma dama mais elevada que ele em categoria e espírito. Socialmente, a
dama era induzida pela convenção a rejeitá-lo para valorizar as “provas” que a busca dele
envolvia, mas, na realidade, havia muitas uniões adúlteras secretas, como na famosa história de
Tristão e Isolda. Bertran de Ventador é um bom exemplo da lealdade que o amor cortês deveria
demonstrar; ele idealizou uma paixão sem esperança por Eleanor, sua patronesse – sem
esperança em função de sua posição. Ainda assim ele jurou nunca alterar sua sina, que era a de
alternar esperança e desespero, por todos os reinos da terra.
O Culto à Dama
Não é demais ressaltar a excepcionalidade dessa eflorescência do culto ao feminino,
considerando-se que, mesmo na nossa Era chamada Iluminada, é tarefa sofrida e difícil para as
mulheres resgatarem status e dignidade espiritual semelhantes aos que obtiveram nessa época.
Se nós hoje deploramos a rigidez dos patriarcas dos dias atuais, uma rápida vista d’olhos à
brutalidade dos lordes medievais de primeira ordem, com seus cintos de castidade de ferro e
cruéis punições para o adultério, nos ajudará a perceber que uma extraordinária transformação
ocorreu nas almas daquela Era, promovida pelos Trovadores e por mulheres como Marie de
France e Eleanor de Aquitânia.
Historicamente, não há precedente próximo a essa mudança, uma vez que as antigas
mulheres romanas eram estritamente mantidas em casa como sabujas parideiras, e, mais tarde, os primeiros ascetas cristãos do deserto, ferozmente renegando a carne, faziam o possível para que as mulheres fossem vistas como enviadas de Satã. Além do mais, Maria, a mãe de Deus, ainda não tinha se tornado objeto de idolatria; ao contrário, a comunidade cristã sublimava o feminino na anima cultural da Mater Ecclesia, ou Madre Igreja, que era uma abstração cultural e não um objeto de devoção meditativa. Se há uma origem histórica para o ressurgimento do feminino, é muito mais provável que esteja relacionada aos cultos pagãos da Grande Deusa – os mistérios de Isis, de Diana de Eféso, e especialmente da Sofia dos gnósticos – que provavelmente foram levados para a Europa pelos contatos artísticos de Trovadores como Peire Vidal, que tinham visitado o Ocidente, e principalmente pelos Cátaros, que reverenciavam uma das versões de Sofia e ordenavam não só os homens mas também as mulheres ao sacerdócio.
E assim há como que um revigoramento da sombra pagã do Cristianismo, particularmente no
que pode ser chamado de dimensão dionisíaca e venusiana: o uso extático da arte, da música e do
corpo para atingir uma comunhão com a natureza divina do corpo. A paixão dos Trovadores era
terrena e sensual; já não há mais nenhuma justificativa para encarar as damas dos Trovadores
com as cores dos Pré-Rafaelitas, ou seja, como animas puramente etéreas separadas do corpo; os
Trovadores celebraram a encarnação do feminino exatamente como celebraram sua
espiritualização. O que é moderno no romans cortês de Chretien, Marie de France, Wolfram, e
Gottfried Von Strassburg é que, ao recontar as vicissitudes por que passa o herói em sua
tentativa de salvar e conquistar sua dama, essas narrativas revestem-se de uma forma medieval
de psicologia profunda, tão sofisticada na sua riqueza simbólica quanto as tramas oníricas da
anima e do animus identificadas por Jung e seus seguidores. Friedrich Heer sintetiza esse
processo com notável discernimento em seu Mundo Medieval:
Os remédios prescritos para o homem que se perdeu mil vezes no labirinto de suas
paixões imaturas são: mulher, “natureza”, mysterium. No romans, portanto, uma mulher
está sempre acessível para transformar e enobrecer um homem. Por intermédio dessa
relação com a mulher, o homem ganha acesso a sua própria alma, às camadas mais
profundas do seu “coração”; sua busca sensível por sua “rainha” o faz mais sábio, mais
sensível, mais consciencioso como pessoa.
