sábado, novembro 03, 2007

GLÓRIA

Dia de Finados. Para mim, é tempo de reflexão. De pensar no quanto o exemplo dos que já foram dessa para bem melhor pode nos ajudar a compreender melhor o conceito de qualidade de vida.
Para uns e outros, não passa de um dia consagrado ao dolce far niente. Mas nada fazer em relação a trabalho, porque feriado devem ser comemorados com muito álcool e muito forró-sacode. Ou reggae. Ou brega. Sei lá.
Fui ao Cemitério do Turu. Minha mãe e minha tia estão lá. Ou melhor, o que restou de seus corpos físicos. Acredito que estejam - assim como minha avó, mãe de meu pai - sentadas à direita do Trono de Deus. À espera do momento da reencarnação. É, eu levo a sério os princípios do espiritismo.
Antes de entrar no campo-santo, vi alguns buquês que dariam belíssimos enfeites para a sepultura de azulejos brancos. Mas a minha pobreza não me permitia comprá-los. Acabei levando uma pequena e singela flor, acompanhada por um humilde vaso cheio de terra preta. Minha intenção era plantá-lá rente à sepultura - uma celebração à vida e também uma lembrança de que a morte é o portal para a eternidade.
Uma vez diante da sepultura, acendi as oito velas que estavam dentro de uma pequena sacola de plástico, com a qual saíra de casa, e fiz as orações básicas, o Pai-Nosso, a Ave-Maria e a Salve-Rainha. Ao mesmo tempo, as lembranças do bem que minha mãe inspirara, enquanto esteve entre nós, repetiam-se e libertavam o meu coração do pântano da tristeza.
Quando terminei um diálogo silencioso que travara com minha mãe após as orações, ouvi uma trêmula voz feminina começar um Pai-Nosso. Pedi a mamãe que esperasse um pouco e virei-me na direção original da voz. E vi uma senhora idosa - que devia de ter mais de setenta anos -, magra, baixa, o corpo curvado e o rosto esculpido pelo tempo. Seu cabelo tinha um tom de cinza que lembrou-me o de minha finada avó. As mãos dela, com os dedos entrelaçados, eram trêmulas. Vestia camisa e calça jeans - o que me levou a pensar que hoje em dia realmente nada mais é sagrado.
Ela sentiu-se observada. Em seguida, com um movimento ágil que eu não esperava de um corpo tão frágil, virou-se na minha direção, olhou bem nos meus olhos e sorriu, educada. Sorri também para ela. Não tinha como não simpatizar com a boa velhinha. Em seguida, ela retomou a seriedade e continuou sua oração. Eu teria também retornado ao diálogo com minha mãe se um vento maluco - desses que só ocorrem mesmo em novembro - não girasse por sobre o cemitério feito uma rápida tempestade tropical. Apagou todas as velas colocadas em todas as sepulturas e jogou meia tonelada de poeira e folhas secas sobre os túmulos sem parentes.
A lufada quase jogou no chão a pobre velha. A coitada precisou de vários minutos para se recompor. Eu precisei desse tempo para limpar a sepultura das irmãs queridas. Quando terminei, ouvi um lamento pontuado por suspiros de pura resignação: "Meus fósforos acabaram...". Era a velha. Acabara de reorganizar suas onze velas, mas não tinha com que acendê-las. Depois de acender as minhas, caminhei até a pobre desamparada, a fim de ajudá-la.
No Dia de Finados, reza a tradição que a luz de velas acesas indicam aos que se foram e porventura se encontrem na escuridão, o caminho que os levará à presença de Deus. Enquanto acendia as onze velas, soube da senhora que visitava a campa do marido, cujo casamento durou exatos cinqüenta e um anos, nove meses e quatro dias. Um longo romance, que teve fim quando ele escorregou no banheiro e bateu a cabeça na pia. Isso aconteceu há uns dois anos. Minha mãe faleceu há nove. Não tenho recordação alguma de ter visto antes a velhinha. Mas a vida é assim mesmo. Só damos conta do que e de quem nos interessa. O que ocorre à margem da existência não é importante.
No começo da vida sem ele, a senhora dissera, ela visitava o cemitério todo santo dia após o enterro. E em todas as visitas escandalizava os próprios vizinhos do marido ostentando, a poderosos decibéis, seu pranto de viúva recente. Até que um de seus doze irmãos lhe fez ver que a regra de ouro que ajudava a cicatrizar a ferida da perda era dar chance ao morto de se acostumar à sua condição de espírito. Porque o finado muito chorado não tem condições de evoluir. Crendice popular? Talvez. Mas não deixa de ser uma verdadeira lição para os que são chegados a exagerar no pranto e no luto.
Após acender as benditas velas, vi que eram quase quatro horas da tarde. Precisava voltar para casa. Quando retornasse, tomaria um rápido banho e procuraria o rumo do jornal. Trabalharia até altas horas e certamente esqueceria dos eventos do Dia de Finados. Graças a Deus, não ocorreu essa tragédia. Vinte e quatro horas depois de ter conhecido a simpática velhinha que homenageava o marido que tanto amara em vida e continuava fazê-lo com ele morto, ainda sou capaz de detalhar todos os passos que me levaram até a presença daquela figura tão doce. Talvez, quem sabe, se por acaso chegar aos mesmos setenta e poucos dessa boa criatura, não vá ter a mesma capacidade de discernimento. Se isso acontecer, espero que pelo menos possa contar com a distração dos netos. Sei lá.
Tudo o que sei agora é que, antes de ir embora, perguntei à senhora qual era o seu nome. "Glória", ela respondeu. Tinha que ser. Fazia todo o sentido.
Glória. Neste mundo, há poucas pessoas capazes de fazer justiça ao próprio nome. E tenho dito.

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