quarta-feira, outubro 24, 2012

MAR DE HISTÓRIAS


A garrafa de Teacher’s e o copo de vidro no qual foram colocadas três pedras de gelo estão à esquerda da máquina de escrever. Já o maço de cigarros, ainda não aberto, e o cinzeiro metálico ficaram no lado direito.
            Um breve momento de reflexão: o que significa essa disposição de objetos? Quer dizer que há no coração um lugar cativo para a bebida? A nicotina e as demais substâncias perniciosas não podem afetar a Grande Bomba de jeito nenhum?
            “Perguntas inúteis demais”, o ghost writer pensa. Melhor começar logo o trabalho: um romance de mais ou menos 500 páginas para outro zé-mané a fim de ser alguém na vida por meio da literatura.
            O relógio na parede lhe mostra que já são quase oito horas da manhã iluminada de quase setembro. Um de seus melhores amigos costuma bradar: “Hoje é sexta-feira, véi!”. Isso mesmo. Fim de uma semana em que tudo (quase) deu certo. É. Faltou acertar os ponteiros com Suzana.
            Ele sacode a cabeça. “Deixa pra lá”, suspira. O importante mesmo foi ter recebido a grana que o doutor Mário lhe devia por tê-lo transformado em uma celebridade nacional da noite para o dia com os oito contos produzidos em três dias. O escritor sorriu. Desafiava qualquer metido a sabidão a ter uma tempestade cerebral parecida com a que teve depois de ter brigado, gritado, xingado e ser xingado de volta pela mulher que ama.
            Tudo ao redor, na sala de janelas fechadas e lâmpada apagada, é silêncio. Também não dá a mínima para os tênues barulhos do estéril turbilhão da rua.
            Coloca o papel na máquina e o deixa pronto para a primeira linha da história que pescou em mais uma noite passada em claro – enquanto a “acompanhante” do Coroadinho cujo número de celular vira nos classificados ressonava ao seu lado, na cama. Sono pesado após mais ou menos hora e meia de sexo meia-boca. Reconhecia que seu desempenho não fora dos melhores. Agora, mesmo se fosse um garanhão de filme pornô muito provavelmente para a bela morena adormecida daria no mesmo.
            Destampou a garrafa e despejou uísque no copo. Não estava de estômago vazio. Como de costume, passou a madrugada assaltando a geladeira. Antes de desistir de uma vez por todas de cair nos braços de Morfeu, teve como derradeiro lanche um copo de leite e quase todo seu estoque de pãezinhos de queijo.
            Abriu o maço. O isqueiro estava em uma das gavetas da escrivaninha. Bem em cima da resma de chamex. Acendeu o cigarro, expeliu fumaça pelas narinas como se fosse dragão de desenho animado e depois lançou um olhar perdido para um ponto qualquer da sala. Contra sua vontade, acabou tentando imaginar em que parte desta São Luís quatrocentona e, principalmente, com quem Vanessa poderia estar acordando.
            Ele sacode a cabeça de novo. “Que se dane. Agora é muito tarde. Tarde demais”. Curva-se ligeiramente sobre a máquina. Adora a boa e velha Olivetti. Ela lhe permite perceber com riqueza de detalhes a evolução do processo demiúrgico. O computador, com seu “delete”, tira muito do sentido dessa lavoura arcaica.
            Engoliu metade do uísque, respirou fundo e mandou ver:
            “O veterano advogado César Astolfo era um vascaíno fanático. Quando viu Diego Souza não marcar o gol que muito teria ajudado seu Trem-Bala da Colina a se classificar para as semifinais da Libertadores, o especialista em defender os pobres e oprimidos de patrões salafrários esbravejou e xingou o atacante além do que seu frágil coração podia suportar”.
            O barulho da datilografia cessa. Ele relê o parágrafo. Mais uma vez a história do coração. Até parece que está preocupado com algum eventual problema cardíaco. Com a bebida, o cigarro e o sedentarismo – e já se vão uns bons cinco anos nessa toada quase diariamente -, o ghost se considera pronto para o seu primeiro enfarto. O primeiro e definitivo. Dá de ombros. Quem sabe, não é não?
            “Oi”.