O Significado Psicológico do Cavalheirismo
Se considerarmos a terrível aspereza das cenas com que se defrontavam os cruzados em seu
encontro diário, em batalha, com a morte, o estupro, a mutilação e o massacre, é possível
aquilatar a influência civilizatória dos “cortejos de amor” que vicejavam em Poitiers e Anjou, sob
os auspícios de Eleanor de Aquitânia, sobre a crueza da vida militar. As cruéis artes de Marte
fizeram sobressair, em um movimento compensatório, as artes suaves e sensuais de Vênus, uma
education sentimentale que influenciou a Idade Média e que também traz consigo a herança
literária e artística que chamamos de romance, o tema eterno de que amor vincit omnia – o
amor, em suas muitas formas, conquista tudo. Como C. S. Lewis disse, em sua famosa obra
A Alegoria do Amor:
Os Trovadores efetuaram uma mudança que não deixou nenhum recanto de nossa moral,
de nossa imaginação ou de nossa vida cotidiana intocado, e erigiram barreiras
intransponíveis entre nós e o passado clássico ou o presente oriental. Comparado a essa
revolução, o Renascimento é apenas uma pequena onda na superfície.
Quanto a Marte, eu sugeri em alguma outra de minhas obras que um dos efeitos de mais longo
alcance da adoção, por parte do Imperador Constantino, do Cristianismo como religião oficial do
Império Romano foi que, dali em diante, o Cristianismo do Ocidente tomou o caráter assertivo e
militar do arquétipo imperial e perdeu completamente a função de identificar-se com o
oprimido e perseguido – e a isso chamei de papel sacrifical Dionisíaco do Cristo crucificado.
Então, quando o martírio desapareceu da Igreja dos primeiros dias, que foi então substituída pela
Igreja Militante, toda relação recíproca entre perseguidor e perseguido reverteu-se – uma
dialética arquetipicamente simbolizada na díade Marte-Dioniso.
É um exemplo coletivo da estratégia defensiva conhecida na psicanálise como identificação
com o agressor. A conseqüência infeliz desse movimento, tanto no âmbito pessoal como no
âmbito coletivo, é que há, então, uma necessidade de encontrar uma vitima para contrabalançar
o recém-encontrado poder. As perseguições aos judeus vieram de encomenda para a assim
chamada Dark Ages, mas, com certeza, a resposta mais satisfatória quem a proveu foi o pagão
sarraceno nas guerras contra o Islã, uma religião igualmente Marciana e agressiva e imperial
sobre a qual os heróicos cruzados podiam facilmente projetar suas sombras vorazes (um jogo
satisfatório que é ainda atrativo para a América Cristã e o Irã muçulmano de hoje). Friedrich
Heer também vê essa tendência Marciana como unicamente romana, quando assinala que, por
contraste, a Igreja Oriental não reconheceu nenhuma guerra como “santa”; insistindo, ao
contrário, que “um Cristão deveria lutar com as armas de Cristo; suas batalhas deveriam ser
somente espirituais”. O Ocidente, por outro lado, seguiu literalmente o curso de Marte:
Em 1096 o hábito, agora com vários séculos de idade, de usar meios políticos para
subseqüentes fins religiosos tinha se tornado tão bem estabelecido no Ocidente que a
metáfora paulina de lutar por Cristo podia ser interpretada como um serviço militante da
nobreza.
Ao contrário disso, parece claro para mim que os romances corteses eram tentativas de sublimar, isto é, de re-espiritualizar o papel do nobre, por meio de um rigoroso código de honra
cavalheiresco, para assim redimir a metáfora paulina que se havia degenerado.
Heresia, Gnosticismo e Sexualidade
Se, como assinala Heer, não havia nada de novo no militarismo excessivo da Igreja Romana ao
lidar com rivais externos, também nada havia em sua supressão da ameaça interna de heresia
cuja origem não pudesse ser remontada aos primeiros séculos da Era Cristã. Por exemplo, um
historiador recente do Cristianismo, ele mesmo Católico, abertamente chamou Santo Agostinho
(354-430) de “o primeiro inquisidor”, por sua participação na perseguição dos hereges
Donatistas. Na verdade, o estabelecimento da autoridade de uma igreja centralizada em Roma
caminhava de mãos dadas com a supressão de escolas rivais de interpretação dos ensinamentos
de Cristo; eram igrejas alternativas as quais os historiadores livremente englobam sob o rótulo de Gnosticismo. Então, como ocorreu mil anos depois – e ocorre ainda hoje –, uma das disputas
centrais com os gnósticos, depois que eles foram elevados ao palco político, era sobre a posição
do principio feminino no ensinamento cristão e o problema conexo de reconciliar os dois
extremos conflitantes da natureza humana: espiritualidade e sexualidade.
Como sabemos pela História, a Igreja Romana muito cedo se tornou uma instituição
predominantemente patriarcal, e para ela a solução do problema da sexualidade era: uma grande
dose de negação sob a forma de celibato oficial e o ostentoso ascetismo dos Pais do Deserto.
Muitos cristãos gnósticos, por outro lado, continuavam a venerar a Deusa Mãe como igual ao
Deus Pai sob denominações tais como Isis, Barbelo, ou Sofia (e mais tarde Maria). Embora
algumas facções gnósticas tenham ficado tão ascéticas quanto a maioria de suas primas
ortodoxas, muitas adotaram uma prática espiritual diferente com respeito ao sexo cujo
significado real foi enterrado sob séculos de ofuscação puritana da história da Igreja. Uma
releitura da história da feitiçaria sintetiza assim suas descobertas recentes:
Os gnósticos eram ascetas de uma maneira difícil de as pessoas modernas entenderem.
Eles acreditavam em negar este mundo e purificarem-se, mas às vezes praticavam a
indulgência sexual como um meio de purificação. Ocasionalmente pareciam crer que a
melhor maneira de transcender “o mal” era experimentando-o. Eram sensíveis ao
ascetismo pagão, que, diferentemente do Cristianismo, incluía tanto a auto-indulgência
quanto a autonegação. Por exemplo, os ritos antigos da Grande Mãe incluíam orgias
sexuais, mas que eram supervisionadas por padres celibatários.
Hoje sabemos, graças a um grande número de histórias bem-pesquisadas sobre o “submundo”
do Cristianismo, que esses rituais sexuais praticados pelos primeiros gnósticos não
desapareceram simplesmente em função da perseguição. Ao contrário, eles foram recolhidos aos
padrões do mundo Cristão ortodoxo e sobreviveram em facções obscuras como a dos Paulicianos
ou nos segredos cuidadosamente guardados da tradição Hermética da alquimia, de onde ao final
foram absorvidos pelo Sufismo esotérico. Um lugar muito importante onde as práticas sexuais
dos gnósticos parecem ter sobrevivido de forma relativamente pacifica foi a Bulgária, em grande
parte porque ela não se converteu ao Cristianismo até 864 A. D. Esse país balcânico desde cedo
teria abrigado uma versão da heresia dualista Maniqueísta chamada Bogomilismo.
Originalmente os Bogomils eram estritamente puritanos, mas, sob a influência de uma seita
gnóstica chamada de os Massalianos, revisaram suas crenças e práticas concernentes ao corpo.
Foi dos Massalianos que tomaram a idéia de que, após um rígido período de purificação, seria
possível atingir um estado onde a negação não seria mais necessária, para que, assim, o adepto
pudesse envolver-se em qualquer ato sexual sem pecado.
A fusão das duas seitas assinaladas acima foi completada antes do Século X, período durante o
qual o Bogomilismo também se identificou com a luta dos servos búlgaros contra os despóticos
lordes cristãos. As crenças e práticas dos Bogomils espalharam-se pelo norte da Itália e depois
para o sul da França e, de lá, para todas as partes da Europa, onde os convertidos à nova fé
ficaram conhecidos como os Cátaros ou Cathari (do grego katharoi, que significa “os
purificados”). O Catarismo, ou a Heresia Albigense, como depois foi chamado (em função de sua
concentração em torno da cidade de Albi, na França), iria tornar-se a mais difundida de todas as
heresias medievais – popular a ponto de ameaçar a Igreja Católica em seu solo natal.
Os Cátaros se consideravam Cristãos e tinham seus próprios sacramentos e estágios de
iniciação e treinamento espiritual semelhantes aos do Yoga. Mas Jesus era para eles um Profeta
não divino e eles abominavam a Crucificação. Mulheres eram bem respeitadas; eram ordenadas
ao sacerdócio e depois se tornaram politicamente influentes. Parece provável, devido a sua
disseminação por todo o sul da França, particularmente Languedoc e Provença, que os Cathari
tenham exercido poderosa influência sobre a doutrina cortês de iniciação por meio de um
proibido, mas transcendente, caso de amor, cujo propósito não era a procriação, mas a
contemplação. O objetivo dos iniciados mais avançados, os Perfecti, era transcender o ciclo de
nascimento e morte e, para esse fim, desencorajavam o casamento, usando o sexo somente para
propósitos espirituais.
