sexta-feira, outubro 12, 2012

A Ruanda de Paul Kagame

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1168214-a-ruanda-de-paul-kagame.shtml

12/10/2012 - 15h00

DAVID SMITH
DO "GUARDIAN", EM KIGALI


Uma fechadura de alta tecnologia, destravada por reconhecimento de impressões digitais, protege o escritório de Jean Gatabazi no hospital de Nyamata, uma cidade de Ruanda. Gatabazi diz que nos últimos cinco anos a cidade foi beneficiada por iluminação de ruas, uma estrada asfaltada e grande avanço nos negócios, depois de ter servido de cenário aos piores massacres no genocídio de 1994.
E ele sabe a quem cabe o crédito pela transformação: "Paul Kagame é um homem excelente", diz, com orgulho. "Herói é a palavra certa".
Wole Emmanuel - 18.fev.12/France Presse
Presidente de Ruanda, Paul Kagame, ao lado da líder da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf
Presidente de Ruanda, Paul Kagame, ao lado da líder da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf
O presidente Kagame parece ter despertado igual fascínio em Tony Blair (que o definiu como "líder visionário"), Bill Clinton ("um dos maiores líderes de nossa era"), Clare Short ("que gracinha"), e Howard Schultz, presidente da Starbucks, que foi persuadido a investir em Ruanda.
Tamanha idolatria desperta curiosidade: que espécie de encanto exerce esse estadista rígido, com seu jeitão de intelectual ou até mesmo de nerd, sobre tantos líderes ocidentais --e por esse encanto parece estar se esgotando?
Tudo que acontece em Ruanda precisa ser visto pelo prisma do genocídio, cem apocalípticos dias que resultaram no extermínio de 800 mil homens, mulheres, crianças e bebês, e que não deixaram família alguma do país incólume. Como comandante de um movimento guerrilheiro que avançou das regiões selvagens do país até a capital Kigali, foi Kagame que pôs fim ao pesadelo, e seus defensores afirmam que coube a ele também concentrar as atenções do país mais em reconciliação do que em revanche.
"Não estou certo de que Ruanda continuaria existindo, não fosse por ele", disse um empresário expatriado.
À primeira vista, não é difícil compreender por que os visitantes se deixam seduzir pela Ruanda de Kagame. Quaisquer que tenham sido os distúrbios pós-traumáticos que se tenham enraizado no inconsciente coletivo ao longo dos últimos 18 anos, na superfície a vida é ordeira, as ruas parecem limpas e as estradas estão livres dos buracos que prejudicam a circulação na maior parte da África.
Kigali está desenvolvendo sua reputação como cidade mais segura do continente. Trabalhadores assistenciais e turistas norte-americanos chegam para visitar uma versão da África que é tanto autêntica quanto acolhedora para os turistas.
Nos últimos dez anos, a frequência nas escolas primárias triplicou, a mortalidade infantil foi reduzida à metade e a presença de mulheres no Legislativo é a mais alta do planeta. Na semana passada, foi inaugurada a primeira biblioteca pública do país; as generosas janelas do edifício oferecem uma vista da embaixada dos EUA.
Jeannette, a mulher de Kigami, visitou o espaçoso edifício de US$ 3,5 milhões, e conversou com um grupo de crianças de 12 anos, articuladas e bem instruídas, beneficiadas pelo projeto "Um Laptop por Aluno" que cresce mais rápido na África.
Não admira que Ruanda seja citada como exemplo do benefício que as verbas assistenciais podem conferir, e serve como réplica conveniente às dúvidas expressas pelas pessoas céticas quanto ao valor da assistência externa, que gostariam que seus países reduzissem as verbas destinadas a auxiliar nações pobres. Kagame, 54, é visto como a face visionária de uma nova narrativa africana, vibrante, autoconfiante, deixando para trás a passividade e a condição de vítima.
Além disso, dizem alguns, essa postura pode ajudar o Ocidente a atenuar em alguma medida a culpa por sua passividade durante o genocídio. "Clinton e Blair talvez estejam rememorando seu período no poder, nos anos 90, e imaginando o que poderiam ter feito diferente, e como corrigir aqueles erros agora", afirma um observador.
LADO SINISTRO
Mas nos últimos anos, vem surgindo uma lenta e perturbadora compreensão de que o líder africano mais querido no Ocidente também tem seu lado sinistro. A Ruanda de Kagame, dizem os críticos do regime, é um Estado autoritário no qual a democracia e os direitos humanos são pisoteados e os dissidentes são reprimidos.
Chip East/Reuters - 24.set.09
Paul Kagame, presidente de Ruanda
Paul Kagame, presidente de Ruanda
Quando Kagame venceu a eleição de 2010 com 93% dos votos, por exemplo, três dos maiores partidos de oposição foram excluídos do pleito. Dois de seus líderes foram aprisionados e continuam a apodrecer na cadeia ainda hoje.
O terceiro, Frank Habineza, do Partido Democrático Verde, também passou algum tempo preso e depois se exilou, quando seu vice, André Kagwa Rwisereka, foi encontrado morto, quase decapitado. "Foi uma grande tristeza", relembra Habineza, que voltou ao seu país no mês passado depois de dois anos na Suécia. "Ele vinha à nossa casa, jantava conosco, era amigo da família. Foi uma morte terrível. Fui ao necrotério para prepará-lo para o funeral. Um momento de intimidade. Foi dilacerante para nós, mas precisamos nos recuperar".
Habineza, que começou a receber ameaças de morte depois que seu grupo se separou da Frente Patriótica Ruandesa (FPR), o partido de Kagame, sente frustração com os doadores internacionais de assistência, porque não pressionam em defesa da democracia. "Pedi que o Reino Unido e outros países agissem quanto ao espaço político em Ruanda, mas não entendo o que eles estão fazendo. Se a comunidade internacional assumisse uma postura mais ativa quanto ao espaço político e democracia, isso nos ajudaria muito".