            A voz da garota de programa – e “garota” é a palavra certa porque assim, no “olhômetro”, ela parece não ter mais de 20 anos – era suave e tranquilizadora. Aliás, alguém, em algum lugar do passado, ensinou a mocinha a não desperdiçar palavras e movimentos. Todos os gestos dela eram perfeitamente calculados. E sempre quando o escritor lhe fazia uma pergunta, por mais banal que fosse, a menina pensava duas ou até mesmo três vezes antes de responder. Essas respostar, é bom que se diga, nada tinham de patéticas ou sem relevância.
            “Oi”, ele devolveu. “Acordou cedo”.
            A garota sorriu. Um sorriso lindo. Vestia as roupas com que chegara ao apartamento – blusa vermelha e calça jeans. O ghost gostou do cabelo dela: bem escuro, vasto, derramando-se pelas costas feito a noite sem luar.
            “Eu sou assim”, ela declarou. Três sofás grandes e confortáveis por perto e mesmo assim permanecia de pé, na metade da distância entre onde ele se sentara e a porta. “Nunca fico na casa de um cliente mais do que o necessário”.
            “Pelo menos você beija na boca. Já é um avanço”.
            “Tenho muitas colegas que não beijam. Acho besteira. Eu beijo numa boa. Só não sinto nada”.
            Foi a vez dele sorrir.
            “Nadinha mesmo?”
            “Nada. Porque pra eu sentir eu tenho que gostar do cara”.
            “E você não gostou de mim”.
            “Bem...”.
            O escritor não conteve o riso.
            “Obrigado pela sinceridade”.
            “Você se ofendeu”.
            “Não, querida. De jeito nenhum. Gosto de pessoas autênticas. Na verdade, aqui e agora, o único de nós dois sem um pingo de autenticidade sou eu”. Volta a ficar sério. “Já quer ir embora?”.
            “Depende. Ainda vai precisar de mim?”
            Ele demora um pouco para responder.
            “Sim, eu vou precisar”.
            “Muito bem. O valor é o mesmo”.
            “Meio salgado”.
            “Não ouvi reclamação, ontem”.
            “Não mesmo, gata. É só zoação”.
            “Muito bem. O que quer que eu faça?”
            “Nada a ver com sacanagem, desta vez”.
            A menina fica meio séria, meio sorridente.
            “Como é que é?”
            “Venha cá. Sente aqui do meu lado”.
            O ghost fica de pé. Está sem camisa. É um desastre, em termos de preparo físico. A garota de programa teve essa mesma opinião, quando o viu tirar a camisa. Pensou em aconselhá-lo a procurar uma academia, e com urgência. Achou melhor calar a boca. Em geral, as pessoas não gostam de ouvir certas verdades.
            Ele foi até a cozinha e voltou com uma cadeira. Deixou-a do seu lado direito, quase encostada à escrivaninha. Em seguida, fez a menina sentar-se.
            “E agora?”, ela quis saber. “O que quer que eu faça?”
            “Me conta uma história”.
            “Como é que é?”
            O escritor sorriu.
            “Você só sabe dizer isso?”
            “Não, mas você concorda que isso é muito esquisito”.
            “Reconheça que está gostando”.
            “Um pouquinho. Nunca estive com um escritor antes”.
            “Pois este escritor aqui está pedindo que você lhe conte uma história”.
            “Mas para quê?”
            “Calma. Não precisa se exaltar. É o seguinte: não sou um escritor normal”.
            “Como assim?”
            “Meu nome não aparece na capa dos livros”.
            “Mas por quê?”
            “Porque sou um escritor-fantasma. Para todos os efeitos, eu não existo”.
            A menina coçou a cabeça, contrariada.
            “Não to entendendo nada...”
            “É simples. Você conhece alguém que já pediu ou pagou pra alguém pra fazer um trabalho escolar ou de universidade, não conhece?”
            “Eu mesma fiz isso, no ensino médio. Adivinha como foi que paguei?”
            O escritor ri mais uma vez.
            “Você devia ser bem popular, na sua escola. Agora, me responde: no trabalho aparece o nome de quem fez ou de quem mandou fazer?”
            “De quem mandou, é claro”.
            “Então, o mesmo acontece comigo”.
            “E por que não quer que seu nome apareça?”
