sábado, outubro 06, 2012

A SABEDORIA DE DEPOIS



            Na última semana de setembro, depois de boa caminhada pelo calçadão da Litorânea, parei no bar e restaurante Coração do Mar para degustar duas Brahmas antes de retornar à Cidade Operária. Um hábito salutar que cultivo já faz um bom tempo, seguido por outro, nem um pouco saudável, mesmo se apreciado com a devida moderação.
            Era um sábado e ainda assim o bar contava com meia dúzia de três ou quatro clientes, incluindo a minha pessoa. Entrei, fui logo pedindo a um dos garçons a primeira cerveja do início da tarde e escolhi a mesa em frente ao balcão. Fui servido, abri o “Diário”, de Andy Warhol, que havia comprado mais ou menos uma hora antes na livraria Nobel (a sobrevivente) do Tropical Shopping, e estava para me concentrar na leitura do volumoso volume quando ouvi a seguinte pérola: “Tu não vai mais ferrar um centavo meu, sua filha disso e daquilo!”. Jesus, Maria, José, os palavrões abalariam as estruturas das famílias de São Luís.
            O assunto não era da minha conta, sem dúvida alguma. No entanto, a curiosidade me fez virar a cabeça para a criatura que havia acabado de proferir o imprompério: um sujeito negro, de estatura mediana, atarracado e barrigudo. Ele também olhou para mim, ao mesmo tempo em que guardava seu Nokia no bolso de sua bermuda. Nós dois estávamos sozinhos – ele com seus motivos, eu com os meus. Pelo que vi, o indivíduo já estava a caminho de sua terceira Skol. Apesar do sorriso, uma nuvem negra bem pesada pairava sobre seu rosto, que andava precisando de uma gilete.
            “Desculpa, seu moço”, ele me disse. “Não quis atrapalhar sua leitura. É que hoje finalmente decidi colocar um ponto final numa certa exploração”.
            Repito: não era absolutamente da minha conta se o sujeito era explorado por quem quer que fosse. Tanto que meus propósitos mais firmes depois dessa declaração para mim tão inútil quanto indecifrável eram esquecê-lo de uma vez por todas e finalmente dar início à leitura do diário. Mas às vezes os melhores planos acabam naufragando por completo.
            Meu novo amigo sem-nome voltou à carga, agora em um tom melancólico:
            “Ah, se arrependimento matasse...” Suspirou, tomou mais um pouco de Skol e prosseguiu: “Sabe, a gente comete muitos erros. Eu vacilei feio só uma vez... e agora essa droga que eu fiz vai me persegui a vida inteira. Sabe que besteira foi essa?”
            Talvez a bebida o tivesse deixado comunicativo. Ou só ressaltou uma tagarelice que poderia ser apenas um aspecto latente. O que sei mesmo é que já estava pensando em me transferir para outro bar. Ou voltar para casa de uma vez. Mas não quis ser indelicado com a figura. Até porque não me parecia ser um desses loucos perigosos.
            “Eu me casei”, ele disse. “Essa foi a grande besteira da minha vida. Não pelas crianças, é claro. Sou louco por elas. Mas é por ela. Por essa filha disso, filha daquilo...”
            “Senhor”, interrompeu o garçom que me atendera. “Vou ter que lhe pedir para moderar a linguagem. Ou então vai ter que se retirar”.
            “Tudo bem, tudo bem...” O sujeito suspirou mais uma vez e repetiu o ato de embriagar-se aos poucos. De ir se matando aos poucos. Como quem fuma. Como quem não consegue deixar de se apaixonar pela mulher do próximo com o próximo estando por perto. Somos suicidas inconscientes e inconsequentes.
            “Queria voltar no tempo, sabe. Como um super-herói das revistas. E voltaria não para impedir meu casamento. Voltaria mais atrás. Coisa de 20, 30 anos. E diria para o garoto ingênuo daquela época para ele ir pra direita, em vez de ir pra esquerda. Pra ser mais inteligente. Pra não se deixar enfeitiçar por qualquer bu...” Deteve a língua ébria e revoltada. Respirou fundo. “Por qualquer rostinho bonito”. Fechou os olhos. Tornou a abri-los no instante seguinte e me perguntou: “O que você, que parece gostar de ler muitos livros, acha dessa minha ideia?”
            Ora pois, muito bem. Eu, que tanto gosto de ler livros, acabei aprendendo com eles uma lição e outra. Uma delas é esta e ofereci “de grátis” ao meu querido estranho embriagado. Não lembro mais qual foi a reação dele, mas o que eu disse foi basicamente o seguinte: esse negócio de voltar no tempo para corrigir equívocos é uma tremenda bobagem. Caso eu resolvesse fazer isso no sentido de impedir alguma tragédia, estaria fazendo mais mal do que bem. Como se sabe, um abismo atrai outro. E depois, tiraria a chance de, pela experiência – boa ou má -, forjar o caráter pela capacidade de escolher justamente entre o certo e o errado.
            E terminei meu breve discurso com o que considero uma dessas verdadeiras verdades tão importantes porque indispensáveis para o nosso crescimento particular, pessoal e intransferível: essa sabedoria de depois, essa que adquirimos geralmente ao fazermos algo que os adultos consideram supostamente divertido, no fim das contas nos chega quando já não nos serve para nada.
            Só o tempo pode definir isso. Dir-se-ia “o tempo e o vento”, mas um escritor muito melhor teve essa ideia primeiro. E já faz muuito tempo.

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