Habineza recebe positivamente o trabalho da Iniciativa de Governança Africana, criada por Blair, em Ruanda, mas acrescenta que "peço a ele que sempre solicite ao presidente Kagame atenção a essas questões: democracia e desenvolvimento econômico combinados. Estamos dizendo que Ruanda está pronta para a democracia. Tony Blair deveria dizer o mesmo ao presidente. Não pode existir democracia em um país no qual não existem partidos de oposição ou liberdade de expressão".
Nos últimos anos, diversos jornalistas foram detidos ou assassinados, um general exilado sobreviveu a um ataque a tiros em Joanesburgo, e a Scotland Yard alertou dois ruandeses que vivem no exílio no Reino Unido de que "o governo ruandês representa ameaça iminente às suas vidas". Um relatório da Anistia Internacional divulgado esta semana aponta para uma série de detenções ilegais e torturas, entre as quais o uso de eletrochoques. Coincidência? O governo de Kagame insiste em que os incidentes sejam examinados caso a caso. Os críticos preferem unir os pontos e detectam um padrão que inclui esquadrões da morte patrocinados pelo Estado.
Jean Baptiste Icyitonderwa, secretário geral do Partido Social Imberakuri, alega que o líder da agremiação foi torturado na prisão. "Como membro da oposição, ninguém pode se considerar seguro", diz. "Muitas vezes você ouve dizer que líderes de oposição foram detidos, mortos, e alguns outros desapareceram, e outros ainda são perseguidos. Isso significa que quem pertence a um partido de oposição não pode se sentir seguro".
DITADOR
Boniface Twagirimana, vice-presidente das Forças Unidas Democráticas, um partido de oposição cujo líder está aprisionado, disse que "o presidente Kagame é um ditador. Ele opera como se ainda fosse um rebelde, na floresta. Não é o presidente do país como um todo, mas só dos membros da FPR. Não deseja abrir o espaço político e permitir liberdade de expressão".
Kagame prometeu que renunciará ao posto em 2017, quando acaba seu segundo mandato. Mas Twagirimama duvida. "Talvez ele mude a constituição para que possa continuar. Creio que gostaria de governar por 20, 30, 50 anos, como Robert Mugabe".
Alguns observadores argumentam que o governo da FPR se divide entre uma facção linha dura, militar, que considera que a repressão é um preço baixo a pagar pela paz entre as etnias hutu e tutsi depois do genocídio, e uma ala mais liberal, sensível a preocupações democráticas. Kagame, um militar transformado em estadista, enfrenta constantes dificuldades para equilibrar as duas forças.
Ele recentemente respondeu aos críticos das restrições à liberdade de expressão invocando as forças que negam o Holocausto. "Eles reclamam principalmente de leis relacionadas à ideologia genocida, e as defendo alegremente", disse Kagame ao jornal norte-americano "US Metro". "Os ruandeses não tolerarão vozes que promovam o retorno das divisões étnicas que precipitaram o genocídio, 18 anos atrás. Na medida em que limitamos a liberdade de expressão, é de maneira semelhante àquela pela qual boa parte da Europa tornou crime negar o Holocausto. Excetuado esse aspecto, Ruanda é um país muito livre e aberto".
O governo de Kagame alega que o Ocidente não deveria impor suas ideias de democracia à África. Os partidários dele incluem Gerald Mpyisi, diretor executivo do Instituto de Gestão e Liderança, que disse que "o presidente vem dirigindo o país como o presidente-executivo de uma empresa que garanta que cada diretor responda por seu departamento. E é por isso que, a despeito da falta de recursos, continuamos a ver realizações".
"Acredito que para um país de Terceiro Mundo se desenvolver é preciso que haja certa dose de organização da população. O Ocidente usa seus padrões para avaliar os países em desenvolvimento, e isso não é justo", diz.
Se Ruanda tivesse continuado a ser uma espécie de Cingapura africana, o Ocidente poderia ter continuado a ignorar a situação. Mas este ano, ao que parece, a máscara enfim caiu. Em junho, monitores da ONU acusaram Kagame de interferir na República Democrática do Congo, um país vizinho rico em minérios, apoiando uma rebelião conduzida por um líder suspeito de crimes de guerra e de atrocidades como estupros em massa. A Human Rights Watch recolheu provas que sustentam essas alegações, ferrenhamente negadas por Ruanda.
Os doadores internacionais por fim não tiveram escolha a não ser punir Kagame. Os oponentes internos do presidente agora querem mais. Twagirimama diz que "o dinheiro que o Reino Unido doa deveria ser suspenso. Está sendo usado para financiar o exército e bancar a campanha do Congo. Em um país sem sistema democrático, não é difícil usar esse dinheiro da forma como o presidente quiser. É por isso que o dinheiro está sendo usado para matar pessoas no Congo e o Reino Unido deveria suspender sua assistência".
A Human Rights Watch é um constante irritante para Kagame. Carina Tertsakian, pesquisadora da organização, terminou expulsa de Ruanda antes da última eleição. "Paul Kagame é uma figura que parece fascinar as pessoas", disse.
"Ele é muito inteligente e os governos ocidentais caíram em seu fingimento e ignoraram as violações e abusos. Mas quando chegou 2010, até mesmo o governo britânico teve de reconhecer que as coisas não estavam certas. O que estamos vendo é o desmonte da máquina de relações públicas ruandesa".
Tradução de PAULO MIGLIACCI.



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