            Ele olha para o copo. Quase não há mais gelo. Ele se levanta, ruma outra vez para a cozinha e retorna com um depósito de plástico. Senta-se, abre o depósito, coloca duas pedras no copo, reforça a quantidade de bebida e por fim inunda seu organismo com mais da bebida.
            “Eu poderia dizer que é por causa do dinheiro. Que não é pouco. Os caras que me contratam tem muita grana e, quando você tem essa condição, acaba gastando com futilidades. Porque isso o que eu faço no fim das contas é fútil. Inútil. Um trabalho de Sísifo”.
            “De quem?”
            O ghost ignora a ignorância da garota.
            “É como trabalhar com jornal. O cara se mata o dia inteiro, a noite inteira, para oferecer aos leitores as notícias do que aconteceu no dia anterior e um, dois dias depois o jornal que ele batalhou pra colocar nas ruas serve pra embrulhar peixe”.
            Mais uísque goela abaixo. Incentiva a loquacidade.
            “Com o livro acontece a mesma coisa. O cara escreve 40, 80, 100, um milhão de páginas, transforma em livro, lança em uma noite de autógrafos concorrida... e quando ele volta pra casa já está pensando no segundo. O primeiro vai encalhar numa biblioteca ou numa livraria e, se quem escreveu for um cara famoso e a história for boa, vai causar. Vai possibilitar comentários, artigos, resenhas a respeito”.
            “E se o cara não for famoso?”
            “O livro encalha na livraria e na biblioteca do mesmo jeito. A diferença é que ninguém vai ler. Ninguém”.
            “Tá falando isso com conhecimento de causa?”
            A pergunta foi disparada de forma tão direta que o desconcertou. Para se refazer dela, precisou da ajuda da bebida. Já nem mais pensava em recorrer aos cigarros.
            “Não. Eu nunca tive problemas com isso. Eu fazia parte de... de um clube de escritores. A gente se reunia uma vez por semana. A cada encontro um de nós mostrava alguma coisa que valesse a pena ser publicado”.
            Sorri.
            “Eu nunca mostrava nada. Tudo o que eu fazia era uma merda”.
            A garota de programa lê o parágrafo na folha de papel. Os dois estão muito próximos, agora. Quase pele com pele. Ele sente vontade de cobri-la de beijos, jogá-la no chão, rasgar-lhe a roupa toda.
            “Isso aqui não me parece merda”.
            “Ora, muito obrigado. Mas já melhorei muito. Você precisava ler o que eu fazia, naquela época. Quando estava mais preocupado em ouvir outras vozes, em vez de ouvir a voz interior, que é a mais importante”.
            “Mas se é assim... então, por que você precisa que eu te conte uma história”.
            “Porque eu não quero ficar sozinho, agora”.
            “Como é que é?
            “Jesus, você gosta dessa pergunta!”
            “E você gosta de complicar em vez de explicar. Por que tá sozinho? Cadê tua namorada?”
            “Eu não sei. A gente brigou”.
            “Por quê?”
            “Estilos de vida diferentes. Eu quero uma coisa tradicional: sustentar, com o que eu faço, mulher e uma renca de meninos. Ontem, antes de eu te ligar, ela me disse que o tradicional não tem nada a ver com ela. Quer ser independente até onde der. Por enquanto, consegue muito bem se virar sozinha”.
            “Gostei disso”.
            “Pois eu não. Na hora, eu reagi mal. Achei que ela não queria era ficar comigo de jeito nenhum. Fiz exigências. Ela não gostou. Gritamos. Brigamos. Falei o que não devia. Levei um tapa. Ela foi embora. O “adeus” ficou flutuando, como um balão que escapa da mão de uma criança. E agora eu estou aqui. E você também”.
            “Esse uísque faz de ti um tagarela”.
            O escritor ri. Mais alto do que gostaria. Bebe novamente.
            “É. Tem razão. Acho que agora é a sua vez de falar. Pode ser?”
            A menina se rende de uma vez. Pensa agora mais do que três vezes.
            “Olha... Certa vez, aconteceu comigo um negócio meio esquisito”.
            “O que foi?”
            “Sabe aquele filme dos Vingadores?”
            “Sim”.
            “Pois é. Fui assistir quando estreou. Fui sozinha. A sala tava lotada. Cheia de guri e de adulto se comportando como guri”.
            “Sei como é”.
