sexta-feira, novembro 02, 2007

A TERRA DO ESQUECIMENTO

A valsa surge de alguma das casas vazias da rua deserta daquela cidade abandonada. E não era uma cidade pequena. Ainda que não fosse uma das principais. Para percorrê-la de um extremo a outro, perdia-se apenas trinta minutos de vida. Ainda que grande parte do tempo de nossa existência se perca ao sabor das efemérides e das trivialidades.
Eu olhava para a rua deserta e não via nada além de um pequeno redemoinho que arrastava folhas mortas, mas sem sair do lugar. O silêncio era absoluto. Não ouvia sequer o canto dos pássaros. O mundo estava tão quieto que podia ouvir, com total nitidez, as revoluções por minuto do meu coração em seu cárcere de pele e ossos.
A cidade era a última etapa do meu exílio. Um ano antes, fui banido da minha terra natal porque - assim disseram os tribunos - meu engenho extrapolava o que todos na época consideravam os limites do conhecimento humano. De fato, minha família e meus amigos, diante de alguns dos meus inventos e experiências, não sabiam se testemunhavam um milagre ou um crime cometido contra o "Criador de Todas as Coisas" - se bem que ambas as alternativas davam no mesmo, pois os milagres, afirmavam, eram unicamente da alçada dos anjos ou dos homens que consideravam pios. Qualquer feito pelo menos digno de nota, cometido por um "mortal comum", recebia, de imediato, o rótulo de "transgressão da ordem vigente".
Mas não foi apenas por esse motivo que os tribunos (alguns dos tais "homens pios") decidiram pela minha expulsão. Na manhã de quarta-feira, em outubro, para a qual estava marcada a audiência em que eu tentaria convencê-los de que meu engenho afinal de contas estava a serviço da moral e dos bons costumes (a meia-verdade que teria sido minha salvação), Manoela apareceu na Magistratura, acompanhada pelos pais indignados.
Não sou capaz agora e também não faço a menor questão de recordar o sobrenome daquele astuto espírito maligno. Caso não tenha morrido sufocada com o veneno de sua própria maldade, já deve ter feito seus dezesseis anos. Aos 15, há um ano, mostrou como uma criança também pode praticar maldades como se adulta fosse.
Pois entrou na Magistratura de cabeça erguida e muito determinada a obter punição para o meu atentado à sua castidade. Jamais tive qualquer contato com essa criatura. Não teria nem mesmo se fosse louco o bastante para desejar menores de idade. Em minha terra natal, atos como esse são castigados com a execução sumária. Manoela inventou uma história na qual eu bebera mais do que a conta em um ritual pagão. E depois corri até as ruas mais obscuras da Cidade Baixa - onde ela morava, assim fiquei sabendo - para "caçar almas inocentes". A expressão utilizada pelos três soou com um dramatismo tão fácil que fui obrigado a rir dos infelizes. Já os tribunos não viram a mesma graça naquela situação incômoda para todos.
A pressão popular (todos estavam contra mim) para que eu fosse expulso cresceu após o advento de Manoela e seus pais. Não fui executado porque os tribunos chegaram à conclusão de que, na verdade, minha inclinação era pela "prática exacerbada de conecimento científico". Por outro lado, eu tinha, de fato, o costume de ficar bêbado nos rituais. O que poderia ter ensejado um novo processo - aceitação do paganismo - se eu mesmo não tivesse ido à Magistratura, a fim de perguntar o que haviam decidido a respeito da segunda acusação. "Não sabemos se você a violentou ou não", disseram os tribunos. "Pelo sim, pelo não, o melhor será você partir logo para seu exílio".
E assim começou a viagem pelo quatro cantos do mundo, até alcançar a terra do esquecimento, na qual uma valsa misteriosa surgia de uma das casas vazias de uma rua deserta, e na qual o silêncio era tão esmagador, tão opressivo e insidioso que eu conseguia ouvir, com impressionante nitidez, as revoluções por minuto do meu coração, aprisionado em seu cárcere de pele e ossos.

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