Fica claro, a partir dessa breve descrição, o quanto a igreja Cátara deve ter sido antitética ao
espírito do Catolicismo. Não é, então, totalmente surpreendente o fato de que, em 1208, o Papa
Inocêncio III tenha usado o assassinato de um de seus núncios, nos arredores de Toulouse, como
pretexto para armar uma guerra completa, a qual mais tarde foi chamada de Cruzada Albigense,
cujo fim era erradicar a civilização herege do sul da França. Populações inteiras das cidades de
Albi, Béziers, Carcassonne e Foix foram brutalmente massacradas. Depois de um amargo período
de 20 anos da campanha “ache e destrua”, a partir da qual a Igreja formou sua eficiente polícia
secreta, a Santa Inquisição, estima-se que aproximadamente meio milhão de Cátaros foi
queimado, ou de outra maneira morto, por sua fé. Quase nenhum traço dessa religião sobrevive
nos dias de hoje, mas o poder de sua fé pode ser aferido pelos fatos: os registros da Inquisição
indicam que apenas quatro hereges renegaram sua fé sob a ameaça de tortura e fogueira.
Os Cátaros podem muito bem ter ecoado o dito Donatista, suprimido séculos antes por
Agostinho, de que a “a verdadeira Igreja é aquela que é perseguida, não aquela que persegue”.
A Secreta Igreja do Amor
Antes do ataque ofensivo dessa trágica guerra (considerada por muitos como importante ponto
de decisão na história religiosa do Ocidente), a área que abrange de Languedoc ao nordeste dos
Pirineus já havia se tornado também um centro espiritual importante para ensinamentos
esotéricos, os quais reduziram as diferenças ortodoxas entre Cristianismo, Judaísmo e Islamismo.
Ali prosperou o aparecimento não somente de professores de inspiração gnóstica, como os
Cátaros, mas também kabbalistas judeus, mestres Sufi e possivelmente outros mais. Autoridades na história do esoterismo afirmam que eles todos tinham em mente um objetivo comum, qual seja, o de reinfundir no Cristianismo uma espiritualidade mística, reinserindo o principio feminino perdido no Ocidente. Pressentindo que o Catarismo pudesse não sobreviver ao grande poder de Roma, as antigas histórias celtas de Arthur e seus cavalheiros parecem ter sido conscientemente utilizadas para transmitir seus ensinamentos. Certamente, esses mitos prestam ouvidos a uma tradição matriarcal antiga que venerava a Deusa de muitas maneiras e tratava as mulheres como iguais – serve como ilustração o fato de que a deusa Ceridwen possuía um caldeirão mágico que pode bem sugerir um protótipo do Santo Graal.
Falando para uma camada profunda e possivelmente universal da velha psique europeia, esses
mitos serviram como veículo perfeito para uma doutrina gnóstica e esotérica da divindade da
Mãe e para um sentido mais elevado da busca cavalheiresca. Todas as ordens cavalheirescas
posteriores, especialmente os Cavaleiros Templários, refletem esse secreto conhecimento de
iniciação; e o mesmo ocorre com uma outra corrente que se iniciara, os Maçons, que
construíram seus segredos dentro da estrutura e sagrada geometria Pitagórica das grandes
catedrais góticas. A importância disso tudo no sul da França é mencionada nos escritos de
Wolfram Von Eschenbach (ele mesmo associado aos Templários), que coloca o castelo do Graal
nos Pirineus em sua obra posterior, Titurel. Segundo Heer, é provável que Chretien de Troyes
tenha sido ele mesmo um Cátaro.
Na maior parte dos casos, foram precisamente os Trovadores, os minnesingers e os menestréis
celtas que disseminaram os romances de Arthur, Lancelot, Tristão, e Gawain, retratando-os
como elegantemente ousados nas cortes onde predominava a courtezia, ou como mais espirituais
para o público cristão ortodoxo. Dos Séculos XII a XIV, todas as versões escritas dessas histórias,
se reunidas, formariam um volume tão grande e tão popular quanto a Bíblia. Certas imagens,
como a do jardim da Rosa, a fonte, a noiva abominável, a donzela aflita e, principalmente, o
Santo Graal reaparecem nas mais diversas formas. O símbolo da rosa, por exemplo, repete-se
entre os Sufis, no Roman de la Rose, no Paraíso de Dante, nas janelas da Catedral de Chartres, e
finalmente na mística Ordem Rosacruz. Nesses fragmentos percebem-se remanescentes da
difundida Igreja do Amor, que tentou, como expressaram os trovadores, reverter ROMA para
AMOR, mas, como malograram, foram forçados a tornarem-se secretos e a ocultarem seus
ensinamentos sob as alegorias de amor cortês.
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