sexta-feira, setembro 14, 2007

MÁRIO DE ANDRADE: CARTAS INDISCRETAS

A correspondência de Mário de Andrade tem sido lida e comentada por suas aparências, digamos, externas ou literais, quero dizer como simples subsídio para a história. Mas qual é o seu sentido profundo? - o que realmente significa como operação mental sem excluir o que reprime e o que representa como "tradução" subconsciente? Em outras palavras, o que nos deve interessar, para além do que nela deixou escrito, é a forma do seu espírito, a natureza de sua inteligência e mentalidade, tudo condicionado por fatores orgânicos e sociais. Trata-se de superar as redundâncias parafrásticas e as repetições da bibliografia corrente (inclusive por parte dos mais renomados especialistas andradinos) e passar para a história intelectual no sentido específico da expressão. É o que faz Marcos Antônio de Moraes em livro de alto gabarito crítico (Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2007).
Chegou então o momento de enfrentar, sem malícia, mas com honesta franqueza e isenção, algumas questões de ordem pessoal até agora mantidas sob discreto silêncio por amigos e familiares, uma delas a do homossexualismo, reprimido ou praticado na era anterior à do "orgulho gay". São inferências autorizadas pela atração que os efebos exerciam sobre ele como recíproca da que ele próprio exercia sobre eles. No Congresso de Escritores, em 1945, Mário de Andrade confinou-se entre os jovens mineiros, cuja companhia declarou preferir, a que corresponde em plano íntimo ao que escrevia em carta: "Se não me caso, não é por ser avesso ao casamento (...). Mas os meus amores crepusculejam ao nascer (...). Parece-me haver dentro de mim qualquer coisa que me faz sozinho".
Nas suas relações com Anita Malfatti, Henriqueta Lisboa e Oneyda Alvarenga, por exemplo, há evidentes conotações sexuais, frustradas, de um lado e do outro, por motivos diferentes e opostos. Confraternizando ardorosamente com os rapazes de Minas, sentia-se constrangido no que se refere a Henriqueta Lisboa: "Mário, aos poucos pressentindo uma ambiência de cumplicidade, mostra-se à amiga distante como um dilacerado, cindido, em permanente desajuste psicológico (...). Eu não posso lhe dizer tudo, Henriqueta, iria ferir suas delicadezas mais íntimas". Em carta a Fernando Mendes de Almeida, as suspeitas transformam-se em evidências: trata-se de uma "intrincada tentativa de diferenciação entre 'amor sexual' e 'amor de amigo', medidos pelos parâmetros 'moral', 'científico' e 'estético'". Era afeto que tinha "todos os reflexos biológicos do amor sexual, menos o sexo".
Aqui entramos num território de fronteiras movediças: Mário de Andrade leu as Cartas a um jovem poeta à luz de sua própria experiência: "Deixa traços no caminho da leitura (...), Esse leitor indiscreto, denunciado por suas pegadas (...) interessa-se pela conceituação da arte, percebida por Rilke como sistema que demanda a solidão". Era o papel didático das cartas, correspondendo ao seu próprio: "Solteirão inelutavelmente solitário". Homo sum, poderia repetir com os subentendidos implícitos, já que era homem à sua maneira, sem excluir nada do que é humano.
Compensando, de seu lado, o que certamente percebia como carência de masculinidade, era mentor autoritário e mestre esterilizador. Sob esse aspecto, são constrangedoras, à leitura, algumas cartas a Anita Malfatti e Oneyda Alvarenga, para nada dizer dos colaboradores pessoais, incapazes de se libertarem da imperiosa dominação, um deles, José Antônio Ferreira Prestes, terminando em suicídio. Em plano mais literário, há suspeitas e até acusações de plágio: "À força de admirá-lo, de reconhecer a sua superioridade - fato ligado à sua antiga ascendência de professor de que não consegui me libertar até hoje - nasceu em mim uma certa tendência perigosa para imitá-lo" (Oneyda Alvarenga). Quanto ao jovem arquiteto Luís Saia, obrigou-o a reescrever todo um estudo monográfico "porque nele se percebia a assimilação pouco crítica da sua escrita literária". Queixava-se ao mesmo tempo da "absurda, quase agressiva independência" de Fernando Mendes de Almeida por não se haver aconselhado com ele quando preparava um livro sobre folclore. O trabalho deixou-o "irritadíssimo", "encolerizado", sobretudo porque o autor não o procurara para dialogar com ele.
Essa tirania opressiva e paralisante era, aliás, reconhecida: "Só tive dois alunos verdadeiramente bons que reagiram conscientemente contra a excessiva influência que eu exercia sobre eles. Essa reação que sempre respeitei (sic) pela delicadeza moral que o fato acarreta, só lhes foi prejudicial".
Ou seja, melhor seria se se tivesem submetido... Mário de Andrade, professor de independência intelectual, preferia discípulos subservientes e adorantes, sob o risco das correções fraternas que não lhes poupava.

(DO JB ONLINE)

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