quarta-feira, maio 26, 2010

O PRIMEIRO PASSO

“Muitos anos depois, em frente ao pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o seu pai o levou a conhecer o gelo”.
A primeira frase pode condenar ou imortalizar uma história. Por assim dizer é o cartão de visitas de uma obra. Caso seja bem-sucedida, o leitor passa facilmente dela para a segunda, desta para a terceira e assim sucessivamente – até consumir o livro todo.
O primeiro caso é exemplar. Gabriel García Márquez optou dar início a Cem anos de solidão com o interessante recurso do flashback. Ele procura manter a curiosidade do leitor. Quem é o coronel Aureliano Buendía? O que fez para merecer o pelotão de fuzilamento? Para obter as respostas a essas e outras questões, só “enfrentando” a saga da família Buendía.
Machado de Assis era mestre em primeiras frases. Que tal esta: “Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos” (O espelho)? Ou esta: “A coisa mais árdua do mundo, depois do ofício de governar, seria dizer a idade exata de D. Benedita” (D. Benedita). Exemplos perfeitos sentenças curtas, secas e bem-humoradas que marcaram o Realismo e o Naturalismo.
O maranhense Ferreira Gullar não fica a dever. Em O benefício da dúvida, afirma: “Difícil é lidar com donos da verdade”. Seguiu a tendência das frases de efeito praticada por Leon Tolstoi: “Todas as famílias felizes se assemelham; mas cada família infeliz é infeliz a seu modo” (Ana Karenina). Jane Austen, em Orgulho e preconceito: “É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro na posse de uma bela fortuna necessita de uma esposa”. Outros preferiram a evocação heróica: “Chamai-me Ismael” (Herman Melville, Moby Dick).
Em O Ateneu, de Raul Pompéia, há uma primeira frase que tem aroma e sabor de clássico: “Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta”. Anoto aqui também uma passagem inicial de que gosto muito: “Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão embaraçados como quando procuram agrupar e harmonizar sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois estes se contradizem comumente e a tal ponto que não parecem provir de um mesmo indivíduo” (Da incoerência de nossas ações, de Michel de Montaigne).
Apenas para mencionar mais um clássico da literatura universal, temos a largada de Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra: “Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim fraco, e galgo corredor”.
Já demonstramos, com Ferreira Gullar, que a literatura maranhense também tem bons exemplos. O outro é este: “O que foi se diga, em honra da finada: nesta Ilha do Maranhão e, sobretudo, nos arrabaldes desta cidade de São Luís nunca houve nem jamais haverá mulher a quem um bumba-meu-boi tanto empolgasse como Maria Arcângela, urdideira de profissão, nascida nas primeiras palhoças de invasão, que o povo fez, bem ali na Quinta de Dona Berila e que depois, ele mesmo, o povo, gonjoso inconsciente do dom provinciano de bem falar o português, numa figura de palavra, gramaticalmente codificada, rebatizou com o nome de Belira (Maria Arcângela, de Erasmo Dias).
Fazer uma coletânea de melhores primeiras frases, contando apenas com a memória (minha biblioteca, que facilmente poderia fornecer o material de pesquisa adequado) é um desafio e tanto. Todavia, os apaixonados pelo livro e pela literatura hão de concordar comigo que o começo de A metamorfose, de Franz Kafka, não poderia ficar de fora: “Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto”.
A Bíblia, é claro, não poderia ficar de fora dessa lista. Para sempre o best-seller mais vendido e o mais lido conta como primeira frase simplesmente o relato da criação do universo e deste teatro do absurdo: “No princípio criou Deus os céus e a terra”. Um pequeno e importante preâmbulo para tudo o que vem depois, nesse grande livro, em termos de ação, romance, aventura, filosofia, reflexão e o que mais um leitor deseja encontrar em obras desse porte. Tudo em um pacote só.

Um comentário:

Laercio Campos disse...

A primeira frase de um livro é como a primeira frase que você diz, no primeiro encontro, a uma garota. Então, requer muito cuidado...rs

P.S.: A melhor para mim é a de Franz Kafka