sexta-feira, novembro 09, 2007

A minha volta

JOSÉ CHAGAS

Tenho a satisfação de avisar aos meus distintos e fiéis leitores que estou de volta, para de novo situar-me no dia que aqui o jornal diz que é meu. Dia, por sinal, que o jornal guardou pacientemente à minha espera e sei que, com toda sua equipe, torcia por minha volta, compreendendo o meu silêncio e o meu distanciamento, pois na verdade eu me afastei de tudo e de todos. Mas explico essa minha atitude, aparentemente grosseira.
É que estou voltando de uma dura viagem que fiz em busca de mim mesmo.
Tive de, pela primeira vez, fazer uma coisa absolutamente inusitada em minha vida: passar alguns dias ocupado exclusivamente comigo, procurando em mim o que em mim estava faltando, talvez por causa de muitas outras coisas que eu mantinha em excesso.
Todos nós somos feitos de excessos e de faltas, nem sempre podendo manter o equilíbrio necessário à harmonia de nossa própria condição humana. E nessa viagem, vi que quem se busca no tempo nem sempre se encontra todo, pois percebe quanta coisa foi desperdiçada desnecessariamente. E só com um pouco de paciência, se é capaz de
salvar ainda algum resto que já não se tenha transformado em resíduos inúteis.
Compreendi, de certo modo, a razão de tudo aquilo que se pode ganhar com o tempo, e também a não razão de tudo aquilo que
com o tempo se vai perdendo. Pude contemplar de perto a minha própria natureza em choque comigo, por causa do abuso com que sempre a tratei. E então, assustado, me vi, por dentro, através de uma simples gota de sangue que me tiraram do dedo e puseram numa lâmina de microscópio.
Verdadeiros quadros, de uma impressionante plasticidade, como de pintores surrealistas, me mostravam, numa tela de tevê, os misteriosos monstros que, ao longo dos caminhos sanguíneos, circulavam dentro de mim, sem que deles eu tivesse conhecimento. Esses quadros indicavam o que eu tinha de mais ou de
menos e davam uma idéia nítida do meu desleixo para comigo. Era-me, pois, necessário esse mergulho em mim mesmo, para um contato direto com uma realidade íntima que até então eu tinha como se fosse algo fictício. Eu me sentia, mas não me pensava. Eu só me doía.
Mas, como já disse, para enfrentar tudo isso, foi necessário distanciar-me de todos, de dar uma parada, de ficar de molho, a conselho médico. Por um espaço de tempo maior do que eu calculava, tive de manter-me em silêncio, no jornal, o que causou preocupação para alguns leitores amigos, mas talvez até alívio para alguns outros. E se me calei, se me afastei, se me isolei, se me preocupei tanto comigo, não foi por egoísmo nem para fugir de ninguém, mas, de certa forma, para tentar ficar mais perto dos demais. Isso mesmo. Já eu havia lido algures que “o paradoxo da solidão é que ela nos prepara para a convivência, Estar só é promover a recarga para estar junto.” Essa verdade nos leva a outra que todo mundo percebe, mas nem sempre adota: é que ninguém pode conviver bem com os
outros, se não está bem consigo mesmo.
E eu estava mal comigo, da cabeça aos pés, o que não significa que esteja agora em perfeita saúde, uma vez que continuo um tratamento que tem de ser prolongado, tanto que estou ainda escrevendo muito devagar, visto que a barra pesou demais, pois envelhecer não é coisa com que se possa ficar brincando. Era preciso levar a sério o que o tempo e a vida estavam fazendo comigo, ou o que eu estava fazendo com ambos.
O caso é que fui para São Paulo, levando, na minha bagagem orgânica, digamos assim, uma carga de colite, sinusite, conjuntivite, labirintite, otite, enfim, tanta coisa acabada em ite que já não havia limite para nada nem mesmo palpite que me apontasse uma solução.
Além do mais eu nem sequer podia estabelecer esquemas diante de tudo isso, porque, em vez de esquemas, já me sentia era no mundo das isquemias, que me desequilibraram e me entonteceram, de modo que não me permitiam caminhar em linha reta nem também, em linha reta, ter meus pensamentos, pois na minha cabeça já não havia senão zumbidos ensurdecedores. A cabeça não estava louca,
mas era uma caixa oca, de ressonâncias dissonantes. Nem sei explicar isso.
Senti então em meu ser toda a ruidosa tortuosidade da vida. E vi que a viagem por dentro de mim, em busca de mim mesmo, tinha de ser por estradas curvas e turvas, pois, a essa altura, lutar pela vida é ter de encontrar brechas ou atalhos que facilitem a jornada íntima que cada um percorre ao longo dos anos. E eu literalmente andava tropeçando em mim mesmo. Mandavam-me caminhar. Mas como caminhar?
Enquanto isso o tempo continuava me trabalhando em silêncio, pois ia contando dias e horas para perfazer os meus oitenta e três anos, dando-me a certeza de que, no caminho da existência, um ano a mais é sempre um ano a menos. E assim, na manhã do dia 29, eu festejava minha data aniversária, numa clínica, com uma aplicação na região glútea e depois com soro na veia, acompanhado por um copo de suco de laranja. Era a continuidade do tratamento que eu vinha fazendo e era como se naquele dia a vida estivesse sendo injetada em mim, por mãos habilidosas de competentes enfermeiras.
Desde a véspera, amigos e amigas me telefonavam, desejando-me muitos anos de vida, e alguns até reclamando pelo fato de eu ter ido aniversariar longe. Mas eu não viajei para fazer aniversário fora daqui. Nem sequer pensei nisso, quando saí. Se pensasse, talvez pretendesse aniversariar, não longe no espaço, mas no tempo. Enfim, aniversariar, mesmo quando já se está mais para lá do que para cá, sempre é bom, desde que, pelo menos, faça a alegria dos amigos. E compreende-se também que a vida vale muito pelos bons amigos que temos. Sou grato a todos os que, de um modo ou de outro, me ajudaram na caminhada e continuam me ajudando.

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