quinta-feira, novembro 08, 2007

O ATO FINAL

O professor Daniel Mendes passou em claro a noite anterior. Cobriu quase todas as folhas de um caderno de 12 matérias com rascunhos a respeito de como poderia cometer o ato final de sua residência na terra. Afinal, depois de fazer com que seu raciocínio desse mil revoluções por minuto, de gastar muita tinta preta (ou afrodescendente) de sua caneta de 50 centavos e de beber todo o café da garrafa térmica de plástico azul, decidiu que o ato final trancorreria em cinco quadros, todos sem limite de tempo, e teriam como único ponto semelhante o amor.
Eram quatro horas da manhã. Um lençol de estrelas cobria a Ilha Grande, que dormia e sonhava com o milagroso retorno de São Sebastião. O professor Daniel Mendes apagou a luz do quarto e tentou dormir também. Mas em razão da quantidade absurda de cafeína maldigerada em seu organismo, seus poucos minutos de sono foram povoados pelo mau sonho recorrente: ele corria por uma alameda arruinada, e então tropeçou, caiu de rosto no chão recheado de pedras, as lentes dos óculos quebraram e alguns pedaços furaram-lhe os olhos, e o que era o mundo tornou-se para todo o sempre eterna escuridão.
"Ensaio sobre a cegueira", ele pensou, ao despertar, num pântano de suor e lágrimas. Achou que ficara mesmo cego, mergulhado nas trevas do quarto, até que o bom senso prevaleceu: lembrou-se da lâmpada apagada.
Sentou-se na cama. O rádio-relógio mostrava-lhe que eram seis horas da manhã. "Duas horas, apenas", murmurou. "Deve ser o novo recorde mundial". O café maldigerido ainda massacrava seu estômago. Conseguiu desfazer um princípio de náusea. Mas sabia que a loucura que cometera na madrugada cobraria-lhe o devido tributo cedo ou tarde. Então, que fosse cedo. Se ocorresse no meio da aula, o vexame seria histórico.
Em seguida, deu início ao ritual de todos os dias. Escovou os dentes, tomou banho, vestiu-se, organizou o material de que precisaria para as aulas do dia, deu uma volta pela casa antes de trancá-la. Às vezes, esquecia uma porta ou janela apenas encostada, e nessas ocasiões contou com uma boa dose de sorte. Lembrou-se do caderno de matéria com qual estivera às turras horas antes. Sorriu um pequeno sorriso maligno e começou a arrancar todas as folhas que havia rabiscado. Não satisfeto, pegou seu isqueiro e queimou-as juntas. À exceção daquela na qual riscara o nome proibido: Vanessa. Os pedaços enegrecidos das demais ficaram espalhados na cozinha. Este foi o primeiro quadro. O fim estava próximo.
No segundo quadro, bateu à porta de uma de suas vizinhas. Cujo nome, Vanessa, mortificava-lhe o coração depois de uma série de aulas marcadas pelo estgma da desilusão. A Vanessa que morava perto de sua casa nada tinha a ver com Ela, a Outra, a Maldita. Tinha 25 anos, estudava Medicina, queria fazer mestrado em Paris. Daniel murmurou "Eu sinto muito" antes de quebrar o pescoço dela. Vanessa também morava sozinha. A polícia demoraria uma vida para encontrar o corpo. Mas o fedor do cadáver poderia denunciar. Ele não tinha certeza. Vomitou o café da madrugada nos sapatos pretos. Então, foi mesmo cedo, graças a Deus.
O terceiro quadro foi especial. Sentado próximo à cobradora, Daniel esperou o ônibus entrar em uma avenida bastante movimentada. Então, tirou de dentro de sua maleta uma pistola Taurus prateada que brilhou cinematograficamente ao sol. A estudante sentada ao seu lado ficou lívida e boquiaberta. Demorou quase dois minutos, mas alguém se deu conta da gravidade da situação e gritou para o motorista: "Pára, que tem gente armada aqui!". O motorista levou muito ao pé da letra a ordem e pisou no freio e na embreagem ao mesmo tempo. Perdeu o controle do ônibus e tentou, em vão, evitar a batida em um carro que vinha no sentido contrário. Coincidência ou não, a motorista do carro, soube-se depois, chamava-se Vanessa. Que foi retirada morta das ferragens.
Na delegacia - o quarto quadro -, Daniel contou aos que se dispuseram a ouvir seu absurdo relato que precisava exorcizar um demônio que todo santo dia massacrava seu coração com promessas de amor que jamais seriam realizadas. O delago perguntou-lhe se esse "demônio' não teria um nome mais terreno. "Claro que tem", respondeu Daniel. "Vanessa. Meu alfa, meu ômega. Estou agora na fase do ômega. É o meu ato final".
A bem da verdade, o quinto quadro jamais ocorrerá. Daniel foi preso, condenado mais tarde a trocentos anos de prisão pelos crimes cometidos em um só dia e hoje está vivendo o tempo que lhe resta na Penitenciária de Pedrinhas. Eu o visito regularmente. Ele ainda pensa em Vanessa. Pergunto-lhe quem diabos é essa criatura, onde vive, o que faz da vida. Pergunto-lhe se não é uma fantasia urdida por sua mente fraturada para poder enfim realizar todas as cenas macabras que um dia idealizou, ao conversar com sua própria imagem refletida no espelho do banheiro.
Daniel Mendes sorri seu pequeno sorriso maligno. "Vanessa é o meu alfa e meu ômega". É a única resposta do louco.

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