            “Assim que entrei, um bando de gaiatinhos me chamou aos gritos de ‘gostosa’”.
            “Falaram a verdade a plenos pulmões”.
            “Não sei. O que sei é que não gosto de saliências pro meu lado. Por isso, me mandei para as cadeiras mais distantes da tela. Quis ficar longe dos olhos e mais ainda do coração”.
            “Você tem o dom da poesia. Acho que me apaixonei”.
            “Sou uma puta. Eu só faria você sofrer. Mas continuo: o filme começou e, uns cinco minutos depois, vi uma menina sentada do meu lado esquerdo. Uma menina loirinha. Acho que não tinha mais de 11 anos. E tava sozinha”.
            Ela consegue fisgar a atenção do escritor. O ghost não liga mais agora nem para o uísque. No depósito de plástico, começa o processo de degelo.
            “Mesmo com a sala iluminada apenas pelo brilho intenso da telona, reparei que ela se vestia como se tivesse em casa: uma camisetinha sem nada por baixo e um calçãozinho. As havaianas nos pés dela eram bem vagabundas”.
            “Não tinha ninguém com ela?”
            “Não mesmo. E como tenho às vezes a tendência besta de me preocupar com gente que nem conheço e que não tem nada a ver comigo, fiz justamente essa pergunta pra ela. E sabe que resposta ouvi?”
            “Sei lá”.
            “Nenhuma. A única coisa que ela me falou foi: ‘Esse filme não é muito bom, não’. Como se com a idade que tinha soubesse tudo e mais um pouco de cinema”. Sorriu. E no instante seguinte o sorriso sumiu. “Mas o pior foi depois”.
            “E o que aconteceu depois?”
            “O nariz dela começou a sangrar. E era muito sangue. As gotas que caíam na camisetinha eram grossas feito chocolate líquido. Fiquei muito assustada, mas não fiz alarde. Tremendo feito vara verde, saí da sala e fui procurar algum funcionário do cinema. Não achei nenhum. Isso mesmo. Imagina se estivesse pegando fogo ou alguém estivesse morrendo?”
            “Sacanagem”.
            “Pois é. Voltei pra sala. Pra ver se ajudava a menina de alguma forma. Mas quando volto pra minha cadeira a pequena simplesmente desapareceu”.
            “Fantasminha nada camarada, não é?”
            Ela ri.
            “Pode crer. Você precisava me ver, depois do sumiço dela: assustada, encolhidinha na cadeira, até o filme terminar. Meu coração batia a 120 por hora”.
            “Muito bem. Gostei dessa história. Obrigado”.
            “Vai usar no teu livro?”
            “Vou tentar encaixar em algum momento”.
            “Quando receber o dinheiro pelo trabalho, vou querer a minha parte. Fui a principal colaboradora”.
            “Prefiro te pagar de outra forma”.
            Ela sorri novamente e, cheia de malícia, pisca o olho esquerdo.
            “Essa forma eu também gosto”.
            Súbito, pancadas firmes e frenéticas na porta principal. Alguém querendo entrar de qualquer maneira.
            “Meu Deus”, a menina diz. “Quem será esse desesperado?”
            “Não sei. Vou ver”. O ghost se levanta.
            “Toma cuidado”.
            “Deixa comigo”.
            O escritor vai até a porta. Ao abri-la, deixa passar uma versão mais velha e muito mais fora de forma de si mesmo. E não se trata de péssima condição física. É como se algum câncer altamente maligno o estivesse levando rapidamente para a cova.
            A contraparte do escritor veste farrapos. Na comparação, os mendigos da Rua Grande, parecem executivos de alguma bolsa de valores. E parece ser contra um bom banho e os mais recomendáveis hábitos de higiene.
            O velho para no meio da sala. Respira como se tivesse três metros de altura. Quando fala, sua voz lembra a de folhas secas sendo pisadas e arrastadas:
            “Está tudo calmo? Ainda não começou a guerra contra os incas venusianos da oitava dimensão? Acho que escolhi a plataforma temporal errada...”
            O ghost olha para a garota de programa (que ficou de olhos arregalados por causa do que disse o estranho e inesperado visitante) e arremata:
            “Quer saber? Acho que não temos mais tempo pra isso”.


São Luís, 20-24 de outubro de 2012
           
           
           
            

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