quinta-feira, novembro 01, 2007

CORAÇÃO DE AREIA

O professor Daniel Mendes acreditava estar a dois passos de seu paraíso perdido.
Era quarta-feira, como não poderia deixar de ser. Uma quarta-feira sombria, nascida repleta de maus presságios às oito horas, quando o sol quase não superou uma grossa camada de nuvens negras. Mas foi uma vitória efêmera, porque logo os trovões iniciais apavoraram a cidade inteira, uma estranha ventania polar causou alvoroço na Rua Grande e logo em seguida desabou a Mãe de Todas as Tempestades - como mais tarde a imortalizariam os historiadores.
Era novembro, também, e por isso São Luís do Maranhão não estava pronta para o temporal. A época de mau tempo, em nossa cidade, vai de janeiro até o início de junho. No segundo semestre, o sol inclmente e o calor sem tréguas perturbam juízos, derrubam pareceres e condenam acordos. Por isso, quando viram a capital prematuramente devastada pelo aguaceiro, alguns incréus não resistiram a colocar "mais essa piada de mau gosto" no "vasto repertório das péssimas anedotas de Deus".
Nessa quarta-feira aziaga, o professor Daniel Mendes acordou com o calor indesejável de todos os dias, às seis em ponto, como era seu costume. Um solteirão convicto de quase trinta anos, morava na Cidade Operária, numa casa pequena em que não se precisava dar três passos para chegar ao quintal - dominado por uma solitária goiabeira, que ainda não estava florido.
Daniel Mendes era um sujeito alto e excessivamente magro, míope até não poder mais, e que não sabia coisa alguma a respeito de roupas. Por outro lado, lia de tudo. Até bula de remédio e tratados episcopais. E tinha bom gosto também, em suas leituras, pois não havia espaço em sua biblioteca para as "obra-primas" de Paulo Coelho.
Às sete em ponto, já estava confortavelmente instalado no banco de seu ônibus de todos os dias, a caminho da escola particular para cujos alunos transmitia boa parte do que aprendera na Faculdade de Letras. E, como em todos os dias, distraía-se da viagem de 40 minutos até o bairro Renascença com um dos livros de Gabriel García Márquez. Já havia percebido, antes de sair de casa, a luta do sol contra as nuvens tenebrosas, e percebera as primeiras lufadas do vento polar. A caminho do ponto de ônibus, viu os postes com suas luzes ainda acesas. Viu também alguns precavidos saindo de casa com guarda-chuvas. Mas não alterou seu cotidiano por isso. Quem mora aqui em São Luís sabe muito bem como o tempo daqui se modifica ao sabor de desígnios travessos de algum deus-moleque.
A situação não se alterou até quando o ônibus chegou à Cohab. E foi então que o professor Daniel Mendes, aos 29 anos, acreditou que chegara a uma espécie de encruzilhada particular. Porque cometeu o erro de erguer a cabeça - depois de ser atingido por um golpe do vento gelado - e perder o fio da meada da trama sobre a qual se concentrara. No que ergueu a cabeça, viu a mulher de cabelos vermelhos que um dia, numa época que para ele começava a pertencer a uma outra vida, estivera em seus braços - ambos deitados no que poderia ter sido o leito conjugal, o ponto de partida para um casamento que tinha tudo para ter sido perfeito.
Mas não foi. Porque a mulher de cabelos vermelhos mostrou que tinha areia no coração. Sem mais nem menos, num Carnaval que Daniel haveria de recordar mesmo em um milhão de encarnações, ela o abandonou em plena Madre Deus, no coração da fuzarca do Bicho Terra, depois de confessar sua paixão inesperada por outra pessoa.
A mulher de cabelos vermelhos e andar de dama em baile de fidalgos desapareceu por uma rua da Cohab. Nesse preciso instante, o ônibus parou - o último de uma extensa fileira de veículos, todos buzinando ao mesmo tempo. Acima de todo bem e de todo mal, o sol lentamente ia perdendo sua batalha e o vento polar intensificava-se. Fora do ônibus, pedestres começavam a caminhar mais rapidamente. Metade dos quisques da feira da Cohab não seriam abertos nessa quarta-feira miserável. A outra metade ficaria à mercê do temporal. Segundo os jornais dos dias seguinte, os donos dos estabelecimentos passariam semanas calculando os prejuízos.
E o professor Daniel Mendes - que não tivera a coragem de pelo menos tentar recuperar o tempo perdido - permaneceu sentado onde estava, com seu livro sobre os joelhos, sem atentar para a valsa dos ponteiros de seu relógio. Eram quase oito horas. Faltavam cinco minutos para o início da Mãe de Todas as Tempestades.

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