Na última semana de setembro, depois
de boa caminhada pelo calçadão da Litorânea, parei no bar e restaurante Coração
do Mar para degustar duas Brahmas antes de retornar à Cidade Operária. Um
hábito salutar que cultivo já faz um bom tempo, seguido por outro, nem um pouco
saudável, mesmo se apreciado com a devida moderação.
Era um sábado e ainda assim o bar
contava com meia dúzia de três ou quatro clientes, incluindo a minha pessoa.
Entrei, fui logo pedindo a um dos garçons a primeira cerveja do início da tarde
e escolhi a mesa em frente ao balcão. Fui servido, abri o “Diário”, de Andy
Warhol, que havia comprado mais ou menos uma hora antes na livraria Nobel (a
sobrevivente) do Tropical Shopping, e estava para me concentrar na leitura do
volumoso volume quando ouvi a seguinte pérola: “Tu não vai mais ferrar um
centavo meu, sua filha disso e daquilo!”. Jesus, Maria, José, os palavrões
abalariam as estruturas das famílias de São Luís.
O assunto não era da minha conta,
sem dúvida alguma. No entanto, a curiosidade me fez virar a cabeça para a
criatura que havia acabado de proferir o imprompério: um sujeito negro, de
estatura mediana, atarracado e barrigudo. Ele também olhou para mim, ao mesmo
tempo em que guardava seu Nokia no bolso de sua bermuda. Nós dois estávamos
sozinhos – ele com seus motivos, eu com os meus. Pelo que vi, o indivíduo já
estava a caminho de sua terceira Skol. Apesar do sorriso, uma nuvem negra bem
pesada pairava sobre seu rosto, que andava precisando de uma gilete.
“Desculpa, seu moço”, ele me disse.
“Não quis atrapalhar sua leitura. É que hoje finalmente decidi colocar um ponto
final numa certa exploração”.
Repito: não era absolutamente da
minha conta se o sujeito era explorado por quem quer que fosse. Tanto que meus
propósitos mais firmes depois dessa declaração para mim tão inútil quanto
indecifrável eram esquecê-lo de uma vez por todas e finalmente dar início à
leitura do diário. Mas às vezes os melhores planos acabam naufragando por
completo.
Meu novo amigo sem-nome voltou à
carga, agora em um tom melancólico:
“Ah, se arrependimento matasse...”
Suspirou, tomou mais um pouco de Skol e prosseguiu: “Sabe, a gente comete
muitos erros. Eu vacilei feio só uma vez... e agora essa droga que eu fiz vai
me persegui a vida inteira. Sabe que besteira foi essa?”
Talvez a bebida o tivesse deixado
comunicativo. Ou só ressaltou uma tagarelice que poderia ser apenas um aspecto
latente. O que sei mesmo é que já estava pensando em me transferir para outro
bar. Ou voltar para casa de uma vez. Mas não quis ser indelicado com a figura. Até
porque não me parecia ser um desses loucos perigosos.
“Eu me casei”, ele disse. “Essa foi
a grande besteira da minha vida. Não pelas crianças, é claro. Sou louco por
elas. Mas é por ela. Por essa filha disso, filha daquilo...”
“Senhor”, interrompeu o garçom que
me atendera. “Vou ter que lhe pedir para moderar a linguagem. Ou então vai ter
que se retirar”.
“Tudo bem, tudo bem...” O sujeito
suspirou mais uma vez e repetiu o ato de embriagar-se aos poucos. De ir se
matando aos poucos. Como quem fuma. Como quem não consegue deixar de se
apaixonar pela mulher do próximo com o próximo estando por perto. Somos
suicidas inconscientes e inconsequentes.
“Queria voltar no tempo, sabe. Como
um super-herói das revistas. E voltaria não para impedir meu casamento.
Voltaria mais atrás. Coisa de 20, 30 anos. E diria para o garoto ingênuo
daquela época para ele ir pra direita, em vez de ir pra esquerda. Pra ser mais
inteligente. Pra não se deixar enfeitiçar por qualquer bu...” Deteve a língua
ébria e revoltada. Respirou fundo. “Por qualquer rostinho bonito”. Fechou os
olhos. Tornou a abri-los no instante seguinte e me perguntou: “O que você, que
parece gostar de ler muitos livros, acha dessa minha ideia?”
Ora pois, muito bem. Eu, que tanto
gosto de ler livros, acabei aprendendo com eles uma lição e outra. Uma delas é
esta e ofereci “de grátis” ao meu querido estranho embriagado. Não lembro mais
qual foi a reação dele, mas o que eu disse foi basicamente o seguinte: esse
negócio de voltar no tempo para corrigir equívocos é uma tremenda bobagem. Caso
eu resolvesse fazer isso no sentido de impedir alguma tragédia, estaria fazendo
mais mal do que bem. Como se sabe, um abismo atrai outro. E depois, tiraria a
chance de, pela experiência – boa ou má -, forjar o caráter pela capacidade de
escolher justamente entre o certo e o errado.
E terminei meu breve discurso com o
que considero uma dessas verdadeiras verdades tão importantes porque
indispensáveis para o nosso crescimento particular, pessoal e intransferível:
essa sabedoria de depois, essa que adquirimos geralmente ao fazermos algo que
os adultos consideram supostamente divertido, no fim das contas nos chega quando
já não nos serve para nada.
Só o tempo pode definir isso. Dir-se-ia
“o tempo e o vento”, mas um escritor muito melhor teve essa ideia primeiro. E
já faz muuito tempo.
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