domingo, novembro 18, 2007

O que fazer para o almoço?

Vivian Rangel

Ela detestava entrevistas embora adorasse interpelar escritores. Entristecia-se quando queriam conhecer a autora, e não a mulher. Teimava em construir vida própria, quiçá independente, "fazer um bloco separado da literatura". Temia expor-se demais nas crônicas mas, era inevitável, traía-se. Com tanta reserva em relação à vida pessoal, Clarice Lispector deixou poucas opções aos interessados em desvendar a persona Clarice por detrás de cada narrador. Restava resignar-se com as entrelinhas dos romances, as crônicas que volta e meia ostentavam trechos coincidentes com suas ficções - e as cartas. Como as que trocou com Fernando Sabino em Cartas perto do coração ou com o marido e a amiga Bluma Wainer, entre outros, reunidas nas Correspondências.

Mas é nas mensagens que enviou às irmãs Elisa e Tania, durante os anos em que morou no exterior, que Clarice Lispector - a mulher - está mais presente. Não que a escritora saia de cena, mas cede lugar a uma irmã carinhosa, uma esposa dedicada, uma leitora ávida. E - alegrem-se seguidores claricianos! - uma Clarice sem pudores narrativos, numa primeira pessoa que não se imaginava lida por ninguém mais que as próprias irmãs. Essa mulher recém-casada, recém-publicada e recém-moradora da Europa está em 120 cartas inéditas reunidas pela pesquisadora Teresa Montero em Minhas queridas, com lançamento marcado para o próximo sábado.

A primeira das cartas, abrindo a década de 40, mostra a escritora ainda solteira, morando no Rio e sobrevivendo de traduções. Logo depois o leitor chega a Belém, em pleno carnaval de 1944, quando Clarice tomou o primeiro pileque de sua vida, resultado de uma animada festa na casa do então cônsul americano. A ressaca nauseou a já senhora Gurgel Valente e autora estreante de Perto do coração selvagem. E apenas um pouco antes de atravessar o oceano Atlântico e chegar a Roma ainda em clima de Segunda Guerra. É quando ela se assume mais que nunca solitária, oprimida entre jantares, almoços e sorrisos no papel de primeira-dama diplomática. Dividida entre um isolamento tão desejado quanto sofrido em cidades como Roma, Florença, Torquay e, por último, Washington.

- O livro abrange um período muito extenso da vida de Clarice, de 1940 a 1956. São documentos únicos sobre a vida da escritora morando no estrangeiro - explica Teresa Montero, responsável por organizar as cartas. - Nas cartas, ela conta que livros estava lendo, que lugares a impressionaram, a que filmes e peças assistiu. É possível resgatar o que a inspirava.

Influências que mais tarde se revelariam fundamentais, como a descoberta do existencialismo, cujo sucesso explosivo ela credita ao pós-guerra. Explica a Elisa: "Todo mundo está doido para crer em alguma coisa depois dessa guerra, mesmo que essa crença seja uma descrença". Ou a música clássica que evoca carta a carta, da ópera de Wagner Lohengrin a O pássaro de fogo, de Stravinsky, passando por A sonata patética, de Beethoven. E livros: o erótico O amante de Lady Chaterlay. de H. D. Lawrence, o clássico O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë, ou o polêmico ensaio de Tolstoi O que é a arte , no qual o russo fala mal de Wagner e Beethoven e garante não entender Baudelaire.

Nos 16 anos de troca de correspondência, Clarice sofreria para começar, terminar e revisar contos que fariam parte de Laços de família e os romances O lustre, A cidade sitiada e A maça no escuro - que poderia ter sido batizado com o medonho título de A veia no pulso não fossem as críticas da irmã Tania e de Fernando Sabino.

A atividade literária estava entremeada com problemas cotidianos prosaicos: que fazenda comprar para o vestido apropriado a uma recepção na embaixada? Que fazer para o almoço? Como fazer render o açúcar racionado no pós-guerra?

- No fundo tudo está muito misturado. A Clarice escritora é também mãe e esposa de diplomata e nunca quis para si a condição de autora isolada numa torre de marfim. Chegava a escrever com a máquina no colo para ficar mais perto dos filhos - conta Teresa.

Nádia Gotlib, biógrafa de Clarice, acredita que essas cartas são um marco para os estudos sobre a escritora. Trazem, pela primeira vez, uma Clarice inserida no dia-a-dia de uma vida no exterior. Revelam ainda uma relação afetiva intensa e, ao mesmo tempo, uma ligação densa e cotidiana com a arte da ficção. Para Nádia - que acaba de enviar ao prelo uma fotobiografia da autora com 800 imagens e lançamento previsto para dezembro - as cartas de Clarice para as irmãs podem ser lidas como "crônicas da ausência".

- Clarice mantém o tom de conversa amigável e confidencial, mas sem perder a elegância, tanto na confissão de angústias quanto na manifestação bem-humorada de alguns momentos - analisa Nadia. - As cartas têm um caráter diversificado, ora parecem literatura de viagem, ora história da diplomacia. Há também observações sobre a crítica brasileira, que começava a comentar os livros dela.

Espalhadas entre autodefinições pessimistas - "tenho a pior espécie de snobismo (sic), que é o de não ter prazer no mundo" - existem de fato pérolas do humor clariciano, irônico e salpicado de um falso pudor subversivo. Um exemplo é o relato do encontro com soldados brasileiros que criaram uma musiquinha sobre o biscoito nabisco, ração americana de guerra, que era muito duro mas ficava mole embebido no leite. Ou confissões: "Entrei num curso por correspondência sobre ioga, um negócio indú (sic) ... Não conte a ninguém, senão me ridicularizam. (...) Vamos ver se viro super-homem, sem mudar de sexo". Difícil é imaginar Clarice no equilíbrio da posição de Lótus.

Nenhum comentário: