quinta-feira, novembro 15, 2007

Não é mais coisa de criança

Marco Antonio Barbosa

Saem de cena os uniformes coloridos, entram roupas comuns. Os superpoderes dão lugar a dramas mais palpáveis, cotidianos. A banca de jornal deixa de ser o palco da ação, cedendo espaço às livrarias. E o público-alvo já não usa calças curtas. O mercado brasileiro de quadrinhos adultos passa por um dos momentos mais interessantes de sua história - uma percepção confirmada pela quantidade de títulos expressivos chegando às lojas e pelo número de editoras de prestígio se lançando na área. Desde meados da década de 1980 as histórias em quadrinhos já não são mais vistas como mero passatempo de criança (com a consagração de graphic novels como Watchmen, V de Vingança e O cavaleiro das trevas). Cerca de duas décadas depois, o mercado de HQ para adultos parece finalmente chegar à maturidade.

- Tenho 35 anos e leio quadrinhos desde criança. E nunca tinha visto tantos títulos à venda. Creio que já existe um público cristalizado e fiel para esse tipo de HQ e que o mercado de lançamentos de luxo, para livrarias, ainda pode crescer muito - confirma Cassius Medauar, editor de quadrinhos da Pixel Media. Em 2007 a editora paulista pôs na rua ao menos um álbum de quadrinhos de luxo por mês. O mais recente foi o norte-americano Zombieworld: o campeão dos vermes, de Mike Mignola (texto), o autor de Hellboy, e Pat McEown (arte).

O boom é contextualizado por Otacílio D'Assunção, o quadrinista Ota - que acompanha os bastidores do mercado de HQ desde a década de 1970.

- Vivemos uma fase próspera para o quadrinho adulto e de luxo, com muita coisa boa inédita saindo e ótimas reedições também. As editoras agora contam com canais de distribuição próprios e estão mirando as livrarias - conta Ota, que cuida da seção de álbuns especiais da editora Record e agora prepara a reedição (com novo tratamento digital de cores) da clássica coleção do personagem Asterix, da dupla francesa Goiscinny & Uderzo.

Muitos e variados títulos, editados com um cuidado que antes só se dispensava à literatura; temáticas adultas e realistas, fugindo dos clichês de mutantes e homens voadores; tiragens relativamente baixas e concentradas nas livrarias e lojas especializadas; preços relativamente altos, em comparação com as revistas de linha, encontráveis em bancas; e um público ávido, capaz de sustentar o grande fluxo de lançamentos. Assim pode ser resumido o mercado atual dos álbuns de HQ de luxo e graphic novels. Títulos badalados, que chegam a reboque de sucessos do cinema, podem sair a preços de gente grande. Exemplos são 300, de Frank Miller & Lynn Varley (Devir, R$ 63) ou Sin City: de volta ao inferno, do mesmo Miller (Opera Graphica, R$ 59).

- Quem lança quadrinhos esperando encontrar o novo O Código da Vinci vai quebrar a cara. Trabalhamos com tiragens entre três e cinco mil exemplares, mas mesmo assim temos visto um aumento assombroso da procura do público. São leitores que pensam os quadrinhos de uma forma diferente, sem associar a arte a super-heróis - diz Amauri Stamboroski Jr., responsável pela edição de HQ da Conrad. A editora paulista é apontada como pioneira na invasão de quadrinhos nas livrarias, no fim da década passada. Encerrando o ano, a companhia lançará em dezembro Fun home, HQ autobiográfica da quadrinista norte-americana Alison Bechdel - laureada pela revista Time como um dos 10 melhores livros de 2006.

Ota concorda com a atitude pé-no-chão demonstrada por Amauri. Segundo o quadrinista, os números atingidos por revistas de super-heróis não se aplicam à realidade dos álbuns de luxo.

- As tiragens baixaram muito. Hoje em dia não é absurdo encontrar edições com mil exemplares. As editoras já perceberam que a lógica de vender em livrarias é diferente da mecânica da venda em banca, que precisa lidar com os encalhes.

Nem só de grandes lançamentos importados vivem os fãs da nona arte. A editora carioca Desiderata aposta no produto nacional, e divulga os álbuns A boa sorte de Solano Dominguez, escrito por Wander Antunes e desenhado por Mozart Couto (cuja arte é o destaque na ilustração desta página) e Caraíba, um dos últimos trabalhos do pioneiro Flávio Colin (1930-2002). Na fila de lançamentos, previsto para vir à luz no fim deste mês, está um álbum de reinterpretações - visando o leitor adulto - das fábulas dos irmãos Grimm assinadas por artistas como Alan Rabelo, Odyr e Rafael Coutinho.

- Serão versões levemente despudoradas de histórias tradicionais como A bela adormecida e Branca de Neve. Apesar de ainda haver um certo estereótipo da HQ como coisa de criança, o público tem dado um retorno rápido a nossos lançamentos - explica S. Lobo, editor de quadrinhos da Desiderata.

O bom momento para álbuns de luxo estimulou também veteranos a voltarem ao mercado. Caso da L&PM, que no longínquo ano de 1980 já arriscava os primeiros passos no campo dos quadrinhos para adultos.

- Somos pioneiros. Publicar HQ é uma vocação histórica da L&PM. Lançamos Hugo Pratt, Milo Manara e Guido Crepax no Brasil antes de todo mundo - relembra Ivan Pinheiro Machado, um dos fundadores da editora gaúcha. - Fizemos uma série de 120 álbuns com grandes nomes do quadrinho europeu. Mas lá pelo começo dos anos 90 a concorrência com a Abril e a Globo inviabilizou o negócio.

Depois de lançar o álbum Tangos & tragédias em quadrinhos, de Edgar Vasques (arte) e Claudio Levitan (texto), Machado prepara agora a volta de sua companhia ao mercado de graphic novels.

- Estamos fechando uma série de 30 títulos, com tiragens de até cinco mil exemplares cada. Serão obras estrangeiras e brasileiras. As outras editoras que se cuidem.

E olha que há muitas editoras por aí. Uma rápida consulta ao informativo Universo HQ, que monitora os lançamentos das principais companhias, dá conta de 12 títulos voltados para o público adulto chegando às livrarias apenas em novembro - do surrealismo de Dave Cooper (Escombros, Zarabatana Books) ao suspense de Greg Rucka (texto) e Steve Lieber (arte), em Whiteout: morte no gelo (Devir). Os fãs comemoram, mas estão alertas em relação ao perigo de uma sobrecarga.

- Já não consigo mais acompanhar tudo o que chega às lojas, por falta de dinheiro. Parei de gastar. O cidadão normal não tem como comprar todos os títulos. Pode haver uma implosão do mercado pelo excesso de oferta - acredita Ota.

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