domingo, outubro 07, 2012

Fantasia à moda brasileira

http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/10/06/fantasia-moda-brasileira-468809.asp

Edição comemorativa dos 200 anos de publicação das histórias recolhidas pelos Irmãos Grimm relembra a força dos contos de fadas. A nova versão ganhou cores e traços do cordel estampados nas xilogravuras do pernambucano J. Borges




José Francisco Borges é um mestre, considerado o melhor xilogravurista do Brasil por quem entende do assunto, como o escritor Ariano Suassuna. Tem trabalhos em coleções particulares e museus espalhados pelo mundo. E foi escolhido para ilustrar os dois volumes dos “Contos maravilhosos infantis e domésticos”, edição especial que a Cosac Naify lança na próxima semana para celebrar os 200 anos da primeira publicação das famosas histórias reunidas pelos Irmãos Grimm. Para Borges, que completará 77 anos em dezembro, a tarefa não ficou muito distante do universo mágico dos folhetos de cordel que povoaram sua infância e lhe ensinaram a leitura, a rima e a métrica. Os versos ainda o conduziram à arte popular que lhe deu fama: a xilogravura. Para J. Borges, como ele é mais conhecido, a xilogravura não se dissocia do cordel, nem este do conto de fadas. E sua vida ainda poderia servir de mote para inspirar os dois gêneros.



Na vida o poeta e artista fez de tudo um pouco. Começou a trabalhar aos 8 anos no roçado do sítio onde nasceu, no município de Bezerros, região agreste de Pernambuco. Criou cabras, foi marceneiro, carpinteiro, pedreiro, balconista, oleiro, artesão. Confeccionou balaio, colher de pau, tamborete e brinquedos populares para vender de feira em feira. Ainda menino, quando chegava em casa no fim do dia com a enxada, não pensava em outra coisa a não ser nas histórias fantásticas dos folhetos de cordel lidos pelo pai. Na “boca da noite”, era hora de acender o candeeiro e mergulhar em um mundo mágico de pavões misteriosos, mulas sem cabeça, cangaceiros, princesas, cavaleiros, deuses e capetas. Aos 11, não tinha outro pensamento a não ser o de ir à escola para ser capaz de desvendar, por conta própria, aquele mundo encantado que povoava o seu imaginário no meio do silêncio e da escuridão, já que naquele tempo não havia nem rádio nem luz na caatinga, uma terra árida e esturricada. 
— Quando saí da escola, não sabia muita coisa não, quase nada. Mas o cordel sempre me deu ensinamento, e foi no folheto que aprendi a ler. Eu ia olhando os nomes diferentes e gravando como se escrevia. Considero que 70% do que sei devo a ele. Me criei ouvindo as histórias do cordel, em uma época que a gente não tinha televisão, nem rádio, nem cinema, nem livro. E a gente se divertia só lendo os folhetos. Aquilo era o meu universo, não existia outro — conta o artista ao GLOBO em sua oficina em Bezerros, cercado pelas matrizes das gravuras. 

Apaixonado pelos folhetos, o artista deu um jeito de ficar perto deles. Nos finais de semana vendia e recitava os cordéis alheios em feiras. Em 1963 adquiriu uma bicicleta, equipou com alto-falantes e ia amplificando os versos por onde passava. Por isso atribui também ao cordel o fim da própria timidez.

— Eu não gostava de falar, ficava encabulado. Mas aos 20 anos, trabalhando pelas feiras, juntava regência de cem a 200 pessoas, fui ficando um pouco cínico e hoje falo em qualquer parte, em universidade, palácio de governo, junto de ministro, de sábios estrangeiros — comemora. 

Em 1965 já tinha tantos versos na cabeça que resolveu escrever os seus. Foi assim que surgiu o primeiro folheto, “O encontro de dois vaqueiros no sertão de Petrolina”, cidade sertaneja ainda mais castigada pelo sol causticante que Bezerros. Foi um sucesso. Vendeu cinco mil exemplares em 60 dias. O segundo vendeu ainda mais. No final dos anos 1960, ele revoltou-se com uma praga que começou a tomar conta das feiras do interior. Eram homens com tesouras que compravam as madeixas das mulheres. Revoltado, J. Borges escreveu “O exemplo da mulher que vendeu o cabelo e visitou o inferno”. O livreto não só virou um best-seller — vendeu 40 mil exemplares em dois meses na região — como acabou com a farra dos “barbeiros”, que negociavam as cabeleiras para fazer perucas. 

Com pouco dinheiro no início da carreira, sem condições de comprar ilustrações para seus cordéis, começou ele mesmo a confeccionar as matrizes das xilogravuras. Inicialmente utilizadas só nos livretos, a partir dos anos 1970 elas ganharam as paredes de colecionadores e museus. J. Borges já expôs em países de América Latina, Europa e Estados Unidos. Em 1993 foi convocado pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano para ilustrar o livro “Palavras andantes”.
Para a edição dos contos dos Grimm ele criou ao todo 43 ilustrações, espalhadas pelos dois volumes. Algumas delas, como a que ilustra “A maldita fiação do linho”, lembra as fiadeiras do caroá, fibra que já foi muito explorada na região agreste. Foi a aproximação entre esses dois universos narrativos (as fábulas europeias e os cordéis brasileiros) que motivou a Cosac Naify a convidar Borges para fazer as ilustrações. 

— Os contos dos Irmãos Grimm são caracterizados como maravilhosos, não exatamente de fadas, daí a origem do título do livro. Uma das principais características desses contos são as transformações, as metamorfoses pelas quais passam os personagens. O trabalho de J. Borges tem construção muito interessante de personagens que se metamorfoseiam — observa Isabel Coelho, diretora da área infantojuvenil da Cosac. — Outro ponto comum é o caráter popular tanto dos textos, extraídos da cultura oral alemã, quanto do trabalho de Borges. Alguns contos trazem algo de violento, que nos desenhos de Borges se tornam quase cômicos, dando leveza à leitura.

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