segunda-feira, setembro 24, 2007

O novo Olimpo de Fausto Wolff

Literatura brasileira - Em seu mais recente e volumoso romance (500 páginas cravadas), o escritor combina autobiografia e ficção para mostrar uma legião de deuses fracos e decaídos

Marcelo Backes - Escritor


Fausto Wolff é um mestre na arte de combinar autobiografia e ficção, memória e história, invenção e realidade. Desde O acrobata pede desculpas e cai, passando por À mão esquerda, uns dos melhores romances brasileiros dos últimos anos, até Olympia, são mais de quatro décadas de literatura brasileira misturando eu e mundo no caldeirão da arte.
Em Olympia, Fausto constrói seu próprio Olimpo, arremedando a Teogonia de Hesíodo com grande desenvoltura e sem o menor pudor. Em vez de um épico em hexâmetros, Fausto escreve um romance cheio de sarcasmo e ceticismo, mas não abre mão de contar sobre o devir do mundo e de seus deuses, outrora onipotentes, onipresentes e oniscientes, agora fracos, decaídos e atoleimados.
A mistura coerente entre autobiografia e ficção é levada às últimas conseqüências. Joel de Freitas (de Joel Silveira mais Jânio de Freitas), o personagem central, que já tem todas as características de Fausto e mais algumas, a certa altura do livro propõe aos amigos irem juntos à casa de Fausto Wolff, que mora ali perto, a fim de lhe pedirem uma pistola emprestada para levar a cabo a empreitada pícara a que se dispunham.
O jogo metalingüístico entre narrador, Deus e personagem é engenhoso; a simbiose, perfeita. Os três têm muito de Fausto Wolff; e o verdadeiro nome de Joel, que já tem muito de Fausto, é Jeová. A comunhão entre o mundo da criação literária e o da criação divina é executada com finura. Na verdade, Fausto cria dois mundos paralelos, que correm juntos em dimensões diferentes. De um lado podem ser encontrados os deuses demasiado humanos, de outro os homens quase divinos, pelo menos no nome - lembre-se de Jeová - e na capacidade de criação.
Também os elementos do romance policial, que Fausto Wolff mostrou dominar com O lobo atrás do espelho, estão presentes em Olympia. Há suspense e ação a não querer mais: um personagem que é castrado cirurgicamente num hospital, por vingança; crimes misteriosos contra políticos e traficantes, bem como um assassinato encomendado pela própria vítima, Jorginho Sete Quedas, um dos membros da trupe terrena que mapeia o Rio de Janeiro em seus passeios saudosistas. No citado O lobo atrás do espelho, aliás, o memorialismo de Fausto Wolff também está presente e chega a ser lembrado na brincadeira do subtítulo desse romance policial: O romance do século, que quer apenas referir - e ironicamente - o fato de a narrativa se estender ao longo de um século inteiro. Memorialismo? O bandido do romance lembra o Mão Esquerda de Deus do romance À mão esquerda, o Deus de Olympia e mais uma vez o próprio Fausto: wolf, em alemão, é lobo. E o assassino, seja ele a mão esquerda de Deus, seja o lobo, seja o próprio Deus - como acontece em Olympia - é sempre Fausto Wolff. Aliás, se um dia alguém dividiu os alemães em homicidas e suicidas, Fausto se alinha entre os primeiros, mas com melancolia, e mata apenas na ficção, embora sinta os apelos fortes da realidade.
Vários dos capítulos de Olympia começam com ensaios verdadeiramente iluministas, que desnudam o mundo e revelam o colunista vigoroso do Pasquim e o autor de A milésima segunda noite. Além da análise acurada da realidade brasileira, os ensaios de Olympia vão da política à psicologia, passando pela filosofia e arredores. Por exemplo: analisam o autismo a fundo, as coincidências das quais o mundo vai cheio e relativizam o tempo inclusive através dos nomes que o mesmo tempo recebe no Olimpo, onde não há semanas, dias, horas, minutos ou segundos, mas sim zios, bronzios, cômbrios, gorgios, pelágios e que tais. Fausto Wolff chega a examinar - e fundamentadamente - o desenvolvimento das sociedades grega e romana, bem como as condições que impulsionaram o surgimento do cristianismo e a ocorrência da Guerra de Tróia. E tudo em linguagem acessível, simples. E no que diz respeito ao caráter ensaístico de Olympia, aliás, sou obrigado a voltar a Hesíodo para fazer uma comparação. Se na Teogonia do autor beócio os estudiosos supõem uma série de inserções poéticas falsificadas - como por exemplo o Hino de Hécate - no livro de Fausto Wolff também não são poucas as inserções, nada falsificadas, é verdade. Tanto na obra de Hesíodo quanto na de Fausto as inserções se adaptam muito bem à forma muitas vezes paratática da escrita, à colagem de camadas narrativas muitas vezes diversas.
O relativismo canalha, condenado por Fausto Wolff em toda sua obra (até mesmo nos contos de O nome de Deus e O homem e seu algoz, duas obras iguais, e na poesia de obras como Cem poemas de amor e uma canção despreocupada), também é chicoteado em Olympia; o que é admirável, sobretudo tendo em vista o fato de que vivemos num mundo sem balizas nem fundamentos, que ainda por cima lança fogos de artifício aos céus vagos do presente, comemorando sua própria falta de orientação. Além disso há um punhado de histórias realistas e comoventes - nascidas da visão crítica típica do autor - como a da professora Aracy, que atam um nó convulso na garganta do leitor. E algumas passagens verdadeiramente tocantes em seu humanismo, como aquelas dos diálogos entre Sete Quedas e Joel (na já referida encomenda da própria morte por parte do primeiro) e entre Joel e seu tio, um colono bronco do Paraná. Sem contar os momentos poéticos, alguns deles esplêndidos em seu micrologismo quase ingênuo ("Os olhos, por incrível que pareça, eram verdes, mas não de um verde esmaecido e sim de um verde brilhante como gotas de orvalho penduradas numa graminha de manhã bem cedo.") Quando faz um Jesus mulato nascer no Rio de Janeiro, Fausto chega a se mostrar definitiva e religiosamente ingênuo.
O mito cosmogônico desenvolvido no romance é derrisório, divertido. Em Olympia, conforme já foi dito, até o Deus de Fausto Wolff vira assassino, dando mais força à luta do autor contra o mutismo, a auto-satisfação e a passividade entediada do mundo e das gentes que o habitam. E Deus - Barrosão - é humano, demasiado humano, até no nome, que refere o barro de onde veio. Aliás, não apenas no seu nome, mas também no nome de sua mulher-deus: Marileusa, esta mulher entre as mulheres, dieses Weib, essa femme comme il faut, esse pedaço de mau caminho, com odore di femmina.
Um dos deuses do Olimpo de Fausto, o Roberval, a certa altura sente o apelo da barbárie - do mundo natural - em sua forma mais elementar, renegando o caráter insípido e antisséptico do mundo evoluído em que vive e diz: "Ah, a vaporização dérmica é uma beleza, mas ainda gosto de dar uma boa cagada à moda antiga". E assim, de derrisão em derrisão, Fausto Wolff desenrola seu mito cosmogônico contemporâneo. A escatologia é apenas um dos índices do ceticismo fundamental da obra, que fica claro de vez no final - talvez fosse melhor dizer nos finais, já que há mais que um - clássico do romance. O que sobra é a impressão, inclusive a certeza, de que tudo não passou de um sonho - perdão, de um pesadelo - que logo passará a acontecer.
Pena, apenas, pela edição um tanto mal cuidada.

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